O Objetivo Verdadeiro da are é o reino infinito do
espírito.
Hegel
Ao pensar, refletir,
meditar, con-templar as obras de Arte, as pessoas dizem que gostam mais de uma
do que de outra ou, então, que preferem ler Machado de Assis a Lúcio Cardoso.
Tais observações são expressões de reações subjetivas, satisfazem o objeto do
prazer, embora, olhando de modo profundo, se possa inferir delas algo sobre as
obras de Arte em questão.
Do julgamento ou
Veredicto de que uma obra de Arte é linda, encantadora, bela, nada se pode
inferir, nada se pode deduzir quanto às características que a mesma possui, com
exceção quanto ao contexto e, mesmo assim, de modo sobremaneira remoto, sem
lógica estrita.
Dizendo alguém acerca da
obra de Arte, que ela é dinâmica, unificada, delicada, quente, formal ou
econômica, então certo tipo de caracterização da obra está-se dando, e isso
exige certa receptividade, observação de algo na composição.
Qualquer pessoa, com
faculdades normais de percepção, pode ver e sentir o dinamismo de uma obra de
Arte e toma cuidado para não adulterá-la de modo que lhe possa tirar o prazer.
Existe um modo de percepção que é particularmente estético. Podemos ser
objetivos de diversas maneiras, e algumas delas colocam a percepção como um
todo, em posição bastante subordinada. Tal concepção poderá ser objetiva, significando
apenas que ela está de acordo com as normas. Entretanto, suficiente não será
imaginar que a experiência da Arte seja primariamente caso de interpretação
reflexiva das coisas. A espécie de objetividade que temos em vista deverá ser,
de modo fundamental, uma maneira objetiva de olhar para as coisas, não de
pensar nelas nem interpretá-las, ainda que isso esteja atendendo à experiência,
elaborando-a. O problema é distinguir a experiência das coisas, segundo o modo
estético de percepção, da experiência das coisas, segundo os modos perceptivos
nos quais se assentam as caracterizações não estéticas.
O problema essencial é
estabelecer as condições a serem satisfeitas por essa espécie de percepção que
é propriamente chamada de estética, a espécie que re-vela as características
estéticas das coisas.
Ser-nos-á útil começar
pelo estabelecimento do conceito de percepção estética no conjunto da filosofia
da percepção em geral.
Um tipo de modelo básico
influencia muitas reflexões tradicionais e correntes sobre o problema da
percepção. O quadro é o de um campo de experiência, no qual o sujeito (mente)
defronta-se com o objeto (matéria). Tanto o sujeito como o objeto possuem um
âmago ou essência. O que é essencial ou mais chegado ao sujeito em sua mente
são os seus pensamentos, depois vêm os sentimentos e as sensações, nessa ordem,
em direção ao exterior. Os pensamentos são bastante interiores e particulares;
os sentimentos já o são menos e as sensações menos ainda.
A função da Arte é
organizar os diversos fatores psicológicos ou subjetivos na pessoa que está
tendo a experiência estética. Não é função da Arte re=velar nenhuma
característica das coisas, mas antes realizar alguma coisa de valioso para a
psique da pessoa. A pessoa deve deixar que a Arte lhe produza harmonia no íntimo.
O que distingue Ramos
como autêntico escritor e grande romancista é o estilo, através dele
estabeleceu e construiu uma estética quase sem precedentes e, sendo assim,
torna-se indispensável saber antes de mais o que significa o estilo de romancista.
George Santayana
descreve a beleza como sensação de prazer objetivado. Essa objetivação faz o
sentimento aparecer como qualidade da coisa que está sendo experimentada como
bela. Dá excelente descrição de como os sentimentos geralmente funcionam como
motivos para a ação, guiados por uma crença prática. Tal percepção ultrapassa a
essência das coisas e exprime os interesses ativos daquele que percebe, em sua
transação com aquilo que existe no ambiente. Mas até mesmo o sentimento, como o
prazer, pode ser removido de seu assunto subjetivo, de onde induz a ação, e
pode-se fazê-lo parecer qualidade essencial do objeto, na percepção
contemplativa. O desejo de possuir a coisa desaparece, então, e a pessoa deseja
apenas olhar.
Não se trata unicamente
de arrumar as palavras numa frase ou a maneira de dispor as frases numa página;
inclui modo de concepção do romance, genuína filosofia do romance, o ponto
fundamental das distinções entre os romancistas. A personalidade do escritor de
ficção não se lhe mede pelo poder imaginativo, mas pelo aproveitamento que faz
da imaginação: pelo estilo literário que a imaginação adquire em suas obras e
que as marca com selo indivisível do próprio eu, que lhe fornece os Traits pelos
quais podemos reconhecê-lo sem maiores dificuldades em todos os seus trabalhos.
Bullough, em seu bem
conhecido ensaio sobre a distância psíquica, trabalha também com a noção de
desengajamento dos interesses práticos subjetivos, experimentando nossas
próprias emoções geralmente subjetivas não como motivos interiores para a ação,
mas como características objetivas de algo exterior.
Através do estilo, que
se singularizam e por vezes se distanciam escritores como Ramos, Lúcio Cardoso,
Clarice Lispector. Não apenas pelos sinais exteriores de suas obras, não apenas
pelo ambiente diferente em que movimentam seus heróis, não apenas pelo ambiente
diferente em que movimentam seus heróis, não apenas pelas pré-ocupações
di-(s)-semelhantes que manifestam como homens e como artistas, mas
principalmente pela atitude que assumem perante este mistério chamado o
romance, como forma de expressão de anseios interiores, de uma vocação, e
também como técnica mais material de apresentar a interpretação desses anseios.
Ortega e Gasset
informa-nos de como se deve tomar uma posição que nos desligue da realidade
vivida em favor de uma distância espiritual. Fica-se numa relação tipo de
“ultra-objeto”, com seu próprio conjunto de características estéticas
específicas. São esses expressivos estilo e forma que se tornam a consideração
dominante, ao invés da re-presentação dos valores da vida. Uma boa composição
deve ter alguma relação com a realidade vivida, e essa é a condição de sua
inteligibilidade, mas terá de possuir tão pouca semelhança quanto for possível.
Fica a realidade humana sujeita à desumanização da Arte, na Arte.
Na teoria da empatia,
Theodore Lipps e Vernon Lee, a ênfase recai novamente sobre o ego, que,
aparentemente, se sente a si próprio dentro do objeto da percepção estética.
Isso é realizado por uma espécie de desempenho subjetivo que, aparentemente,
objetiva as atividades do ego no objeto. Graciliano Ramos apresenta-se com
estilo mais profundo e mais sereno, e tanto mais sereno quanto mais
profundamente penetra nesse terreno alucinatório que é no homem dentro de si
mesmo.
O valor estético é
espécie de auto-gratificação, ainda que envolva desligamento interior ou
distanciamento psicológico do ego quanto a si próprio. Graciliano Ramos
empreende longas e tormentosas pesquisas no interior de seus personagens à
procura das primeiras fontes dos seus atos e dos seus gestos e as idéias
políticas que defende, antes como um cidadão que se revolta contra as
injustiças sociais e que o obrigariam, coerentemente, a uma “interpretação”
mais imediatamente social, mais rudimentar, mesmo, da vida e da
inter-convivência em sociedade.
Ramos bem confirma o
conceito acima expresso de estilo, que é o de noção psicológica do estilo, e
não noção gramatical ou sintática, como também a sua preocupação continuamente
voltada para o que há de essencial no homem, para o que há nele de eterno,
pouco se demorando no que nele existirá de transitório e de acidental.
Beardsley aponta acertadamente para o fenômeno da profundidade estética, mas
não se aproveita bastante disso, deixando de esclarecer que uma forma ou
desenho, como observados, não são aquilo que é aprendido no espaço estético da
composição.
É o homem que Graciliano
tem em vista. Poderíamos, sem dúvida, observar como um corpo não funciona: ele
é meio transparente de acesso para a Natureza que o cerca e para as outras
pessoas, enquanto, como máscara, serve também para manter uma área de
isolamento para a mente que o anima. Isso também se aplica a uma casa que é um
lar. Ela obriga a pessoa integral, tanto o corpo quanto a mente, e funciona como
espécie de corpo adquirido.
