Creio que algumas pessoas
preferem a anedota, faz rir, diverte, espairece as idéias, desvencilha-se das
pré-ocupações diárias, à re-flexão, difícil é saber das dores e sofrimentos,
problemas que habitam, buscar soluções cabíveis, trans-formar a vida, encontrar
tranqüilidade e paz.
Acordei com idéia fixa de
dedicar algumas palavras à anedota, divertir as pessoas, alegrar os leitores, o
mundo está virado de cabeça para baixo, só angústias, tristezas, crises, medos,
violências, corrupções. Faz muito bem uma anedota.
Tomando o banho matutino, não me
ocorreu nada que fosse sobremodo fixo neste mundo: talvez a lua, talvez as
pirâmides do Egito, talvez a lápide de uma sepultura. Por que isto de dedicar letras à anedota era
“idéia fixa”, se nada é fixo; era, sim, um desejo presente e forte de mudar os
horizontes das idéias que me habitam sobre a vida, as esperanças de liberdade,
de espiritualidade. Assim, não sendo idéia fixa, como iria criar uma anedota,
trans-crever alguma ipsis litteris que ouvira contar, que li nalguma revestinha
especializada. Só poderia criar a anedota, se fosse idéia fixa, dizem que
“carro apertado é que anda”, a idéia simples e pura necessitaria de se libertar
da fixidez, voarem por outros campos, vales, florestas, viajarem nas nuvens
tranqüilas e serenas.
Todavia, pensava comigo,
enquanto ensaboava o peito, importaria dizer, quando tomasse da pena para
escrever, esclarecer aos leitores que a obra seria escrita com pachorra, com a
pachorra de um já desafrontado da brevidade da primeira década, do século XXI,
obra supinamente filosófica , de uma filosofia desigual, austera, logo
brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regala, não
empola e excita, e é todavia mais do que passatempo, diversão, digressão, e
menos do que apostolado.
Não há meiguice moral que corte
uma polegada sequer às abas do tempo, quando o homem não tem modos de o fazer
mais curto.
Empacou o jumento em que eu
vinha montado, grudadas as mãos na rédea, questão de segurança; fustiguei-o,
deu dois corcovos, depois mais três, enfim mais um, que me sacudiu fora da
sela, com tal desastre, que o pé direito me ficou preso no estribo; tento agarrar-me
ao ventre do animal, mas já então, espantado, disparou pela rua da grota fora –
assim a conheço, desde a infância, quando estudei no Grupo Escolar Dr. Viriato
Mascarenhas, mas tem seu nome próprio, não o sei. Digo mal: tentou disparar, e
efetivamente deu dois saltos, mas alguém, que estava á soleira da mercearia,
acudiu a tempo de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo, as
ações solidárias exigem sempre grandes esforços, perigos de toda natureza.
Dominado o bruto, desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.
- Olhe do que você escapou,
disse a pessoa, olhando-me, preocupado.
Agradeci-lhe cordialmente,
dizendo-lhe que noutros tempos ninguém me socorreria, assistiria de camarote à
cena, rindo, pensando era eu merecedor, que era bem feito; mas alguma coisa
extraordinária estava acontecendo, pois que alguém me parara na rua, no dia
anterior, soubera que sou cardíaco, pedindo-me que parasse de fumar, era eu
muito importante, não queria ninguém perder-me para a morte. Perguntei-lhe que
importância tinha eu, respondendo-me que entregar esterco nas casas para adubar
os jardins era muito importante, a cidade estava maravilhada com as flores de
todas as espécies, mudei completamente o panorama. Naquele acidente com o meu
jumento Nullus, socorria-me ele.
Era verdade, escapei de uma
terrível; se o jumento corre pela rua da grota fora, em direção ao Grupo
Escolar, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do
desastre; cabeça partida, braços e pernas quebrados, uma congestão, qualquer
transtorno cá dentro, lá se me ia a importância que adquiri em entregar esterco
nas casas, a minha alegria e satisfação; não mais poderia olhar de modo cínico
e sarcástico para uma ex-autoridade que se achava mui importante por haver
plantado semente de palmeira ao redor do cemitério, dizendo-lhe: “Esterco nos jardins
proporciona flores, embeleza a cidade”. Sem qualquer interesse político,
ideológico, apenas um sonho de embelezar, de os homens se sentirem felizes e
alegres. Completando a minha crítica á ex-autoridade: “Suas palmeiras estão
fora do cemitério, nenhuma sombra incide nas sepulturas, o sol continua
castigando-as, os cadáveres insatisfeitos não podem dali sair. Seu grande feito
de que tanto se orgulha, dizendo a todos, de nada serve, apenas aparência”.
A pessoa que se encontrava à
soleira da mercearia salvara-me talvez a vida; era positivo. Eu sentia no
sangue que me agitava o coração com três “stents”
Enquanto tomava consciência de
mim mesmo, o meu salvador cuidava de consertar os arreios de Nullus, com muito
zelo e arte. Se não estivesse assustado, diria até tratar-se de um artista,
tomando em conta seus gestos e esmeros. Resolvi dar-lhe uma imagem de Maria
Santíssima que trazia dependurada numa correntinha de outro no pescoço; não
porque tal fosse o preço de minha vida – essa era inestimável. Mas porque era
uma recompensa, digna da dedicação com que ele me salvou; Maria Santíssima o
iluminasse sempre a socorrer os necessitados.
Já não digo o que pensei dali
até o Hospital Santo Antônio, a pé, puxando Nullus. À noite, não pude dormir;
estirei-me na cama, é certo. Ouvi as horas todas da noite. Quando eu perco o
sono, o bater do pêndulo faz-me mal, maior que posso imaginar, o tique-taque
soturno, vagaroso e seco parece dizer a cada golpe que vou ter um instante de
vida a menos. Imagino um velho diabo carcomido pelo passado.
Lembrava-me deste acontecido,
enquanto me banhava. Não era anedota. Havia acordado, uma hora que dormi, com a
idéia fixa de escrever anedota. Tinha de fazê-lo.
Em verdade, jamais ouvira contar
anedota de filósofo. Sócrates sempre, em toda a história do pensamento fora
vítima de inúmeras lendas, mitos, piadas, anedotas, o que dificulta bastante o
entendimento e compreensão de suas idéias, ideais. Ouvira esta anedota, quando estava
saindo do cemitério, aquando a ex-autoridade me dissera haver sido quem
plantara palmeira ao redor do cemitério, o que me desviou os pensamentos das
jumentices dela. Jamais me esqueci desta anedota; a única, inclusive, ouvira
outras, esquecia-as a todas, restam na memória alguns vestígios.
Xantipa, mulher de Sócrates,
fora sempre considerada na história como a mulher mais antipática, radical,
intransigente, indesejável, ridícula... Tudo para ela estava ruim. Se Sócrates
tomava um copo cheio de água, achava rui; se tomasse meio, xingava, falava em
seu ouvido o dia inteiro; se não tomasse água, achava ruim; se Sócrates
dava-lhe de presente um trapo novo para cobrir-lhe a nudez, re-clamava, havia
tantas roupas lindas e maravilhosas nas lojas, por que aquele trapo? Sócrates
não estava mais suportando. Tivera uma idéia supimpa.
A padaria ficava a seis horas de
distância do doce lar de ambos, ida e volta. Se acordasse Xantipa às três horas
da manhã para ir buscar pão e leite, retornaria às nove da manhã, quando
Sócrates já havia saído, estava em companhia de seus discípulos pelas ruas de
Atenas.
Passado algum tempo, Sócrates,
em suas andanças com os discípulos, ouvira alguém gritar a plenos pulmões:
“Astronauta!” Pensara consigo mesmo não ser com ele, não lhe chamavam
“astronauta”. Os gritos persistiram. Por todos os cantos, alamedas, becos, ruas
de Atenas, por onde Sócrates passava ouvia “astronauta”. Já estava convencido a
palavra ser-lhe dirigida. Não sei dizer se naquela época era dito como em nossa
atualidade: “se se for dar atenção para tudo o que se ouve, acaba-se jogando
pedras de tão ensandecido”.
Certo dia, ouvindo “astronauta”,
parou, colocou a mão direita no queixo, atitude de que reflete profundamente,
busca entender as coisas com percuciência.
- Espere – começou a meditar,
refletir, os discípulos continuaram a caminhada, já estavam acostumados com
suas paradas – “Astronauta vem de astronomia: o que mia é gato, gato gosta de
rato, seu prato predileto, rato gosta de queijo, queijo vem do leite, leite vem
da vaca, a vaca é mulher do boi, o boi tem chifres”.
Tirou a mão do queixo, gritou a
plenos pulmões: “chifrudo é a puta que pariu”. Num segundo, as pessoas
abandonaram a rua com aquele palavrão, que jamais ouviram dizer, Sócrates fora
o inventor da “puta que pariu”, só mesmo filósofo. Foi embora reencontrar-se
com seus discípulos que já estavam bem longe.
Dizem as más línguas que assim
começou sua filosofia, assim começou a filosofia no mundo.
Seria sobremodo interessante se
conseguisse reunir a minha situação passada com o jumento Nullus e a anedota de
Sócrates, mas como iria fazê-lo não tinha a menor idéia. Terminara o banho.
Enquanto fazia a barba, surgiu-me isto:
Desvarios se me anunciam
Esquisitices se me revelam
Em âmbitos e âmagos da insolência
O encontro de sentimentos e
emoções
Fugazes, efêmeros
Distantes, impenetráveis.
Talvez levasse anos para
escrever isto, mas não largaria da pena um só momento, depois do dia de
trabalho com Nullus pelas ruas da cidade, mas com certeza iria fazê-lo.
Per omnia saecula saeculorum...
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