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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

*ANÚNCIO DE ORIUNDOS MISTÉRIOS - Manoel Ferreira Neto.



Ah, ter a evidência ácida do mistério de quem sou, do que sou!... Ah!... Esta fronteira da lembrança e esquecimento, este sonho de rompimento, entrar em sintonia e harmonia com a construção, identidade histórica!...
Haveria alguma dúvida da presença de mim a mim próprio e a tudo que me cerca, envolve-me de mistérios, envela-me de anúncios, é de dentro de mim que o sei – não do olhar dos outros, pensamento dos outros.
O feno que, espesso e luxuriante como a fragrância da ulmária e os olhos dourados das margaridas, crescia há pouco no verdejante prado perto do rio, está agora seco; ainda perfumado, embora morto, escondido dos raios tépidos do sol, sob os esteios escuros do celeiro.
O mistério, o mundo submerso da intimidade – tudo é da vida real, matéria de que são feitas as pedras da montanha.
No cão, posso sentir obscuramente uma “pessoa”. Quando distingue os meus passos, alvoroça-se, ladra com voz rouca. E, ao aproximar-me, ergue-se, agita a cauda, acaba por se deitar, com o focinho sobre as patas estendidas, olhos semicerrados, sentindo-se bem com a minha companhia silenciosa.
À hora do almoço, mesmo que não fareje o cheiro de carne e ossos, late, dizendo-me que não devo me esquecer dele, está com fome, quer a sua parte, o que lhe é de direito para a sobrevivência. Precisa alimentar-se para prosseguir com a responsabilidade que é guardar a casa, latir quando sente alguma coisa na rua.
Não haveria noutro modo e estilo, linguagem que melhor expressasse o que me surge súbito, isto de entender a vida na iluminação em que me sinto, me estou vivendo, me sou.
Tudo é verdade, porque a solidão é tão estúpida... Alucina-me o absurdo como um abismo: como ser nos outros? Quem deseja estar “si”, afianço não ser eu. Ninguém quer. Quem me abre a porta, para ser ele sendo eu? Que eu saiba o que pensa e sente – mas como ser ele a pensar e sentir? Absurdo.
Movo os dedos das mãos e é como se meus fossem e não fossem. Com eles e neles tomo posse e conhecimento de coisas espantosas. Não seria pena não ter nascido? Isto seria, seria dúvida. Ficava sem saber destas coisas espantosas.
Tu tens de ser inventado, cão. É triste, tenho dó enorme de você. É dó sinuoso, cheio de truques, ciladas. Parte de mim para você, para os seus olhos sem fundo, dá a volta através deles por todo o passado morto e regressa depois a mim. Ou não chega a partir? Como num espelho, simples forma de me ver, espelho embaciado.
Tomo pedaço de papel em que me dá jeito escrever. O título. É a primeira coisa que se escreve, derradeira que se adota. Vou chamar-lhe “Anúncio de oriundos mistérios”, é o que de momento me surge. A primeira frase toda na cabeça – não sou capaz de emendar depois as frases no papel. E o ritmo dela, o ondeado do meu balanço interior. Respirar ainda o que em mim me coube ser humano.
Teseu olha-me de novo a olhos tristes e compreensivos – está bem, não há possibilidade de agora escrever o que quer que seja, restando-me ficar a balançar-me na cadeira de balanço, fumando. Teseu, a minha última companhia, um cão.
Ontem a mãe morreu. Fora enterrada hoje pela manhã. Só fiquei sabendo após algumas horas do enterro. A família tentou comunicar-me, não houve possibilidade de encontrar-me, fizera pequena viagem.
A experiência de mim próprio, do inverossímil milagre do que sou, é ininteligivelmente difícil – não está havendo neste advérbio de modo anúncio de esplendor? – e é de mim mesmo miraculoso. Habita-me sentimento forte e vivo de evidência fechada, de irredutível necessidade que me vem deste sentir-me indivíduo, inteireza sem traço de união, absoluto de presença que recusa a contingência, a ligação com tudo o que me rodeia.
Posso dizer que em toda a parte onde, na vida de um homem e de um povo, existem ainda solenidade, gravidade, segredo, cores sombrias, persiste algo do terror com que outrora se prometia, se empenhava a palavra, se jurava: é o passado, o mais distante, duro, profundo passado, que me alcança e que reflui dentro de mim, quando me torno “sério”.
A cidade projeta a lona sobre, quando é circo, as montanhas ao redor, sempre um hospício. Os pés não vêem os anseios do coração nômade, deixando traços e passos de quimeras e sonhos, realidades e fantasias. Quando o silêncio comanda a tarde, ouço em redor.
A janela aberta... A chuva cessou por algum momento. Que possa alcançar os sonhos soltos. Teseu permanecerá deitado olhando-me vez por outra. A folha de papel, a caneta sobre. Apenas algumas linhas escritas. Não fora possível continuar. Quem sabe a dor de a mamãe haver morrido ontem, não pude vê-la?
A chave que abre a porta da sala de visitas está comigo, bem sobre o meu coração. Não é medalha, nem escapulário, o que bate ali contra meu peito – apenas a chave da porta. O problema supremo é este, Deus e o homem, mas por mais que faça, não posso imaginar Deus afastado do amor, de qualquer amor que seja, mesmo o mais pecaminoso, porque não posso imaginar o homem sem o amor, e nem o homem sem Deus.
Que Deus é este que exige a renúncia à própria personalidade, em troca de mirífico reino que não posso vislumbrar através da neblina de após as chuvas, pela manhã? Sei, a Graça, mas para seres terrenos e limitados como eu, como supor a renúncia e a santidade, como supor o bem e a paz, senão como  anúncio de oriundos mistérios que me habitam?     







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