No primeiro romance, Caetés,
ainda a medo e, propositadamente, não querendo aprofundar demais os seus
passos, nos primeiros domínios da vida interior, estudando as reações
psicológicas do personagem durante a evolução de um amor ilícito numa pequena
cidade. De sua influência, Graciliano conserva apenas a forma exterior da
frase, beleza bastante sim-pática de construção e atitude irônica com relação aos personagens e
aos seus casos.
Qualquer estudo da forma
e do conteúdo na Arte ficará prejudicado se tentar prosseguir sem referência ao
assunto da Arte, ainda que esse último seja, fora de dúvida, estranho às
características da obra de Arte. A forma de uma obra de Arte é o arranjo ou a
disposição dos elementos (Valores Tonais) de seus meios e, não simplesmente, de
seus materiais. Uma pessoa esteticamente insensível ou cega poderá notar
(observar) o arranjo dos materiais no espaço físico, notas, cores, contornos
sem notar as suas relações como elementos do meio da Arte, isto é, ele será
cego quanto às suas relações como valores tonais no espaço estético ou quanto à
influência de um sobre o outro, em tais relações.
Em Caetés, salienta-se
com rigor uma maestria: a leveza simpática de construção. Na experiência de
Graciliano, à medida que ele compõe, cada material é considerado como um
pequeno e elementar objeto estético. Desse modo, o objeto estético composto não
é uma espécie de Véu ou tela etérea situado entre o sujeito apreensor e a obra
de arte. O objeto estético é a coisa material ordenada (obra de arte), a
aparecer sob o aspecto categorial que ele possui a percepção apreensiva.
Nesta obra, o autor não
é aquele que sofre com seus heróis, o homem que “acredita” no que inventa, como
Julien Green exige do romancista, mas apenas o observador que está pouco acima
e pouco fora daquelas miúdas cogitações e que por isso pode manter perante elas
vivo e atrelado, o seu espírito crítico.
Caetés, sendo por esse
lado obra malograda, é, ainda, um dos romances mais interessantes no Brasil; é
um livro que de forma alguma desmente Vigor e a capacidade de criação de
Graciliano.
Por quê?
Apenas uma palavra sobre
estilo da obra de Arte. É uma espécie de forma? A distinção é delicada, mas
existe. O estilo da obra de Arte é o estilo do artista, se ele está fazendo uma
imitação. Se o autor ficou insatisfeito com o seu primeiro livro, não creio ter
sido por causa da influência de Eça de Queirós, nem por não querer aprofundar
demais os primeiros domínios da vida interior. Creio mesmo tal insatisfação se
fundamenta na busca de seu estilo como artista e, portanto, o estilo da obra de
Arte. Contudo, não dizemos que a forma da obra é a forma do artista. A forma
pertence apenas ao lado objetivo, o
estilo atravessa a distinção subjetiva – objetiva.
Ramos sentiu, antes de
ninguém, as fragilidades que lhe comprometeram o primeiro livro, mas elas não
bastam para justificar a condenação sumária. E, apesar de tudo, um livro
sincero, isto é, livro onde esse homem “tão prevenido e mesmo tão desconfiado”,
como disse o poeta Augusto Frederico Schmidt, “(entre)mostrou” um pouco de si
mesmo e deixou escapar mais simpatia humana do que a que comumente se permite.
O espírito do artista é
o ambiente no qual, pela primeira vez, ele considera o assunto e seu modo de
aprendê-lo, dá colorido e forma ao conteúdo de sua obra. Zola disse que uma
obra de Arte é um pedaço da natureza visto através do temperamento do artista.
A obra é concluída com emprego de materiais e meios cujo caráter também é
mostrado na composição total, em seu estilo, e a porção da natureza, que é o
assunto da obra, expressa em seu conteúdo, faz suas próprias exigências sobre
aquele. Pode-se ver que o estilo é uma coisa mais ampla e sutil do que a forma.
Pode-se isolar a forma da obra de Arte e caracterizá-la, sem dizer-se tudo o
que pode ser dito sobre o estilo. O estilo é uma qualidade de forma global e,
por ele, pode-se identificar o artista na obra.
Embora o episódio de
amor se desenrole um pouco superficial, evitando o autor explorá-lo em todas as
suas conseqüências literárias, evitando visivelmente enriquecer os personagens
com uma capacidade de emoções em que o próprio romancista parece não acreditar,
não há nenhuma dúvida de que poucas vezes o romance brasileiro poderá
apresentar exemplo tão magnífico de verossimilhança verdadeiramente convincente.
Publicando, em 1934, o
seu segundo e maior romance, não se distanciou Ramos do interesse psicológico.
O que houve a mais de Caetés foi o
corajoso aprofundamento de seu tema, foi o arrojo de mexer no que o homem tem
de mais íntimo e de mais misterioso. Isso proporciona a S. Bernardo uma
universalidade a que poucos romances brasileiros poderão aspirar.
A obra de Arte não é
física, mas tampouco é mental. É um TERTIUM QUID, uma terceira espécie de
alguma coisa, semelhante a um universalismo platônico. Essa é a posição do
realismo lógico. Seu modelo é o universalismo do pensamento ou concepção,
lógico, não temporal, nem localizado, como a triangularidade ou a vermelhidão.
Por analogia com estes, pensa-se que a universalidade e mesmo a entemporalidade
de uma grande obra de Arte podem ser explicadas e, como se vê o universalismo
lógico com os olhos do intelecto, contempla-se a obra de Arte com os olhos da
imaginação educada que, na contemplação estética, é bastante semelhante ao
intelecto banhado pela emoção.
O drama econômico da
vida social na região e os fenômenos típicos da propriedade só comparecem no
livro porque são eles, justamente, que porão a funcionar o complexo Paulo
Honório. O objeto do romancista é o personagem e não o ambiente, nem a
sociedade. S. Bernardo não depende das transformações exteriores nem do sistema
de vida na sociedade circundante para ser o que é. A pré-ocupação essencial do
romancista não foi a de marcar literariamente os caracteres de uma sociedade,
mas o caráter de um personagem.
É um romance psicológico
no mais amplo sentido da palavra. Todo o romance existe em torno das reações
íntimas de Paulo Honório, a sua luta pela propriedade, o seu amor infeliz, o
fracasso de seu casamento, o seu isolamento e ruína. Só o vulto que o drama
individual adquire, esfumando completamente os demais personagens e o ambiente
(que jamais aparecem sem a presença do herói), comprovaria essa atitude do
romancista, acentuando ainda em mais um livro o seu estilo.
Confessa Ramos:
Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel.
Houve suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências, materiais quando
a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo
interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras... É o processo que
adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas, o resto é bagaço.
É a profissão de fé do
romance psicológico: eliminar tudo o que não servir para dar do personagem uma
idéia essencial. A ironia ainda acompanha o romancista, mas em dose
extraordinariamente reduzida. Deixou de ser a atitude do romancista com relação
a todos os personagens, para se restringir a um único personagem, justamente
aquele que representa o avesso de Paulo Honório “seu” Ribeiro tenha sido tudo
na vida, com dinheiro, lar e consideração social, e lentamente fora sendo
despojado, até terminar como um martirizado guarda-livros em S. Bernardo.
Em A função da arte, Ernst
Fischer, salienta que no mundo alienado em que vivemos a realidade social
precisa ser mostrada no seu mecanismo de aprisionamento posta sob uma luz que
devasse a “alienação” do tema e dos personagens. A obra de Arte deve
apoderar-se da platéia não através da identificação passiva, mas através de
apelo à razão que requeira ação e decisão. As normas que fixam as relações
entre os homens hão de ser tratadas no drama como “temporárias e imperfeitas”,
de maneira que o expectador seja levado a algo mais produtivo do que a mera
observação, seja levado a pensar no curso da peça o encetado a formular um
julgamento.
Ramos ainda mais acentua
importância, que dedica ao processo psicológico de Paulo Honório, contra quem a
menor nota de ridículo não é atirada, mesmo em suas manifestações mais brutais
e menos simpáticas. Paulo Honório é personagem dramático. O seu drama não
provém de acontecimentos externos, como o de “seu” Ribeiro, mas da constituição
psicológica de homem que desde cedo construiu o seu próprio mundo com as mãos.
A razão de ser da Arte
nunca permanece inteiramente a mesma. A função da Arte, numa sociedade em que a
luta de classes se aguça, difere em muitos aspectos, da função original da
Arte.
O romancista desrespeita
Paulo Honório, que não soube enfrentar a vida, mas respeita o segundo, que
venceu a vida e foi derrotado por assim dizer dentro de si mesmo. O
guarda-livros perdeu o que tinha, material e moralmente, mas conservou intacto
o seu tesouro íntimo, Paulo Honório em meio de uma prosperidade material que
resistia aos maiores embates, viu-se lentamente desmoronar como se estivesse
podre: “Estraguei a minha vida estupidamente... Creio que sempre fui egoísta e
brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. É a desconfiança
terrível que me aponta inimigos em toda a parte”.
Entre as duas paralelas
marcadas por “seu” Ribeiro e por Paulo Honório pode-se identificar o interesse
psicológico do romancista Ramos, a sua extratemporalidade, e, portanto, o seu
problema temporal, o seu desligamento dos Problemas Temporais. Neste sentido de
desligamento dos problemas temporais, pode-se colocar a questão da seguinte
maneira: toda Arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em
consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma
situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa
limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de
humanidade que promete constância no desenvolvimento. Jamais devemos subestimar
o grau de continuidade que persiste em meio às lutas de classe, apesar dos
períodos de mudanças violentas e de revolução social. Como acontece com a
evolução do próprio mundo, a história da humanidade não é apenas uma
contraditória descontinuidade, mas também uma continuidade.
O problema que atormenta
o escritor alagoano é o do Bem e do Mal. Não somente o Bem e o Mal que
preocupam o romancista com uma persistência e com uma inquietude
verdadeiramente calvinista, é também a indistinção moderna entre o Bem e o Mal,
numa sociedade em que os valores se misturaram de tal maneira que se repete a
história de Cristo e do Grande Inquisidor. É o Luís da Silva, de Angústia, quem
nos vai colocar o problema.
O olhar de Graciliano se
dirige para mais longe do que o espetáculo imediato dos homens formigando e
defendendo as suas reivindicações de classe. Brecht observa que, numa
sociedade, dividida pela luta de classes, o efeito “imediato” da obra de Arte
requerida pela estética da classe dominante é o efeito de suprimir as
diferenças sociais existentes na platéia, criando, assim, enquanto a peça vai
sendo encenada, uma coletividade “universalmente humana” e não dividida em
classes.
A fonte do problema, é
uma fonte mais profunda e mais longínqua, encontra-se no ponto de intersecção
originária desse feixe de preocupações mais ou menos divergentes que chamamos
política, economia, religião, arte, ciência... Moralista, Ramos sabe que o mal
reside principalmente no homem, e que somente será possível salvar a sociedade
no dia em que pudermos reformar o homem.
Se desejamos, realmente,
como o diz Walter Benjamin, construir ou ajudar a construir essa forma de
conhecimento que poderia ser chamada de prática social artística, devemos estar
cientes de que os conceitos têm um caráter operacional, submetidos a constantes
variações às dos quadro sociais, às das transformações e modificações
relacionadas às estruturas.
As idéias desse escritor
comunista se encontram com a concepção católica do mundo.
Um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é
bom e o que é ruim, tão embolados vivemos.
Esta reflexão de Luís da
Silva é a mesma que preside a vida de Paulo Honório:
A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram
os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo, fiz coisas ruins que me
trouxeram lucro.
O que origina o infortúnio
do mundo é a indistinção entre o Mal e o Bem. O Mal dominou em aparência a vida
do homem simplesmente porque este se encontra desorientado no meio da rede de
confusões que a si mesmo entendeu.
Na origem de todas as
perturbações, Graciliano Ramos não encontrou desajustamento econômico nem
injustiça social mas uma confusão moral.
Dessa confusão moral
decorrem todos os fenômenos que aparentemente se mostram de funda importância
para a interpretação da sociedade contemporânea e para o diagnóstico de seus
males e fixação de seus remédios. Não é a sociedade que devemos transformar,
mas o homem.
A moral é história
precisamente porque é modo de comportar-se de um ser – o homem – que por
natureza é histórico, um ser cuja característica é a de estar-se fazendo ou se
auto-produzindo constantemente tanto no plano de sua existência material,
prática, como na de sua vida espiritual, incluída nesta moral. A moral só pode
surgir – e efetivamente surge – quando o homem supera a sua natureza puramente
material, instintiva, e possui já uma natureza social: quando já é membro de
uma coletividade. O próprio Graciliano Ramos pretende a salvação de cada um
pela salvação coletiva.
Os falsos valores se
misturaram de tal modo com os valores legítimos que já nós sabemos o que é bom
e o que é ruim, já não sabemos o que é o Bem e o que é o Mal. Quando estas
categorias adversas se confundem, a primeira conseqüência é a de se tomar o Bem
pelo Mal e o Mal pelo Bem. A corrupção se apossa dos homens, a sociedade é
injusta.
O romance de Graciliano
Ramos coloca à nossa frente, no mais amplo sentido da palavra, o problema
moral, o problema do Homem, muito mais mitológico que político.
Vidas Secas, o último
romance de Graciliano Ramos, foi publicado em 1938, quando a experiência do
romancista e a sua segurança técnica tinham atingido ponto culminante. Há o
estudo psicológico de Fabiano, o de Sinhá Vitória, o dos meninos, o de Baleia,
o do Soldado amarelo. A paisagem comparece predominantemente no primeiro e no
último capítulo, porque “Cadeia”, “Inverno”, “Festa” e “O mundo coberto de
penas” são ainda estudos psicológicos cuja evidência não precisarei demonstrar.
A concepção pessimista
de Graciliano Ramos abranda-se em Vidas Secas: sentimos que a sua atitude de
descrença se curva à evidência de vidas que não se tornaram possessas do mal e
as quais, por isso mesmo, o romancista não nega o benefício da salvação. É o
segredo do final feliz de Vidas Secas: o livro que seria aparentemente o mais
desesperado, porque preso à fatalidade implacável de uma natureza torturadora,
termina como numa aurora, a felicidade e o conforto surgindo aos personagens em
plena caminhada na poeira calcinada pelas secas e pelos sofrimentos.
Todos os livros de
Graciliano Ramos terminam na desgraça irremediável, menos Vidas Secas cujos
personagens sabem tirar da maior desgraça o alimento para as suas esperanças.
Uma suave luz de poesia difunde-se pelas últimas páginas de Vidas Secas. É que
nesse romance o Bem e o Mal não se confundiram. O sofrimento físico dos
personagens lhes manteve intacta a rude formação moral.
Costurando toda a
exploração da obra de Graciliano Ramos, Estilo e Estética, uma obra de Arte é
uma coisa material composta para ser aprendida como objeto estético. Essa
nação, por si mesma é bastante vazia, mas adquire alguma substância por ligação
com o tratamento prévio dos materiais, meio, conteúdo, forma e assunto de uma
obra de Arte, juntamente com o que foi dito sobre a apreensão como modo
esteticamente relevante de percepção das coisas.
É verdade que a função
essencial da Arte para uma classe destinada a transformar o mundo não é a de
fazer mágica e sim a de esclarecer e incitar à ação; mas é igualmente verdade
que um resíduo mágico na arte não pode ser inteiramente eliminado, de vez que
sem este resíduo provindo de sua natureza original ou Arte deixe de ser Arte.
[1] Este pequeno ensaio fora escrito em setembro de 1998.
Confesso haver hesitado bastante em publicar este texto acerca da obra de
Graciliano Ramos. Fazê-lo, após onze anos de sua criação, é responsabilidade
grande, pois que o amadurecimento e crescimento da escrita e da visão sofreram
mudanças no estilo, na linguagem. Ainda
mais que naquela época, 1998, estava ainda experimentando escrever ensaios,
comentários. Nada modifiquei de meu original, tirei apenas algumas
“gordurinhas”, uso inadequado do artigo indefinido “um”, “uma”, “uns” e “umas”.
Surgirá oportunidade no futuro de outro ensaio a respeito de Graciliano Ramos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário