Não tenho as maneiras súditas – se é algo por que tenho profunda ojeriza
é fazer parte de rebanho -, nem as curvas reverentes de outros indivíduos, tiro
o chapéu às caveiras, mas não reverencio os de raça e estirpe; exprimo-me com a
graça de um advogado benévolo, libertando inocente num tribunal. Pode esta
expressão não ser mais que uma galanteria, e as galanterias é de uso que se
agradeçam.
Se, à primeira vista, pareço fazer obséquio aos homens, propondo ser
benévolo, complacente com estas palavras com que inicio a dirigir-lhes acerca
de sublime reflexão que me perpassa o íntimo, deixando-me excitado e extasiado,
nem antes, nem durante, nem depois das palavras, mostrar no rosto a menor
comoção, embora não cumpra ser frio e calculista; tenho até umas sombras de
riso cáustico, um riso de meu uso particular e singular, que imita a
autenticidade e originalidade, tanto em momentos fáceis, alegres e felizes,
quanto em outros de insatisfação com a mediocridade e mesquinharia da natureza
humana, quando mofo de alguém, quando inspirado, de modo hermético e ferino,
noutras situações, ferino e rasgado. A natureza humana é digna de dó e pena.
O mais singular é que, se o relógio pára, faltou-lhe algo, dou-lhe corda
a fim de que nunca deixe de bater, e eu possa contar todos os segundos mortos,
todos os instantes perdidos, ficados para trás, jamais possíveis de serem
resgatados. A batida presente é efêmera, fugaz, num átimo morre, vem a futura,
quase nem tem tempo de ouvir-se, ouvi-la, é já passada, assim consecutivamente;
o relógio, o objeto-relógio permanece no seu mesmo lugar, segundos, minutos,
horas passam num piscar de olhos. Para sempre, ali, naquele lugar específico.
Na minha alcova, sobre o guarda-roupas, ao lado de uma porcelana de dois cisnes.
Sui generis é que, se a mão fica inerte, suspensa, à espera que o
espírito envie outra palavra grávida de idéias profundas, de sentidos e
significados múltiplos, de intenções ambíguas, ad-versas, contraditórias,
dialéticas, emoção ou sentimento quaisquer fazem-lhe movimentar-se, delineando
letras, sílabas, formando palavras. Criações, re-criações, in-venções há que se
trans-formam, trans-mudam, trans-cendem-se, acabam, o mesmo que lutar por levar
uma pedra ao topo da montanha, com o propósito de lá colocá-la, instalá-la,
mas, único passo faltando para isto, rola para baixo, tendo de re-começar tudo;
as palavras, juntamente com seus sentidos e significados, morrem; a inspiração
é definitiva e perpétua.
O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há-de ter um
relógio na algibeira, no alforje, se se quiser, para saber a hora exata em que
morre. O último escritor, ao despedir-se das letras vivas e grávidas, há-de ter
uma pena em mão, entre os dedos, se se quiser, para registrar o instante exato
em que a inspiração morreu, a criação dependurou a engenhosidade no cabide do
passado, a intuição arregaçou as mangas, a percepção esvaeceu-se nos horizontes
do efêmero e etéreo, a sensibilidade escafedeu-se nos liames do nada e vazio.
As fantasias tumultuam-se cá dentro – nada fácil dirigir-me aos homens,
através de palavras, nelas emoções, sentimentos, desejos, vontades, sem
inspiração, percepção, sensibilidade, sem sentidos, significações, sem
metáforas, símbolos, signos, através de caracteres mortos, sem tempo; vêm umas
sobre outras, à semelhança de beatas, devotas que se abalroam para ver o
anjo-cantor das procissões. Não ouço as batidas do relógio, instantes perdidos,
não vejo as letras mortas na página, mas os segundos que hão de vir.
O meu pensamento, ardiloso e traquinas, salta pela janela fora e bate as
asas na direção da eterna quimera, o silêncio da língua que pode re-nascer a
expressão verdadeira, verso ardente como o amor, prosa de prazeres que parece
dizer a cada letra que vou ter um instante menos de vida. No peitoril da
janela, encontro o prólogo de uma vida de palavras, de uma vida de delícias em
busca de meia dobra de página, trêmula de medo e angústia, único freio de uma
paixão sem freio, única rédea de fantasia sem fio de cordão grosso, único
cabresto sem limite de segurança.
Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e
pecas. O nosso amor pelas letras é daqueles; brota com tal ímpeto e tanta
seiva, que, dentro única batida do relógio paga à farta e de sobra o tique-taque
soturno, vagaroso e seco o instante da vida que outra coisa não é senão o tirar
de dentro o íntimo das esperanças e sonhos. Imagino, então, um velho diabo, sem
haver tido dons e talentos, sem qualquer condições de saber o que são
pensamentos, idéias, metido nas letras, acreditando estar expressando, na
verdade burilando caracteres conforme seus sentimentos e emoções mortos, mas
nada escrevendo ou significando, sentado entre a vida e a morte a tirar do nada
o vazio.
O amor... Entrei por outros becos, trilhei algumas alamedas outras;
irrita-me fundamentar as idéias que me surgem, como se o único interesse fosse
delinear um tratado sem precedentes de linguagem e estilo, fosse esclarecer as
pré-fundas das palavras; tergiverso, sou capaz de registrar coisas bem
ad-versas – daquelas que o leitor logo questiona: “o que tem a ver tique-taque
de relógio com o amor pelas letras?” Às vezes, encontro resultados ainda mais
ricos e profundos do que se me encafurnasse pela lógica e ordem das coisas.
Cabe ser perspicaz com a leitura, ter olhos de lince, enfiar o pince-nez na página adentro.
Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos; na juventude,
ouvia dizer que o amor só é verdadeiro se houver correspondência entre as
partes, caso contrário é fantasia ou quimera. Verdade ser bastante doloroso
amar e não ser amado, ser amado e não amar, o sofrimento é angustiante, até os
ossos doem, isto quando a carne não perece de frio, o coração congela o sangue.
Então, se me sento à mesa do escritório, ligo o computador, coloco CD de
música, iniciando a escritura, sinto mais presente o amor entre mim e as
letras, a correspondência é divina, perde-se a música em mim, esta se perde nas
letras e idéias, a inspiração se re-vela mais profunda, o ritmo mergulha na
poesia, a lírica desperta os desejos de mergulhar nos interstícios do espírito,
e este voa livre em busca, se é noite, da aurora, se é manhã, do crepúsculo. A
música foi sempre uma de minhas inclinações, e, não fosse temer o poético e
acaso o patético, diria que é hoje uma de minhas carências. Quis aprendê-la na
mesma época em que comecei de fazer datilografia, mas alguém dissera ou tocava
violão ou datilografava, violar não era datilografar, datilografar não era
violar, se violasse isso, nada faria. Escolhi datilografar, o amor pelas letras
era bem maior. Agora, vivo do que ouço aos outros. Escrevo à luz de
musicalidade, ritmo, arranjo.
Recebi de amigo, músico e poeta, uma missiva, caligrafia de esbugalhar
os olhos, cair o queixo, desejo incólume de treinar em caderno de duas linhas
para melhorar os meus digníssimos garranchos; estava solitário em seu quarto,
deitado na cama de solteiro, ouvindo músicas; para escapar às dores e
sofrimentos, lembranças e recordações de outrora, momentos felizes misturados
com outros angustiantes, decidiu sentar-se à mesinha, re-velar o que a música
despertava em seu íntimo, como ela fluía em suas entranhas, melhor ainda, como
suas entranhas fluíam ao ritmo dela, como a musicalidade aflorava o que estava
trancafiado a sete chaves. Recebi a missiva. Divina. Maravilhosa. Li-a num só
fôlego, esqueceu-me até o cigarro queimando no cinzeiro, não tive qualquer
necessidade de tragar fumaça. Quem me dera se, como ele, pudesse descrever as
notas da música, conciliadas às emoções e sentimentos que afloram em mim,
inscreveria a vida na trans-cendência, só esta matéria ridícula, de carne e
ossos, ficaria na terra, esperando o momento de ser transportada para os sete
palmos que lhe são de fato e direito. Senti inveja? Não. Não sei o que em
verdade é isto, conheço apenas o significado dicionarizado dela, li alguns
tratados bem interessantes no que tange às suas conseqüências e efeitos
catastróficos. Senti ciúme? De modo algum. Senti-me carente da profundidade, da
correspondência amorosa entre as letras e a música. Saí de casa, terminada a
leitura da missiva do músico-poeta, tinha muitas coisas a serem resolvidas,
ficaria o dia inteiro fora de casa, não traçaria nenhuma letra, se se quiser,
fonema, na página branca de papel. Cheguei a casa por volta das oito horas da
noite, ligando o computador, colocando CD de música, tomando em mão da missiva,
lendo um sem-número de vezes. Só perto de uma da manhã comecei a pescar no
vazio, urgia que fosse dormir. Todo o tempo da rua, tratando de meus negócios,
da casa e da cama, foi consumido em repetir versos de Bob Dylan: “How many
seas/must a white dove sail/ before she can sleep in the sand?”, às vezes
mentalmente, às vezes cantados em alto e bom som.
Se houvesse aprendido música, tocar, não creio que tenha dons, tivesse-os
para compor, apenas para executar, tocaria agora ou comporia, sob o efeito da
missiva do músico amigo? Quem sabe compusesse uma sublime lírica de reflexão
morta?! Quem sabe executasse Deus lhe pague, de Chico Buarque?
Dormi o sono dos real-izados, felizes com os resultados adquiridos com
uma leitura musical de letras, com efeito o amigo não escreveu uma lírica
imaginária de literatura à luz da solidão de seu quarto, de suas experiências
em busca da sublimidade. Tive sonhos. Vivi-os extasiado e estesiado. Não me
lembra deles. Estão inscritos no inconsciente divino, estão inscritos nas
estrelas cadentes de minhas carências profundas.
Aquele 06 de junho (ontem) há de ficar-me na memória, mais fixo e mais
claro que outros, devido à missiva do amigo, músico e poeta. Não escrevo tudo,
faltam-me dons e talentos, as letras amam-me verdadeiramente, entregam-se
inteiras a mim, não sei corresponder a este amor, quem me dera a habilidade de
real-izar a trans-cendência delas. Não vou cair naquela mediocridade, mesquinharia,
imbecilidade, idiotice de Bruna Lombardi, quando disse numa de suas
entrevistas: “Não usei as letras. As letras me usaram”, o que mostra e
demonstra ser ela uma verdadeira “Maria Parafuso”; aliás, o que concordo em
gênero e espécie, disse outro músico e poeta de minhas relações sensíveis:
“Bruna Lombardi é pior que Faustão, não tem a menor noção de palco”.
Terei engolido um cão filósofo? Não é novo para mim comparar os mortos
da reflexão sublime com a sublimidade da reflexão morta.
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