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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Fidelidade canina (narrativa) ** By Arnaldo L. Pereira






10:29

Fidelidade canina (narrativa)

 Lá pelos idos de 1970, em uma cidadezinha do interior de S. Paulo, morávamos (eu) meu pai e minha família. Éramos em 9 pessoas, meu pai, minha mãe e 7 filhos. Vivíamos felizes aquela vidinha sem alteração ou novidades das grandes cidades. A nossa rotina era acordar às 4:30 hs da manhã, e seguir para o trabalho, que em algumas ocasiões ficava retirado 7 ou 8 kilometros. Para ir trabalhar nós tínhamos que atravessar a cidade ao meio. Ao por do sol fazíamos todo aquele caminho de volta, sempre a pé. Meu pai e meu irmão mais velho carregavam lenha para queimar, eu e minhas irmãs trazíamos as enxadas, a moringa d’água e cada uma, um saco com abóbora, ás vezes milho ou feijão, e assim levava-se o tempo. Lembro-me que íamos pelo caminho tagarelando, contando causos, rindo e todos brincando com o cachorro. Tínhamos um cachorro muito estimado. Seu nome era Camurim. Era um cachorro comum igual a todos os outros. Trabalhando na roça, na lavoura de café, às vezes ao retornar para casa deixávamos as enxadas e a moringa d’água escondidas embaixo de um pé de café e íamos embora. Ao chegar em casa sentíamos falta do cachorro, logo chegava-se à conclusão que o mesmo teria ficado vigiando as enxadas. Quando retornávamos no dia seguinte eram confirmadas as nossas suspeitas. Camurim lá estava, havia dormido junto às enxadas. Á noite o cachorro saia pelos arredores para procurar o que comer. Ao nos ver chegar de manhã cedo, vinha fazendo festa, abanando o rabo, saltando em nós e nos lambendo. Assim passava-se o tempo. Todos os dias, era dessa forma. Um belo dia, demos pela falta do cachorro. Estranhamos sua ausência, porém sabendo que sempre ele ficava cuidando das enxadas, nem nos incomodamos. No dia seguinte estava faltando alguém conosco. Ao chegar ao cafezal fomos surpreendidos por um trágico acontecimento! Camurim estava morto ao lado das enxadas! Não foi tão difícil chegar à conclusão sobre sua morte. Ele tinha sido envenenado. Saiu para procurar o que comer, e deram-lhe comida envenenada!... Morreu vigiando as enxadas....Ficamos muito tristes! Foi uma terrível perda! Parece que morreu alguém da família! Sentimos muita falta do companheiro de todos os momentos! Ficou para nós a saudade e o exemplo de fidelidade do cão amigo e guardião, que sem pedir nada em troca, vivia para ser fiel... Este texto faz parte da antologia: “PALAVRA É ARTE”, 25ª edição, 2013. Pg 91 CULTURA EDITORIAL Salvador - Bahia. Arnaldo L. Pereira

domingo, 13 de novembro de 2016

Quando ela e a casa conversam

Ela tinha um jeito nada ortodoxo de limpar a casa, não conseguia seguir o padrão normal, se é que fazer faxina tem algo de normal. Não tinha hora nem dia marcado, previamente agendado, retirado dos dias normais, marcado como o dia do sacrifício.
Ela simplesmente acordava e enquanto sem pressa, degustava seu café, acordando a mente ou a desintoxicando, olhava em volta.  Começava a revirar os papeis na sua mesa-escritorio-santuário , arquivando, rasgando, separando, encontrava uma anotação, revivia um momento, um sentimento, alguns ate guardados a tanto tempo que nem mais fazia parte do seu dia a dia, mas existia. Acha uma foto aqui outra ali, e quando vai guarda-las em seu devido lugar acaba encontrando outras, e mais lembranças, e sentimentos.
E quando para, senta no sofá, liga a tv ou não, ve alguma coisa, escuta uma musica, viaja no tempo de novo, olha a estante, os livros, remexe e vai limpando, mudando de lugar as coisas, os sentimentos.
Vai nesse ritmo, sem ritmo, pressa, pressão, começando e parando quando quer sem agredir a alma, sem punir o corpo, limpando a casa, acaba por fim limpando a alma.
Objetos que contam historias, tem memórias, que ficam as vezes ali quietos, dentro de gavetas ou caixas, escondidos da vida que segue, revivem.
Revista a sentença retornam ao passado ou não, se já cumpriram sua missão o plástico negro , enorme, o guarda e aguarda a retirada do tempo presente.
Ela nao escolhe onde vai começar, ou recomeçar, é tudo meio sem lógica, sem a praticidade que leva no dia a dia. Por nada deixa a sala, remexe na cozinha, vai no quarto, fica lá. E essa blusa? Usei ela naquele dia......parece que foi ontem, mas não foi. Vai pro banheiro, limpando o box relembra a ultima vez que chorou no banho e por que, porque mesmo?
Tudo é ritualizado, um fio vai puxando outro, aos pedaços em cada pedaço, mesmo os despedaçados acham seu lugar, ou os perde.
Quando é muito o que sente, para tudo, outro café, ou cerveja, ou vinho, pega o telefone liga pra alguém, ou alguém liga, pausa para a vida que segue.
Isso leva o tempo que o tempo der, é dia de limpeza geral, material, emocional, espiritual, não é só a casa que limpa, é tudo que gira em torno, dentro dela.
As vezes acaba e descansa e se sente renovada, outras vezes para e deixa pro dia seguinte, por que não?
Afinal ela não é o que a casa mostrar,  é o que a casa esconde.