Cuba-Libre é o romance de André
Carvalho, nascido em Curvelo, ganhador de um dos mais importantes prêmio na
América Latina, atribuído a um Romance, Casa de Las Américas de Cuba.
É a crônica de um jovem portador de
deficiência física, seus problemas e dificuldades, devido aos preconceitos e
discriminações de uma sociedade interiorana, seus desejos e buscas de liberdade,
sentido para a vida, significação para o mundo, realizações e alegrias –
dimensões que irá realizar no tempo a partir do instante em que mergulha na
alma, descobrindo as reais capacidades, sensibilidade, dons e talentos.
Quanto mais consciente está o artista
do “dom” que possui, tanto mais se sente impelido a olhar para si, para a
criação inteira com olhos capazes de contemplar e agradecer, elevando a Deus o
hino de louvor. Só assim é que ele pode compreender profundamente a si e à
vocação e missão.
Após ter saído do hospital, mais uma
vez internado por causa de haver quebrado a perna, conhece Sula, em princípio
apenas amizade, eivada de solidariedade e compaixão com o jovem, no decorrer da
obra a paixão avassaladora de ambos, a proibição da família de Sula por aquele
rapaz não ter futuro algum. Mas a relação-chave da liberdade, da busca de
valores reais, virtudes incondicionais. A partir dessa relação, começa a
escalada: passa no Vestibular de Letras, em Belo Horizonte, participa mudança
para a capital. É a vida mais agitada, uma existência que já não é tão pura e
ingênua – ao contrário, é marcada pelas asperezas do mundo, necessidades
econômicas, desilusões, desintegração da família. Os jovens, principalmente as
moças, são envolvidos pela desumanização da cidade grande. Começa a trabalhar
numa revista como jornalista, vai adquirindo, com esforços e força de vontade,
o merecedor sucesso.
Na infância em Curvelo, as vezes que
saía de casa acompanhado de uma de minhas mães, indo à igreja, ou passeando, ao
passar por nós criança ou adulto com deficiência, olhava, dizendo uma delas:
“Filho, não pode ficar olhando as pessoas assim. Elas ficam tristes”. Palavras
de que sempre me recordo, palavras que me libertaram de um das discriminações
mais arbitrárias, uma perfeita desumanidade. Com estas palavras, aprendi a
respeitá-los, a desejar-lhes esperanças de se realizarem. Tive amigo nestas
circunstâncias nos tempos da Faculdade de Letras, em Belo Horizonte. Anos mais
tarde, casei-me com deficiente, com quem tive dois filhos.
Diz-lhe Sula: “Você não tem razão para
ficar triste”. Sula falava sério, os olhos nos olhos. Tinha percebido suas
dores e ele achava que sabia localizá-las em suas pernas. Sabia sim, porque
tinha sido a primeira pessoa a dizer isto claramente. Compreende-se os
sofrimentos, devido aos ideais, desejos da criança, adolescente, adulto, idoso;
devido aos preconceitos individuais e
sociais. Difícil ver as pessoas se realizando, tornando reais os seus projetos,
e o deficiente quase sem esperanças.
Onde encontrar a liberdade numa
sociedade exigente de bens materiais, adquiridos com o trabalho, esforço?
Difícil, extremamente difícil, por tais atitudes não lhe darem oportunidade de
construir a vida. Deus faz as coisas direito. O amor da jovem Sula pelo jovem
dá-lhe a chave-mestra para a descoberta de si, e ele transforma este amor de
Sula por amor a si, “... a coragem de não ser apenas um deficiente
físico”. Teve
medo, muito medo. “Perder Sula não era apenas perder o amor, eu
pensava. Talvez seja perder esta força nova, esta coragem, este me sentir
homem, amado”.
As mesmas palavras ditas por Sula ao
jovem podem e devem por mim ser ditas aos deficientes, aos homens e mulheres
que trazem dentro de si mesmos a cruz de grandes, enormes dores e sofrimentos.
Não há razão para serem tristes. É necessário apenas remodelar, tirar os
rótulos que colocamos nos outros, especialmente nos deficientes, nos negros,
nos marginalizados, nos pobres e miseráveis. Também estes precisam descarregar
os rótulos do comportamento das pessoas. De que modo realizar isto? Mergulhando
na própria alma, descobrindo os valores, virtudes, dons que nela existem,
tornar-lhes reais. Palavras de André Carvalho, um dos momentos mais brilhantes
da obra por sua dimensão de humanidade, solidariedade, compaixão, compreensão
da vida e do mundo: “Afinal de contas, todos os rótulos que eu carrego
sobre o comportamento das pessoas precisam ser remodelados”.
Lendo a obra, houve um momento em que –
momento de plena compreensão e entendimento da obra, o que ela dentro traz em
si, o que a torna obra-prima – afastei os olhos da leitura, olhei o céu azul da
tarde, com algumas nuvens brancas, lembrando-me de palavras semelhantes que
ouvi de minha senhora Marize Lemos Silva, num restaurante, em nosso primeiro
encontro, após dizer-lhe ser separado de minha mulher, ter tido dois filhos com
ela, não pensava mais em manter relações afetivas com ninguém, dedicar-me-ia à
Literatura, à vida intelectual. Dissera-me ela: “Mas você pode ser ainda muito
feliz”. E hoje me considero homem realizado, feliz com ela, com a vida. O amor
que gratuitamente me doou busquei transformar-lhe em amor por mim,
reconhecimento de valores e virtudes; amor que me dera a oportunidade de
mergulho profundo na alma e espírito.
Aqui se encontra a força, o vigor, a
esperança que as obras literárias despertam nos homens, na humanidade -
características estas que transcendem qualquer realidade, alcançando sonhos e
desejos, projetos e vontades dos homens que, por alguma razão, às vezes
inconsciente, sentem-se incapazes de modificar suas vidas.
Cuba-Livre, do escritor André Carvalho, se lido
não apenas como romance, obra-literária, mas testemunho de experiências,
vivências, uma leitura consciente, é um momento que nos transcende, que coloca
em nossas mãos a chave de nossa liberdade, de outra vida que certamente será de
alegrias, prazeres, realizações. Após esta leitura de Cuba-Libre,
ainda há razões para sermos tristes?
[1]
Estou consciente que alguns leitores
irão sim perguntar o porquê de estar fazendo uma crítica sobre a obra
Cuba-Libre de André Carvalho, quando eu
próprio comentei num artigo publicado pelo tablóide Centro de Minas o que me
dissera em particular no escritório de sua editora: ‘Se eu continuasse vivendo
em Curvelo, estaria pedindo esmola à porta da igreja”, o que deixou alguns
ressentidos. Não deixaria mesmo de fazer crítica de obra literárias por essa ou
aquela razão. Cuba-Libre é obra de grande valor literário, estético, ético,
moral. Se a obra tem valores, passo por cima de qualquer ressentimento
particular. Se não reconheço valores, simplesmente não leio. Não o faço apenas
por haver publicado minha novela Ópera do Silêncio. Re-conheço sim os seus dons
e talentos. É um grande escritor, re-conhecido
pela crítica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário