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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

COMPLEMENTO DE METAFÍSICA PROFUNDA - Manoel Ferreira Neto.



Se, acaso, nada mais que acaso, disser que a criatura humana traz duas almas consigo, diriam todos que, para chamar a atenção, estou in-ventando, criando coisas, quero a todo custo mostrar sou capaz de filosofar; algumas pessoas afirmariam estar eu  ensandecendo. Alguém, pensando e re-fletindo, sobre esta afirmação, defender-me-ia; uma das almas que na concepção minha é a da última encarnação, a outra desta. Embora a defesa, o que muito me orgulha, deixa-me encantado e vaidoso, não acredito nisto. O supremo Criador cria outros espíritos e lhes dá vida; se se aceita a reencarnação, afirma-se que Ele não mais cria, o que é um absurdo, despautério sem igual. Pergunto-me: o número, quantia, melhor dizer, dos falecidos é maior que a dos vivos, vice-versa, morreu mais do que nasceu? É a mesma quantia? Não tenho res-postas para este questionamento.
Mas como é isto de a criatura humana trazer duas almas consigo? Seria capaz de isto esclarecer com transparência, de modo que os homens sejam convencidos? Ou não há como  fazê-lo de tão absurda esta idéia? Sei que isto não tem cabimento, gasto tinta e papel à toa, para não ficar sem escrever. Papel aceita tudo.
Não. Tenho sim como esclarecer, não me falta capacidade. Não peço a quem quer que seja acreditar em mim, depositar confiança nas minhas palavras, do mesmo modo não peço que os homens re-flitam, meditem. Posso afiançar que, terminando, não mais pensarei a respeito, serão letras de pergaminho. Cumpre criar outras, outras, outras...
Uma que olha de dentro para fora – assim começo de explicar-me sobre isto de a criatura humana trazer duas almas consigo -, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, ad-mirem-se com a minha criatividade; podem ficar de queixo caído, de boca aberta, olhos esbugalhados, dar de ombros, tudo, dizendo: “Já ouvi muitas asneiras, sei que vou ouvi-las por todo o sempre; mas esta supera todas as outras. Meu Deus! Como se tem dito asnadas nos últimos anos. Esta ainda é pior que as demais. Só podia ser dita por um imbecil”. Não ad-mito repicas. Se me replicarem, acabo a cerveja que estou tomando, fecho a agenda, vou embora para casa dormir; acabo de chegar de viagem, encontro-me sobremodo cansado, tive dor de cabeça por volta da hora do almoço, tomei um comprimido de Dorflex; felizmente passou.
Continuando minha explicação – é na continuidade das idéias que o sentido se mostra, re-vela-se, sendo possível com-preender, não sendo o mesmo que aceitar, endossar, pode-se discutir -, a alma exterior pode ser um espírito, fluido, um homem, muitos homens, objeto, operação. Há casos, por exemplo, em que um simples zíper de calça é a lama exterior de uma pessoa, - e assim também um livro, agenda, câmara digital, um par de botas, uma aliança de casamento, um maço de cigarros, etc., etc. Está claro, não diria óbvio, pois que a obviedade fecha e tranca qualquer possibilidade de raciocínio, de pensar com senso e sabedoria, que o ofício da segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem que é, metafisicamente falando, uma maçã. Dou um sorriso agora, lembrando-me de um mendigo louco, com quem me encontrei à porta de uma farmácia, dizendo: “dois pelados e uma maçã”; este louco todas as manhãs cria uma idéia absurda e por todo o dia a repete – uma de suas idéias mais descabidas, a barata ser feliz porque come o miolo do pão. Não sei a que se referia dizendo: “dois pelados e uma maçã”, mas de imediato pensei em Adão e Eva no  Paraíso. O que penso não é o mesmo que um louco diz.
Quem perde uma das metades – da alma ou da maçã? – perde naturalmente metade da existência; se faltar a alma que olha de dentro para fora, ficaria apenas com a que olha de fora para dentro, vice-versa; casos há, não raros, também não comuns, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Paraguai, cognome de Sérgio Pimenta. A alma exterior daquele judeu eram os seus cúmplices e álibis de suas atitudes ridículas; perdê-los equivalia a morrer. “Nunca mais poderia tirar dinheiro do cofre público, sendo mero funcionário da Prefeitura, construir uma casa. Felizmente, que ninguém me denunciou, foram, ao contrário, ao meu favor: enfim o cofre estava abarrotado de notas graúdas”
Agora é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma.
Por que não? De-monstrá-lo é mais uma asnada que afirmo? Não acredito. Tenho a explicação na ponta da língua – como na infância dizia à professora antes de começarem as aulas: “estou com a minha lição na ponta da língua - , nem me fora preciso espremer os miolos, ler um sem-número de livros. A alma exterior muda de natureza e de estado. Devo nesta altura das palavras e linhas esclarecer que não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, a terra-natal, com as quais dissera o Camões que morria, e o poder, que foi a alma de Pilatos. São apenas enérgicas e exclusivas, a de Pilatos, a de Camões; há outras, contudo, embora enérgicas, de natural mutável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho de cascavel, um cavalinho de vassoura, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos, elucubremos. Pela minha parte, conheço um indivíduo, – na verdade, gentilíssimo, educadíssimo, finíssimo, - que muda de alma oito, nove vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera do silêncio; cessando a estação, a alma substitui por outro: um concerto, um baile no Curvelo Clube, na Praça Benedito Valadares, à avenida Dom Pedro II, que, particularmente, chamo de Praça do Velho Fórum, embora o prédio tenha sido destruído, os curvelanos são avessos à memória histórica. 
Nesta altura de página e meia escrita, para esclarecer isto de a criatura humana trazer consigo duas almas, devo dizer que vou afirmar coisa ainda pior. Convém dizer-lhes, leitores, que desde que levantara, tomara o café da manhã, descera as escadarias da cozinha, indo para o meu escritório, ficando só, não levantara única vez, dirigindo-me ao banheiro, olhando única vez no espelho da pia. Não era “abstência” deliberada, não tinha motivo, não era necessário buscar des-cobrir na imagem refletida algum traço de minha personalidade e caráter, uma emoção que tenha deixado a fisionomia diferente; era um impulso inconsciente – a inconsciência  re-vela coisas do “arco-da-velha”, e quem quer ser o mais explícito possível deve servir-se dela, a sua verdade é inconteste, mas é preciso não só cor-agem para assumir-lhe, é preciso ser autêntico, não ter medo de censuras – um receio de achar uma alma que olha de dentro para fora, olho de fora para dentro a imagem refletida na superfície lisa do espelho, olho da imagem para o meu interior.
Antes de sair do escritório para ir almoçar um delicioso caldo de costela com mandioca que minha senhora fez questão de fazer por estar voltando de viagem, ser um de meus pratos preferidos, deu-me na veneta – substituindo este termo por outro que se adéqua melhor à idéia que pretendo mostrar -, deu-me na teia, antes de fechar a porta, desligar o computador, ir ao banheiro olhar para o espelho com o fim justamente de ver a alma que olha de fora para dentro. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do uni-verso, com o princípio dos horizontes próximos e distantes; não me estampou a imagem nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. Atribui isto às reflexões que estavam presentes, mais do que presentes e forte, sobre as duas almas que a criatura humana traz consigo. A realidade das leis físicas não permite negar, negligenciar, recusar que o espelho re-produziu-me textualmente com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Não fora a minha sensação. Tive medo – o que é in-com-preensível por ser homem que não teme ver a sua própria verdade, busco-a sempre, custando o que custar; atribui o fenômeno ao cansaço de minha viagem, às alegrias e satisfações que vivi, vivenciei, experimentei nisto que é a minha vida. Receei ficar mais tempo olhando a imagem refletida no espelho, e enlouquecer, enfim é difícil distinguir com categoria as duas almas que trago em mim.
Vou almoçar, disse-me a mim próprio. Levantei o braço com gesto de mau humor e, ao mesmo tempo, de decisão, olhando para a superfície lisa do espelho; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado. Estava-me a olhar na superfície lisa do espelho com uma persistência de desesperado, angustiado, triste, con-templando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, brancas, informes, quando tive o pensamento: “estar com dor de cabeça é resultado, conseqüência de estar pensando nisto de a criatura humana trazer consigo duas almas”. Antes de sair de frente ao espelho, um questionamento: “Se não for eu criatura humana, mas simplesmente ser humano, será que traria comigo duas almas?”. Não pude res-ponder.
Fui almoçar. A comida de minha mulher, o caldo de costela com mandioca, estava mesmo uma delícia. Não mais pensei nas duas almas; pensei no espírito que habita o ser humano. 


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