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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

CORCOVADO DE ESPERANÇAS XVII PARTE – BOSQUE VERDE E SOMBRIO - Manoel Ferrreira Neto



Seja dito que o segredo grita, frágil, para a insolência da meiguice, nas sementes dos sonhos do verbo; é isto que deve ser dito, qualquer mistério é liame do silêncio que o tempo amarra na eternidade.
Devia ter percebido para que porto o coração selvagem se dirigia, e, selvagem, os sentimentos puros se revelariam, apesar de a sombra ombrear os passos. De que me valeria a selvajaria, não fosse a presença da sombra a ombrear-me os passos? Não sei elucidar os contrários e adversidades.
Falo com paixão. Paixão louca pode justificar quimeras e fantasias deléveis. Não justifica o mas importante o erro. Sendo este incontestável, fatos não podem trapacear. Muitos, não olhando de soslaio e se afastando, fá-lo de longe indecisos, com hospitalidade de sorriso mesclado de dúvidas e medos. Quem sabe realizo algo esperava veemente, apesar de ser pudico nalguns valores e virtudes de homens célebres!...
Sei a minha arte: ininteligível seria supor e desejar não a soubesse, sem ela ser-me-ia impossível estar falando neste estilo, às avessas, portador de veneno sem precedentes, os encômios satisfazem a todos os paladares, dependendo dos achaques e pitis. Não me esqueço do outro lado da moeda.
Henrique Aires graduou-se junto comigo, éramos da mesma classe, não fizera grande figura nos estudos; não fez sequer figura medíocre. Era apenas psicólogo, mas bom coração e rapaz de bons costumes. Se vos perguntares, tomando em consideração a leitura deste início desse parágrafo, seguindo a entonação com as vírgulas, deixando as palavras dizerem, dizendo, credes que podeis de súbito avaliar se não seja algo irônico, cínico, um tom de amargura com a natureza humana ser tão medíocre, há homens de caráter e personalidade esplendorosos, há homens que não deveriam ter existido no mundo, existiram? Podeis dizer isso? Não há alguma ambigüidade na tessitura das palavras no texto que avisa que há coisas escondidas, mas que se forem sentidas no íntimo, um efeito contrário irá surgir e aí começar algum sentimento de não, algo perpassando a medula, suscitando um mistério a ser in-vestigado?
Melhor haver menos sentimento nestes colóquios, navegar mais junto às pedras das serras, ao invés de lançar-me às palavras de conduta ilibada. Mas, enfim, posso afiançar, não apenas com palavras medíocres, ser questão de estilo.
A oração hesicástica, que leva ao descanso em que a alma habita com Deus, é oração do coração. Para nós que damos tanta importância à mente, aprender a rezar com o coração e a partir dele tem importância especial. Os monges do deserto nos mostram o caminho. Embora não exponham nenhuma teoria sobre a oração, suas narrativas e seus conselhos concretos apresentam as pedras com as quais os autores espirituais ortodoxos mais tardios construíram uma espiritualidade magnífica. Os autores espirituais do monte Sinai, do monte Atos e os startsi da Rússia oitocentista apóiam-se todos na tradição do deserto. Encontramos a melhor formulação da oração do coração nas palavras do místico russo Teófano, o Recluso: “Rezar é descer com a mente ao coração e ali ficar diante da face do Senhor, onipresente, onividente dentro de nós”. No decorrer dos séculos, essa perspectiva da oração tem sido central no hesicasmo. Rezar é ficar na presença de Deus com a mente no coração, isto é, naquele ponto de nossa existência em que não há divisões nem distinções e onde somos totalmente um. Ali habita o Espírito de Deus e ali acontece o grande encontro. Ali, coração fala a coração, porque ali ficamos diante da face do Senhor onividente dentro de nós.
Bem, retornemos ao colega que se graduara junto comigo. O pai de Henrique Aires quisera casá-lo com a filha de um professor de Matemática, seu amigo; o rapaz havia se graduado em matemática, feito concurso, passando em primeiro lugar, indo lecionar em Rosa Clara, tem motocicleta, um jovem de futuro, responsável, cumpridor de seus deveres e responsabilidades. Opôs-se categoricamente aceitá-lo, não estava mais vivendo no tempo do onça, quando os pais obrigavam os filhos a se casarem para enlaçarem os interesses. O pai que era um bom homem não quis obrigar o coração do rapaz, desistiu da empresa. Aconteceu então que a filha casou com outro, dono de uma peixaria e Henrique Aires... Creio que se alguém imaginar pode ter a certeza de que será perseguido, até aos fantasmas. Que triste destino, meu Deus...
- Bem, deixe-me, coisa preta, tentar esclarecer isso – disse a Iliara Jasmine, rindo a bandeira soltas, de acordo com a sua leitura do que venho escrevendo, a ironia deslavada, o cinismo e um olhar de desdém que mostro nessa missiva quando observo certas nuances da natureza humana, a condição mais estranha e esquisita que os homens vivem no quotidiano, e não temos a ousadia ou curiosidade  de observar. Cada um irá entender de acordo com o seu ponto de vista, mas há muito que só mais tarde será possível mergulhar profundo, de repente essa missiva vai extasiar a muitos, incitar-lhes os brios, as condutas e posturas, e, de súbito, o golpe contrário.
- Querido, é como se você estivesse numa sala de espelhos, de qualquer ângulo que olhasse a sua fisionomia iria apresentar os seus olhos observando algo que não se sabe o quê, mas que o faz intuir sensações tão serenas, as imagens são ele e não são ele. E nesse espetáculo da imagem e dos olhos vê-se na amplitude as coisas... Entende  o que estou querendo dizer. Amplitude e não apenas imagismo e intuicionismo.
Creio não ser necessário entrar numa verborréia esquisita e estranha que é a psique humana, como é que possivelmente a humanidade inteira leria essa missiva, como cada  homem em todo o universo iria entendê-la e compreendê-la. Mas algo, indubitavelmente, está presente e é isto o que extasia a todos, a esperança precede a fé.
Sabeis da “Caixa de Pandora”: aberta, todas as desgraças, infortúnios, males assolaram os homens, vós sofrestes bastante com a abertura da caixa. No entanto, algo não saíra da caixa, a esperança. Não sei se Pandora teve uma neta – crio isso para enfatizar a idéia que me vem ao espírito e que preciso expressá-la para que a minha mensagem seja abertamente entendida. Suponhamos que a neta de Pandora tenha guardado essa caixa com toda a perspicácia e cuidado. Não podia ser aberta, pois que a esperança sairia e aí vós perderíeis o que há de mais sagrado, a esperança.
Acontecera – continuo a criar isto – de um dia, sem esperar, haver a neta de Pandora esbarrara na caixa que estava sobre uma mesa, caindo, abrindo-se. Descobre então que todos os anos houvera guardado uma caixa vazia. Mas aí Pandora entendeu que a esperança habita sempre o coração dos homens, ela nunca sairia de dentro deles, é a esperança a pedra angular da Vida, do encontro com ela.
Bem, esperei um pouco para continuar a dizer sobre o estudante de Psicologia Henrique Aires para pensar sobre como iria terminar de vos dizer a fim de poderdes entender certas nuanças do caráter e da personalidade do homem, sua natureza e condição humana, a ironia, não se sabe bem se em nível da psique, se da razão com um sarcasmo sem precedentes.
Aquelas particularidades são necessárias para explicar o grau de intimidade entre Henrique e Flávio. Foram eles naturalmente confidentes um do outro, e falaram (outrora) muito e muito dos seus amores e esperanças com a circunstância usual entre namorados que cada um deles era o ouvinte de si mesmo.
Os amores foram-se: a intimidade ficou. Apesar dela, desde que Flávio tomara ordens, e já antes nunca mais Henrique lhe falara de Laura, conquanto suspeitasse – não se sabe se chegara a alguma conclusão, por ser necessário um olhar de lince para perceber o que está de por trás das vírgulas e das arrogâncias, quando se quer dizer que não há o que comentar, é um história muitíssimo interessante.
De outro modo, pareceria entregar-me por curiosidade, talvez por costumes, seria enfadonha esta dúvida traidora sobre nuvens que cobrem os vossos céus, experiências que edificam as realizações, embora revezes e antemãos. Não me ando a seduzir há muito. Além de outras coisas...
Não sou homem quem afasta experiências vividas em detrimento de única, isto movido por interesses mesquinhos, sentir-me confortável n meio dos homens.  Creio a consciência que se me revelou da profundidade de não me andar a seduzir há muito explica o passar ontem deprimido, e para conseguir não me entregar ao torpor, pus-me a jogar paciência com velho baralho encontrado numa das gavetas na biblioteca do quarto, pequeno móvel em que guardo vinte e sete livros. Sejam então início de outros risos e ouros ao longo do caminho decidi-me trilhar. Parece-me melhor que paixão desinteressada; aliás, poderia ser internado nalguma Casa Verde, não acredito.
Seria ininteligível não revelar o sonho que tive esta noite, ficar-se-ia a criar hipóteses sobre algo que tenha gerado este conhecimento, e que, em verdade, tenha dele dúvidas atrozes da veracidade por se encontrar envolvido em hipocrisias.
Sonhara que no interior de mim lia algo. As palavras reconheci-as como se constituíssem canção. Aliás, surpreendi-me, dizendo: “Há uma canção nestas palavras. Há ritmo, melodia, arranjo”. Não me admira que desta lembrança, difícil de não perceber e perscrutar perturbações, primeiro clarão da aurora, atravessando os vidros da janela e da alcova, alumiasse o rosto, grave e plácido anterior à calma antes da tempestade.
Seria até não assumir o que digo, enquanto cofio o bigode, hábito que adquiri. Não me admira não tenha dúvidas acerca da veracidade, o que escondem palavras às avessas, inclusive desde do início, quando poderia haver dito “selvageria”, dizendo “selvajaria”, e compreendo haver verniz de celebridade no uso.
Vós rides, não? Realmente esse “verniz de celebridade” é uma expressão até muitíssimo interessante, quando diz respeito àqueles que querem e desejam a todo custo, não importando os ridículos, os comentários, as humilhações e ofensas, ser poetas, dizer de coisas lindas e maravilhosas em suas entrelinhas e além-linhas – mas será que são sinceras? Se me mostrarem que há outros valores mais interessantes que esses da busca da sublimidade, da esperança e fé aderidas, seguindo e dando continuidade aos homens de se desejarem perfeitos e puros, mas a chama dessa busca é a origem de todos vós, de todos nós, creio que prefiro continuar a busca, só aí a Vida. Não sei se estais a rir interiormente, mas que estais como que estupefata com o desperdício de palavras. Conheço-vos, quando não quer conversar sobre coisa alguma, apenas observar o mundo, as coisas, homens, objetos.
Bem esses que querem fantasiar a fala com as suas vozes empoladas, digo-vos que preferiria mais algumas ampolas que fizessem a minha língua não tagarelar. Bem aí está o que chamo de celebridade, e aconselho a alguns homens que observem e meditem bem sobre isso, e possam usar algum disfarce, pois não é bom que outros saibam, não é bom que eles saibam.
Fecho os olhos, e, se o verniz de celebridade torna-me inoportuno, devendo continuar a falar em voz inaudível com absoluta atenção se alguém não percebe esteja conversando sozinho, amanhã não haverá quem não saiba converso sozinho, e todas as galhofas far-se-ão notórias, não o deve à vontade, mas à situação, porque nem todo o engenho de Voltaire pode fazer homem interessante. Enfim, jamais fui quem haja negligenciado o homem trabalhar sem raciocinar, é o único modo de tornar a vida suportável.
Sou propenso que esta fala se fundamenta no lema adotado, desde a mocidade, idade em que os espíritos jovens são extraordinária vocação para o tabernáculo de imbecis. Por que me arriscaria a vida insuportável, esquisita? À parte todos os senões, desde o de que é preciso coragem para ser feliz, e não sou homem corajoso, aventureiro; aliás, muitas vezes até me pergunto sobre a veracidade da selvajaria não ser imaginação; desde o de fuga, conduta de má fé, mais precisamente falta de responsabilidade com quem represento.
Ah, sim, isso não posso deixar de vos dizer, creio que irá bendizer tais palavras, desejando-me uma longa viagem – bem, e aí, o efeito da coisa é outro, parece ironia, mas é zombaria? Ou seria o contrário.
Tendo Moisés sido retirado de dentro de um bloco de mármore, Michelangelo sabia o que estava fazendo. Conhecia a sua história e se remetia a uma tradição antiga, a qual o colocava como interlocutor de Deus. Michelangelo conhecia a sua história e isso permitiu a recriação.
A imagem já foi explorada. Seu aspecto psicológico é claro: o desespero de Moisés é visível. Seu estar sentado é enganador. É o último momento colhido de uma revolta anunciada.
Moisés não está sentado. Michelangelo sabe disso. Intui a necessidade de deixá-lo em alerta. Conserva um de seus pés levantado, retirado do chão, pairando no ar.
Esta posição é própria daquele que se colocará de pé a qualquer momento. Executará sua vingança.
Normalmente quando sentamos nunca estamos sentados. Um pé sempre se conserva levantado. É a posição de alerta que garante a vida. Quando se assenta com os dois pés repousados sobre a terra a vontade de lutar acabou. Interessante observar isto: durante estes dias todos, desde que iniciara a escrever-vos essa missiva, tive a preocupação de esticar as pernas, cruzar os pés. Justamente para mostrar que a vontade, o desejo de lutar por alcançar o tão almejado e desejado em minha vida, a sublimidade, não acabam com essa missiva, ao contrário, aí é que a luta se torna mais pujante.
Foi este o vislumbre de Michelangelo. Um artista acredita ser o criador de um mundo espiritual independente, carrega em seus próprios ombros a tarefa de criar este mundo, de povoá-lo e assumir total responsabilidade.
Ah, sim!... Não faço aqui qualquer comentário sobre Michelangelo, o que estou dizendo sobre o artista não se refere a ele, refere ao que considero como uma idéia que a criação é responsabilidade do homem.
A descida da montanha com as tábuas da lei representava na idade tardia de Moisés, o último passo para a reintegração da terra. Leis claras e objetivas, dadas, segundo esta antiga tradição, como Palavra de Deus. Um ato definitivo que assoberbou a condição humana e a pôs numa crise sem fim.
Iliara Jasmine dissera-me ontem se porventura surgisse uma oportunidade de enviar essa missiva a alguém que tenha grandes conhecimentos literários, que possa in-vestigar as profundezas de meu silêncio, muitas vezes extasiado pelas besteiras e asnices que levo a sério e me esqueço disso, e ser publicada. De repente, o Brasil inteiro lendo, meu Deus, seria eu conhecido como o homem que anda pelas ruas conversando com a humanidade, disparates e coisas sérias.
Lembrei-lhe Moisés. A angústia do velho Moisés se revelou catastrófica quando ele despedaçou as tábuas da montanha. Moisés mostrou-se sem  respeito com o patrimônio comum, mas a culpa não foi sua. Aliás, ele é o menos culpado nisso tudo. Basta lembrar do seu início, e de como o pobre coitado deixou os palácios do Egito para ir viver no deserto. Não! Moisés não tem nenhuma culpa, embora seja o mais culpado de todos.
Ninguém pode resistir ao peso da verdade, principalmente quando ela se torna infinita. Seu poder devastador destrói até mesmo as pedras, e sem nenhum esforço a totalidade dos homens. Deus não faz exceção.
Podeis continuar a rir, enquanto delineio o que agora vou dizer ou simplesmente continuar o que estava dizendo, sem afetar o riso, mas colocando-o nas entrelinhas, as entrelinhas só quem me conhece muito intimamente é que poderia indicar ou identificar o caráter e personalidade de minhas coisas sérias e asnices que destilo a todos os homens, a todos nos, a toda a humanidade.
Michelangelo viu Moisés angustiado, outros o viram decepcionado ante o espaventoso espetáculo que se tinha armado na encosta do monte Sinai.
Não fora esse o motivo do espanto de Moisés. Sua decepção foi pessoal e eloqüente diante da verdade. Estremeceu, emudeceu-se e não suportou o peso daquelas pedras, segundo o que se acredita, o resplendor da verdade. Foi isso que Moisés não suportou, nada menos que isso.




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