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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

ÀS PRÉ-FUNDAS, NONADAS DE OURO - Manoel Ferreira Neto.




Se é algo que aprecio, rendo graças e tributo, é a fórmula, séria, jocosa, sarcástica, seja como for, como aprouver alguém sentir nas pré-fundas, A apreciação é maior, se for sarcástica, jocosa, faz-me rir, sentir-me mais sarcástico, quanto mais podendo dela utilizar na vida quotidiana para destilar ácidos críticos. O amor incondicional pelas fórmulas começou com a idade de seis anos, quando li Quincas Borba, Machado de Assis, três meses antes de entrar para a escola. A grande fórmula: “Aos vencedores, as batatas”.
Quincas Borba achava sua fórmula engenhosa, compendiosa e eloqüente, além de verdadeira e profunda – completaria a idéia dizendo ser extravagante, excêntrica. Achei-a, na infância, interessante, engraçada. Se alguém vencesse as dificuldades, era merecedor de três sacos de sessenta quilos de batata, por meses consecutivos comeria batatas, batendo no peito com todo orgulho e vaidade: “Venci as dificuldades, como batatas”. Se vencesse os dramas de amor conflituoso, angustiante, depressivo, era merecedor de dois sacos de trinta quilos, mas depois de comidas em vários pratos, começaria a procurar outro amor que substituísse o outro, fosse verdadeiro. Se vencesse todas as lutas por real-izar os sonhos, ideais profundos, era merecedor de tonelada de batatas, comê-las-ia por toda a vida, com direito a seis horas de sesta na rede do alpendre, o resto do dia encheria a cara de cachaça na vendinha da esquina, à noite dormiria satisfeito de cachaça e batata, sonhando com os prazeres e alegrias dos sonhos real-izados, pela manhã acordaria cantando a plenos pulmões: “Lá na venda/Lá na vendinha/É lá mesmo que tomo da boa pinguinha/Depois das batatas e da sesta”, e na hora do banho matutino gritaria a plenos pulmões para a comunidade inteira ouvir: “Real-izei sonhos profundos e queridos, sou merecedor de comer batatas e beber cachaça”. Vovó é que ficava tiririca de raiva por ouvir-me gritando essas coisas, deitado na banheira cheia dágua: “Pare de gritar besteiras, meu neto. Depois não reclame, se fracassou na vida”. Res-pondia: “Sou de família de fracassados, mas vou vencer e ainda comer muitas batatas. Vovó, ponho em prática a fórmula machadiana. Quando for escritor re-re-conhecido, vou escrever história”. Vovó ria. Aí cantava a musiquinha da pinga da vendinha.
Há quatorze anos, se não me engano, chegou-me ao ouvido que autoridade de nossa cidade havia entregue medalha de honra a uma entidade, embora dizendo que muitos membros dela, noventa e nove, vírgula noventa e nove por cento não era merecedora. Quase caí duro e fedendo com a notícia chegada aos sensíveis ouvidos – há quando penso que Deus deixou de colocar cachorro no mundo para me doar os ouvidos dele -, perguntando-me em que venceram para receber a medalha de honra. Não encontrei qualquer razão plausível ou inteligível. Foi quando cheguei à conclusão de que os vencidos merecem não batatas, mas medalhas de honra.
Já era tempo de ampliar a visão – enfim, estava com quarenta anos; até mesmo o mestre Machado de Assis iria cobrar de mim: “é tempo de re-criar ou completar a fórmula de meu Quincas Borba” -, até então só acreditava que os vencedores mereciam honras, re-conhecimentos vários, conforme aprendi com o mestre. Ambos, vencedores e vencidos, mereciam encômios, nonadas de ouro, questão de solidariedade, compaixão, enfim é angustiante saber que nada conseguiram real-izar em vida, vão morrer com dores e sofrimentos atrozes, as pré-fundas carcomidas pelas nonadas, a vida fora-lhes ingrata. Os homens dizem que os vencidos são dignos de pena, comiseração. Foi quando aprendi a ser humano.
Mas a respeito da medalha de honra que a autoridade concedeu, legou à entidade, não pensei o mesmo, achei a atitude falta de senso, fosse a única pessoa estava certo, estimulava a procurar os próprios caminhos e veredas, dizendo-lhe que tivesse fé, esperança, Deus tarda mas não falta, com esforço e perseverança poderia re-verter as inferioridades, frustrações, desinteligência e burrice. Mas conceder medalha de honra àquela entidade não era ser humano, defensor da doutrina cristã, ser compassivo, solidário, era ser inconsciente da realidade dos homens, não saber que os membros daquela entidade não eram vencedores ou vencidos, ocupavam lugares estranhos à espiritualidade deles, nada eram. Simplesmente homens inconseqüentes, oportunistas. Não fosse a autoridade amigo a quem respeito, a quem lhe reconheço posturas e condutas idôneas, por quem nutro e alimento sentimentos verdadeiros, diria com todos os pontos e vírgulas que colocava suas ideologias chinfrins.
Estava caminhando pela linha férrea, rumo à Ponte Leão, quando soube desta notícia, aliás, dois dias depois de haver sido inaugurado o Asilo dos Ensandecidos pela mesma autoridade a quem me refiro.
Aí, sim, andando, pensando, re-fletindo, meditando, cheguei à conclusão, fundamentado na filosofia de Descartes e Sartre, “cogito ergo sum”, “sou o que não sou e não sou o que sou”, que não era ser inteligente, homem digno, endeusar Machado de Assis, mas con-templar única realidade que mostra, de-monstra, inscreve na Bíblia Sagrada: “às pré-fundas, nonadas de ouro”.

Só me pergunto, treze anos depois, uma coisa: “Será que as nonadas de ouro merecem as pré-fundas”. Canto a todos os pulmões, no banheiro de minha residência: “Lá na venda/Lá na vendinha/É lá mesmo que tomo da boa pinguinha/E traço nas linhas de uma agenda/ As asnices das pré-fundas”. E a mulher grita lá da cozinha: “Pare de cantar asnada!”.        

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