Haveria alguma dúvida da
presença de mim a mim próprio e a tudo que me cerca, envolve-me de mistérios,
envela-me de anúncios, é de dentro de mim que o sei – não do olhar dos outros,
pensamento dos outros.
O feno que, espesso e
luxuriante como a fragrância da ulmária e os olhos dourados das margaridas,
crescia há pouco no verdejante prado perto do rio, está agora seco; ainda
perfumado, embora morto, escondido dos raios tépidos do sol, sob os esteios
escuros do celeiro.
O mistério, o mundo submerso da intimidade – tudo é da vida real,
matéria de que são feitas as pedras da montanha.
No cão, posso sentir obscuramente uma “pessoa”. Quando distingue os meus
passos, alvoroça-se, ladra com voz rouca. E, ao aproximar-me, ergue-se, agita a
cauda, acaba por se deitar, com o focinho sobre as patas estendidas, olhos
semicerrados, sentindo-se bem com a minha companhia silenciosa.
À hora do almoço, mesmo que não fareje o cheiro de carne e ossos, late,
dizendo-me que não devo me esquecer dele, está com fome, quer a sua parte, o
que lhe é de direito para a sobrevivência. Precisa alimentar-se para prosseguir
com a responsabilidade que é guardar a casa, latir quando sente alguma coisa na
rua.
Não haveria noutro modo e estilo, linguagem que melhor expressasse o que
me surge súbito, isto de entender a vida na iluminação em que me sinto, me
estou vivendo, me sou.
Tudo é verdade, porque a solidão é tão estúpida... Alucina-me o absurdo
como um abismo: como ser nos outros? Quem deseja estar “si”, afianço não ser
eu. Ninguém quer. Quem me abre a porta, para ser ele sendo eu? Que eu saiba o
que pensa e sente – mas como ser ele a pensar e sentir? Absurdo.
Movo os dedos das mãos e é como se meus fossem e não fossem. Com eles e
neles tomo posse e conhecimento de coisas espantosas. Não seria pena não ter
nascido? Isto seria, seria dúvida. Ficava sem saber destas coisas espantosas.
Tu tens de ser inventado, cão. É triste, tenho dó enorme de você. É dó
sinuoso, cheio de truques, ciladas. Parte de mim para você, para os seus olhos
sem fundo, dá a volta através deles por todo o passado morto e regressa depois
a mim. Ou não chega a partir? Como num espelho, simples forma de me ver,
espelho embaciado.
Tomo pedaço de papel em que me dá jeito escrever. O título. É a primeira
coisa que se escreve, derradeira que se adota. Vou chamar-lhe “Anúncio de
oriundos mistérios”, é o que de momento me surge. A primeira frase toda na
cabeça – não sou capaz de emendar depois as frases no papel. E o ritmo dela, o
ondeado do meu balanço interior. Respirar ainda o que em mim me coube ser
humano.
Teseu olha-me de novo a olhos tristes e compreensivos – está bem, não há
possibilidade de agora escrever o que quer que seja, restando-me ficar a
balançar-me na cadeira de balanço, fumando. Teseu, a minha última companhia, um
cão.
Ontem a mãe morreu. Fora enterrada hoje pela manhã. Só fiquei sabendo
após algumas horas do enterro. A família tentou comunicar-me, não houve
possibilidade de encontrar-me, fizera pequena viagem.
A experiência de mim próprio, do inverossímil milagre do que sou, é
ininteligivelmente difícil – não está havendo neste advérbio de modo anúncio de
esplendor? – e é de mim mesmo miraculoso. Habita-me sentimento forte e vivo de
evidência fechada, de irredutível necessidade que me vem deste sentir-me
indivíduo, inteireza sem traço de união, absoluto de presença que recusa a
contingência, a ligação com tudo o que me rodeia.
Posso dizer que em toda a parte onde, na vida de um homem e de um povo,
existem ainda solenidade, gravidade, segredo, cores sombrias, persiste algo do
terror com que outrora se prometia, se empenhava a palavra, se jurava: é o
passado, o mais distante, duro, profundo passado, que me alcança e que reflui
dentro de mim, quando me torno “sério”.
A cidade projeta a lona sobre, quando é circo, as montanhas ao redor,
sempre um hospício. Os pés não vêem os anseios do coração nômade, deixando
traços e passos de quimeras e sonhos, realidades e fantasias. Quando o silêncio
comanda a tarde, ouço em redor.
A janela aberta... A chuva cessou por algum momento. Que possa alcançar
os sonhos soltos. Teseu permanecerá deitado olhando-me vez por outra. A folha
de papel, a caneta sobre. Apenas algumas linhas escritas. Não fora possível
continuar. Quem sabe a dor de a mamãe haver morrido ontem, não pude vê-la?
A chave que abre a porta da sala de visitas está comigo, bem sobre o meu
coração. Não é medalha, nem escapulário, o que bate ali contra meu peito – apenas
a chave da porta. O problema supremo é este, Deus e o homem, mas por mais que
faça, não posso imaginar Deus afastado do amor, de qualquer amor que seja,
mesmo o mais pecaminoso, porque não posso imaginar o homem sem o amor, e nem o
homem sem Deus.
Que Deus é este que exige a renúncia à própria personalidade, em troca
de mirífico reino que não posso vislumbrar através da neblina de após as
chuvas, pela manhã? Sei, a Graça, mas para seres terrenos e limitados como eu,
como supor a renúncia e a santidade, como supor o bem e a paz, senão como anúncio de oriundos mistérios que me
habitam?
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