Se é algo que aprecio, rendo graças e tributo, é a fórmula, séria,
jocosa, sarcástica, seja como for, como aprouver alguém sentir nas pré-fundas,
A apreciação é maior, se for sarcástica, jocosa, faz-me rir, sentir-me mais
sarcástico, quanto mais podendo dela utilizar na vida quotidiana para destilar
ácidos críticos. O amor incondicional pelas fórmulas começou com a idade de
seis anos, quando li Quincas Borba, Machado de Assis, três meses antes de
entrar para a escola. A grande fórmula: “Aos vencedores, as batatas”.
Quincas Borba achava sua fórmula engenhosa, compendiosa e eloqüente,
além de verdadeira e profunda – completaria a idéia dizendo ser extravagante,
excêntrica. Achei-a, na infância, interessante, engraçada. Se alguém vencesse as
dificuldades, era merecedor de três sacos de sessenta quilos de batata, por
meses consecutivos comeria batatas, batendo no peito com todo orgulho e
vaidade: “Venci as dificuldades, como batatas”. Se vencesse os dramas de amor
conflituoso, angustiante, depressivo, era merecedor de dois sacos de trinta
quilos, mas depois de comidas em vários pratos, começaria a procurar outro amor
que substituísse o outro, fosse verdadeiro. Se vencesse todas as lutas por
real-izar os sonhos, ideais profundos, era merecedor de tonelada de batatas,
comê-las-ia por toda a vida, com direito a seis horas de sesta na rede do
alpendre, o resto do dia encheria a cara de cachaça na vendinha da esquina, à
noite dormiria satisfeito de cachaça e batata, sonhando com os prazeres e
alegrias dos sonhos real-izados, pela manhã acordaria cantando a plenos
pulmões: “Lá na venda/Lá na vendinha/É lá mesmo que tomo da boa
pinguinha/Depois das batatas e da sesta”, e na hora do banho matutino gritaria
a plenos pulmões para a comunidade inteira ouvir: “Real-izei sonhos profundos e
queridos, sou merecedor de comer batatas e beber cachaça”. Vovó é que ficava
tiririca de raiva por ouvir-me gritando essas coisas, deitado na banheira cheia
dágua: “Pare de gritar besteiras, meu neto. Depois não reclame, se fracassou na
vida”. Res-pondia: “Sou de família de fracassados, mas vou vencer e ainda comer
muitas batatas. Vovó, ponho em prática a fórmula machadiana. Quando for
escritor re-re-conhecido, vou escrever história”. Vovó ria. Aí cantava a
musiquinha da pinga da vendinha.
Há quatorze anos, se não me engano, chegou-me ao ouvido que autoridade
de nossa cidade havia entregue medalha de honra a uma entidade, embora dizendo
que muitos membros dela, noventa e nove, vírgula noventa e nove por cento não
era merecedora. Quase caí duro e fedendo com a notícia chegada aos sensíveis
ouvidos – há quando penso que Deus deixou de colocar cachorro no mundo para me
doar os ouvidos dele -, perguntando-me em que venceram para receber a medalha
de honra. Não encontrei qualquer razão plausível ou inteligível. Foi quando
cheguei à conclusão de que os vencidos merecem não batatas, mas medalhas de
honra.
Já era tempo de ampliar a visão – enfim, estava com quarenta anos; até
mesmo o mestre Machado de Assis iria cobrar de mim: “é tempo de re-criar ou
completar a fórmula de meu Quincas Borba” -, até então só acreditava que os
vencedores mereciam honras, re-conhecimentos vários, conforme aprendi com o
mestre. Ambos, vencedores e vencidos, mereciam encômios, nonadas de ouro,
questão de solidariedade, compaixão, enfim é angustiante saber que nada
conseguiram real-izar em vida, vão morrer com dores e sofrimentos atrozes, as
pré-fundas carcomidas pelas nonadas, a vida fora-lhes ingrata. Os homens dizem
que os vencidos são dignos de pena, comiseração. Foi quando aprendi a ser
humano.
Mas a respeito da medalha de honra que a autoridade concedeu, legou à
entidade, não pensei o mesmo, achei a atitude falta de senso, fosse a única
pessoa estava certo, estimulava a procurar os próprios caminhos e veredas,
dizendo-lhe que tivesse fé, esperança, Deus tarda mas não falta, com esforço e
perseverança poderia re-verter as inferioridades, frustrações, desinteligência
e burrice. Mas conceder medalha de honra àquela entidade não era ser humano,
defensor da doutrina cristã, ser compassivo, solidário, era ser inconsciente da
realidade dos homens, não saber que os membros daquela entidade não eram
vencedores ou vencidos, ocupavam lugares estranhos à espiritualidade deles,
nada eram. Simplesmente homens inconseqüentes, oportunistas. Não fosse a
autoridade amigo a quem respeito, a quem lhe reconheço posturas e condutas
idôneas, por quem nutro e alimento sentimentos verdadeiros, diria com todos os
pontos e vírgulas que colocava suas ideologias chinfrins.
Estava caminhando pela linha férrea, rumo à Ponte Leão, quando soube
desta notícia, aliás, dois dias depois de haver sido inaugurado o Asilo dos
Ensandecidos pela mesma autoridade a quem me refiro.
Aí, sim, andando, pensando, re-fletindo, meditando, cheguei à conclusão,
fundamentado na filosofia de Descartes e Sartre, “cogito ergo sum”, “sou o que
não sou e não sou o que sou”, que não era ser inteligente, homem digno,
endeusar Machado de Assis, mas con-templar única realidade que mostra,
de-monstra, inscreve na Bíblia Sagrada: “às pré-fundas, nonadas de ouro”.
Só me pergunto, treze anos depois, uma coisa: “Será que as nonadas de
ouro merecem as pré-fundas”. Canto a todos os pulmões, no banheiro de minha
residência: “Lá na venda/Lá na vendinha/É lá mesmo que tomo da boa pinguinha/E
traço nas linhas de uma agenda/ As asnices das pré-fundas”. E a mulher grita lá
da cozinha: “Pare de cantar asnada!”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário