Perturbadora
realidade dessa vida tão simples, plasmada com o ímpeto vigoroso das plantas e
que se tornava mais nítida ainda, ante essa força que me levava a compará-la
com a própria vida, toda ela de sentimentos desencontrados, de emoções caladas,
de sofrimentos e derrotas jamais esquecidos.
Se vós, com a
vossa sabedoria secular e milenar, observardes deslizes e farsas, aos idílios
compactos as falsidades, perdoai-me, peço-vos mostrardes com veemência, podendo
assim recusá-los e rejeitá-los, o caminho do calvário para as buscas mais
íntimas e espirituais terei o orgulho e satisfação de trilhar passo a passo.
Não o terei dito, escrito com a intenção de expor as máscaras, vivo-as, e a
luta é transformá-las, tornar-me verdadeiro em mim.
Sonhos dentro
de outros sonhos, dentro de outros sonhos isso nos habita. Sonhar é bom, melhor
ainda é real-izar... Desejamos sempre tirar as nossas máscaras, mostrar o nosso
próprio rosto frente ao espelho, e a imagem corresponder com o que lha
projetou, gerou. Desejamos ser o mais autêntico possível, e, no entanto, muito
pouco fazemos para isso tornar uma realidade nossa, o que penso e sinto ser o
mais fácil para vós, a lei do menor esforço para nós, os homens.
Sei que são
fortes os motivos que insisto em viver, buscar o verbo amar com entrega e
doação; sei também que foram grandes as perdas, mas sem elas não teria
despertado e querido ver-me superá-las com engenho, e em poucos anos de lutas e
desejos os mais profundos consegui não apenas superá-las, mas construir o que
por longo tempo estive à procura.
As dores
tomaram-me de assalto o que para mim era o mais importante. Não perdi tudo –
necessitava perder o que fora perdido para o novo encontro, desencontros, e o
que lera com dedicatória num livro de presente de um dos maiores e melhores
amigos: “Há instantes em que encontramos. Há outros que desencontramos, mas é
preciso não deixar o fogo da lenha da fornalha apagar”.
A solidão é a
fornalha da transformação. Sem a solidão permanecemos vítimas de nossa sociedade
e continuamos a nos enredar nas ilusões do falso eu. O próprio Jesus entrou
nessa fornalha. Ali, ele foi tentado com as três compulsões do mundo: ser capaz
(“ordena que estas pedras se transformem em pães”, ser espetacular (“atira-te
para baixo”) e ser poderoso (“Tudo isso te darei”). Ali, ele afirmou ser Deus a
única fonte de sua identidade (“Deves adorar o Senhor teu Deus e só a ele
servir”). A solidão é o lugar da grande luta e do grande encontro – a luta
contra as compulsões do falso eu e o encontro com o Deus zeloso que se oferece
como substância da nova individualidade.
Com o tempo,
adquiri as reflexões necessárias e imprescindíveis para a compreensão dos
mistérios e enigmas da vida, dificuldades e contradições, hermetismo e
prolixidade da alma, e eu incluo no tempo a condição do estudo, análise e
inter-pretação dos problemas vários que me habitam, psíquicos, emocionais,
intelectuais, sociais e individuais – perguntei-me outrora em momentos
diferentes, sentindo-me patético: “o que vou fazer com todos estes “ais” de
minha vida; se pudesse convertê-los em “uis”, já estaria conformado com a
natureza e condições minhas”.
“Ui” que
deslize este meu, ao invés de solucionar o problema, envolvi-me ainda mais nas
suas teias malignas, mas é uma experiência e vivência; “ui” acabei de pisar na
bola, reconheceram-me os méritos e valores, mostrei o homem in-digno que sou,
contudo é fácil resolver isto, basta-me refletir e pensar no futuro; “ui”
apaixonei-me perdidamente por uma mulher que só me tem trazido problemas,
entretanto é esquecê-la vez por todas. Com os “uis” posso projetar o futuro,
crescer, amadurecer, espiritualizar-me; com os “ais” permanecerei o mesmo por
todo o sempre, serei igual a todos os homens, e é o diferente que faz o homem.
Essa era a
minha ambição de jovem, nos píncaros dos sonhos e desejos intelectuais, sem os
quais o espírito fica amarrado na eterna infância, fica agrilhoado nos idílios
e quimeras, sem conhecer o efêmero, sem buscar o absoluto.
Ninguém, enfim,
perde tudo – creio que perde o que tem de perder, o que imprescindível para o
crescimento, amadurecimento. Existe uma chama dentro de mim, de todos os
homens, que nunca se apaga. Inevitável mesmo é soprar sobre ela, mesmo diante
destas ou daquelas situações, de pessoas que desarrumaram nosso lar. Cada
situação ou circunstância de cinza no humano é a revelação de uma chama divina.
Às vezes, não
sabendo se atribuir isto à condição, à natureza humana, é difícil admitir
encontrar uma saída. Torna-se para o homem mais fácil deixar as pedras rolarem
ladeira abaixo, rápidas ou lentas, o tempo seguir o seu itinerário. Isso não
exige quaisquer esforços, empreendimentos.
Preferimos
ficar em nossos ódios, ressentimentos, mágoas, rancores, culpado o mundo e os
que nele habitam por nossas infelicidades, vivendo como vítimas do destino,
querendo piedades e dós de todos os que nos cercam.
Refazer a vida
não é fácil, mas é possível! Devemos tentar quantas vezes forem necessárias. A
persistência, insistência...
Para mim, não
fora difícil – isto não significando que fora fácil -, desde quando intuí o
caminho seria o de deixar as águas fluírem normalmente. As águas prometeram-me
devolver as primaveras, não me queriam ver um mar morto. Deixei-as vazarem,
levarem-me para bem longe tudo que fora mágoa em minha vida.
Pedi que as
águias levassem-me para bem longe das praias as lembranças que me amarravam em
muitas dores e sofrimentos. Escrevi com as mãos, ainda que vazias, a palavra
“silêncio”, nas areias de todos os desertos por que passara. Pedi ao silêncio que
não deixasse a esperança perder-se nos sibilos de ventos de entre as serras.
Pedi aos verbos que devolvessem ao meu coração a oportunidade de tentar de
novo. De tentar mais uma vez amar.
Digo, dizendo,
a vida não forçar ninguém à infelicidade ou à alegria, o último gesto é ser o
homem a manifestar, os últimos passos são o homem a dar nas trilhas a serem
percorridas. Aos pedidos todos que fizera, recebi como resposta que me
encostasse no que fora rompido, perdido, a forma voltaria, e de novo os sonhos
visitariam os meus anseios...
Seria
muitíssimo difícil para mim, se nalgum instante interrompesse a caminhada
perdida e confusa, olhando para trás e percebendo que passei toda a vida com a
sensação de ser apenas cacos. Não podia viver em metade, ou estava todo, ou
algo de mim ficaria fora da história, que me desejava inteiro.
Não sei se diga
nesse estilo ou linguagem, há outros, mas a verdade é que a vida exigiu com
prepotência e arrogância, através dos sofrimentos e dores, dificuldades, que me
conhecesse para que soubesse como superar as coisas. Custaram-me longos anos a
aprendizagem, oito anos, mas só tendo consciência do dom é que me foi possível
libertar-me das algemas. O dom era o de mergulhar na alma humana. Segui a
carreira de psicólogo.
Acreditei em tantas
coisas. Na beleza, na sinceridade das pessoas, no eterno que abrigava as
amizades e deixava, na memória dos ventos e sibilos, um disfarçado ar de herói,
passei a vida em brancas nuvens – adulterando um pouco o sentido do adágio:
“Quem passou a vida em brancas nuvens não viveu, vegetou” -, não sofri e tive
dores como os homens.
Sabe, viajante
do sublime, eu acreditava poder ser feliz. Acreditava num mundo grande, onde os
homens pudessem se saber solidários, compassivos, onde de mãos dadas se
satisfaziam com as conquistas dos outros. Acreditava que a minha rua daria nas
estrelas... a fresta de uma árvore, em verdade, uma mangabeira, daria no
infinito, na eternidade.
- Por quê? Não
sei. Um coração de mulher não tem a profundeza do mar. Você o aprenderá por si!
E é verdade que Sônia Balço queria fugir com Arnaldo de casa, é verdade, ela
desprezava o velho, ela pensava que lhe havia tirado tudo o que tinha de
vida... Será que ela gostou de Arnaldo no início, ou foi uma simples
necessidade de mudança? No entanto, em nada o contradigo. Se quisesse leite de
pássaro, dar-lho-ia. Ela é orgulhosa. Quisera ser livre, mas não saberia que
fazer com a liberdade. Portanto, é melhor as coisas fiquem como estão. Eh,
Ilíade Adriano, você ainda está novo demais, tem o coração quente. A liberdade,
meu amor, não foi feita para os corações fracos.
Algo veio a
bater de frente com tudo isso. Devastou as florestas que cobriam minhas serras
e encantavam as estrelas que velavam o ossuário da terra. Tudo foi parecendo um
vazio, abismo, eu querendo um caminho que levasse ao verbo amar, sempre, que me
levasse a ser, sempre, um humano melhor, e tendo que conviver com a sensação de
não conseguir ouvir-me-ser.
Sonhei as
sementes do sagrado desvelando a mim e dando ao mundo motivos maiores, podia
sentir o gosto dos frutos que colhia. Sonhei com os homens grandes, capazes de
tudo por terem dito suas palavras. Homens capazes de dar a vida por um sonho de
liberdade e solidariedade, vidas capazes de amar o impossível. De não temerem
as madrugadas escuras e solitárias, com suas chuvas, na hora de estenderem a
mão a quem quer que fosse. Cavaleiros solitários, sempre partindo, deixando
para trás rastros de saudades e melancolias e um desejo de reencontro.
Acho que tinha
conhecimentos, sabia como viver melhor porque admitia ser possível viver
melhor. Fiz de minhas mãos um caminho-da-roça para ir mais longe.
Não sei porque
estou falando isso. É que foram tantas as vezes que fiz silêncio, ao escutar as
águas seguindo o seu itinerário sem pressa, sem margens, ao escutar o grito do
mundo, e hoje calou o mundo e eu posso falar. Às vezes, tudo o que preciso é
que alguém me empreste o coração e deixe minhas palavras tão guardadas irem
como uma cabeça se abrigar entre o peito e o ombro.
Venho, mais uma
vez, à beira deste rio de águas límpidas. Trago, como uma escrita a ser ainda
traduzida, sinais de tudo que a vida escreveu na minha face. Linguagem que
poucos entendem, compreendem. Falas silenciosas, vozes mudas. Só quem é muito
íntimo chega, aborda e compreende.
Vós detestais
tudo e todos, e é em momentos assim, imóvel diante do espelho que compreendo a
extensão da frieza que vos habita – qualquer coisa funda e sem consolo,
opressiva, estagnada, tal como se no vosso íntimo tudo houvesse se crestado, e,
com a força dessa queima, houvesse perdido qualquer possibilidade que existisse
em vossa alma, de ternura e de perdão. Não sei dizer por que sois assim, talvez
alguém o soubesse dizer em meu lugar. O que sobra, afinal, é o ser no fundo do
espelho: move-se de um lado para outro, pisca, sorri, mas está morto há muito,
e o que está morto não ressuscita mais nem do lodo e nem da infecundidade.
Estabelecidas
assim as nossas medidas e limites, excelente se os transcendermos, creio que a
nossa conversa será muitíssimo interessante, sou o co-autor dessa missiva, a
minha árdua e dura tarefa será de registrar na folha branca de papel, muito
mais difícil e complexo, pois a aprendizagem será imensa; contudo, não, não me
esqueço das lições da des-aprendizagem de tudo o que me habita na alma, o
alfabeto de silêncios oblíquos é as experiências e as vivências através de um
habito que trago em mim desde..., conversar com a humanidade.
Peço-vos que
abris um parêntese para um pormenor sem importância, poderá deixar-lhe de lado,
saltando-, lendo o próximo. Contudo, desde o início dessa missiva, quando
começastes a lê-la, estivestes mais curiosa por saber o que estou a dizer-vos,
o que me afligiu tanto para servir-me da pena para deixar impresso, as palavras
que trocamos nesses todos anos foram levadas pelo vento. Não sei se é uma
sabedoria indiana, mas diz: “O que se diz aos ventos, eles recolhem, e espalham
por todos os cantos do mundo”.
Mesmo sabendo
ser a minha profissão psicólogo, estivestes um segundo qualquer preocupada em
estabelecer os limites psíquicos, para que pudésseis entender. Não. Até esse
segundo, desde que começastes a lê-la, o interesse fora saber de minhas idéias;
nem por átimo de segundo, pensastes que seria preciso consultasse um
psiquiatra, pedir-lhe orientação sobre isso e aquilo, poderia estar ficando
doido. Conversar vós entendeis, mas alguém escrever-vos uma missiva é
inusitado, excêntrico.
Dura tarefa,
pois se é mister considerar as entrelinhas e além-linhas de nossos diálogos, a
fim de se poder ter uma imagem, interpretação sobre todas as coisas que
conversamos, quem sabe até mesmo necessitando de conhecer as sombras que
antecedem as luzes em nossa história, o que é uma reflexão sobremodo
profunda. Isso posso afiançar-vos,
mantendo, obviamente, o respeito e consideração que por vós nutro.
Muitos há que
se sentem bem, amados, queridos, se num momento assim têm com quem conversar,
expor os dramas e conflitos que se encontram latentes e isso os está
angustiando, deprimindo, ouvem, aconselham, sabem o que lhes é melhor, e num
breve espaço de tempo se sentem restabelecidos para a caminhada.
Desejo
dirigir-vos a palavra. Preciso que todos me ouçam, preciso que todos saibam
quem sou, e num diálogo no silêncio posso revelar as minhas entranhas que tudo
será guardado no mais perfeito sigilo, como eu próprio o sei. A humanidade é
compassiva no silêncio, e quem a ela se dirige, pode ter a certeza de que as
palavras não mais serão esquecidas, e a compaixão estará sempre presente.
Quem sabe, se
alguns homens a lerem, não dirão simplesmente que na cabeça deles não existe
compaixão, existem sim dó e pena, para se chegar a pedir à humanidade que
ilumine os meus passos e traços, perdoando-vos por vossas condutas e posturas
de não, arbitrárias e gratuitas, sou digno de dó e pena, um louco, varrido,
esquizóide, neurastênico... Isso é um absurdo, é preciso haver sido esquecido
pelos vermes que corroem a carne. Que a humanidade pereça no fogo do inferno –
posso garantir-vos que alguns homens dirão isso, se lerem essa missiva, mas com
o decorrer dos dias, meses e anos chegarão a admitir que é necessário aderir-se
aos sonhos da humanidade.
Qual o problema
de a humanidade ser compassiva no silêncio, isso porque sabe ouvir, aconchegar
no peito, mostrar seus caminhos e trilhas desde toda a eternidade, e nunca
perder a esperança, compassiva porque compreende e entende as dores e
sofrimentos; e isto trazemos os homens dentro de nós, isso nos habita a todos,
a ninguém será revelado, pois todos já ouviram e sabem o que nos perpassa inteiros.
Esse esgar que alguns dentre vós mostram em seus rostos, inclusive o olhar de
esguelha, sei-o, tornou-se algo até vulgar de interpretá-lo de tanta asnice,
quando alguém, não me recorda o nome, dissera que o mineiro só é solidário no
câncer. São as tais frases ditas com o interesse de eternidade, já que nada
puderam deixar no mundo que tivesse valor insofismável. Compreendo. Mas o que
escrevo, podeis entender perfeitamente, é que no silêncio podemos conversar e
nos entender, contribuindo cada um de nós com o crescimento e desenvolvimento
de nós mesmos. Trocamos experiências e vivências. Ouço-vos dizer, alguns até
murmuram, sussurram, mas ouço as vozes e a fala, podendo assim mostrar-me,
identificar-me, contar de meus problemas, prazeres, dores, sofrimentos,
alegrias, contentamentos em busca da “felicidade”, que é a nossa vocação. E
tantos caminhos sinuosos, não é verdade?!
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