Se alguém me pedisse conselho: “por favor, estou com
problema, gostaria que me ouvisse, aconselhasse”, “não sei mais o que fazer,
aconselhe-me de algum modo”, nestes dizeres ou noutros que co-®-respondam –
embora dizerem que se conselho fosse bom, desse resultado, surtisse efeito,
seria vendido e não dado; há quem ouve, ponha em prática, mude os seus rumos e
horizontes, há quem não o faça -, não titubearia único instante, antes de
piscar mais uma vez, antes do próximo trago no cigarro, dir-lhe-ia sereno,
tranqüilo, gesto e atitude de quem está com a verdade nas mãos feitas concha:
“passe das riquezas intelectuais às materiais”, é a mesma coisa, mas seria um
excelente conselho. Se só sabe, desde sempre soube, o vernáculo e o latim, nada
entende de negócios, de ganhar dinheiro, em vão lhe provaria que tem o dom da
lábia, da oratória – verdadeiros intelectuais podem esbanjar esse dom, dar,
vender, alugar, emprestar, ainda restando muito para ele próprio -,
imprescindível para quem faz negócio, vende seus produtos, sabe com perfeição
enganar o cliente, tripudiar com os seus interesses e objetivos do mesmo; se se
entregar de corpo e alma, não levará muito tempo estará “podre-de-rico”, poderá
jogar dinheiro fora, rasgar, dar gordas gorjetas aos garçons dos restaurantes
finos, altas esmolas aos mendigos, não sentirá qualquer prejuízo no bolso, na
conta bancária, no cofre atrás da porta da alcova, da estante de livros.
Verdade pura, acredite se puder, tiver condições
sensíveis e psíquicas, alguém me pedira conselho, um homem das letras ridículas
e mesquinhas, não conhecia qualquer vernácula, não sabia única máxima latina,
nem a mais badalada de todos os tempos “cogito ergo sum”. Estávamos tomando uma
“cerveza” – nunca dizia a palavra corretamente, trocava o “j” pelo “z” – no
restaurante do Joãozinho “pé frio”, não porque fosse azarento, sorte lhe
faltava de fio a pavio, mas porque seu pé direito era frio, enquanto o
esquerdo, quente, as más línguas diziam que era possível acender um cigarro
nele.
A pessoa estava enfastiado de tanta miséria, vendia o
almoço para comprar o jantar, só comia a metade do pão francês pela manhã,
guardava a outra metade para o lanche noturno, não conseguia dormir sem comer
alguma coisa, saía de madrugada de casa para catar tocos de cigarro, as letras
não lhe garantiam único bago de feijão. Pensei comigo mesmo que se fosse ele um
homem de letras profundas, linguagem e estilo autêntico e originais, soubesse
escrever como ninguém o fizera antes dele, não estaria passando tantas
dificuldades, não estaria passando fome, teria dinheiro para comprar seu maço
de Charm, Hilton, seu desjejum seria dos mais suntuosos, o re-conhecimento dos
leitores levar-lhe-ia a uma editora, publicaria suas obras, ganharia as
percentagens de capa que cabem aos escritores – as editoras, felizmente, nos
tempos atuais estão cobertas de razão, conhecimento: só publicam escritores de
obras-primas no estilo, linguagem, forma, os leitores têm aversão, ojeriza,
asco, à literatura chinfrim, imbecil, idiota, estamos no tempo das “vacas
gordas” -, no final do mês, receberia suas comissões, sete por cento, dez por
cento, garantia sua vida, suas necessidades, que as editoras pagam por preço de
capa, aliás, vale ressaltar e enfatizar, muitíssimo justo, houve tempo que não
se pagava nem um por cento, era meio, e não se discutia. Sendo grande escritor,
re-conhecido pelos leitores, não teria qualquer dificuldade, seria vendido além
de suas expectativas, várias edições de única obra. Quem sabe no frigir das
claras e gemas não comprasse um castelo moderno na Alemanha com o dinheiro
ganho com suas obras, estudado nas universidades, encomiado pelos intelectuais,
especialistas, mestres, doutores, um deus das letras, rodeado de fãs,
bajuladores, interesseiros, mais ou menos como fora Machado de Assis no final
do século XIX.
Lembrou-me que, numa de suas entrevistas numa rádio,
rasgara os verbos, dizendo que era homem dos dois “p”, pobre e da periferia,
queria dizer, inautenticamente, que se tornou privilegiado com sua
inteligência, capacidade, conseguiu publicar suas obras, era a quarta, estava
alegre e saltitante, muitíssimo agradecido aos seus leitores, amigos, íntimos,
que sempre lhe incentivaram, entusiasmaram na carreira. Quem, nestas condições,
iria pedir conselho, confessar misérias, dificuldades, estava cansado,
enfastiado de sua vida de intelectual, de escritor? Ninguém. Com efeito, tossi
no momento; felizmente, havia acabado de tragar a fumaça do cigarro,
engasguei-me, não fosse isto, talvez houvesse de explicar-me, a tosse dizia
respeito a dizer-lhe na “lata” que não tinha condições de ser escritor,
intelectual, as pessoas simplesmente estavam tirando sarro da sua casa,
incentivavam as hipocrisias para poderem rir, gargalhar, comentar o que é isto
de um homem que não conhece suas próprias inferioridades. Sabia que o meu
convidado a tomar cerveja no restaurante do Joãozinho “pé frio”, pagava-lhe a
despesa, não tinha condições de se fazer no mundo das letras, no métier dos
intelectuais, então lhe disse tranqüilo: “passe das riquezas intelectuais às
materiais”, o que lhe chamou a atenção,
a intelectualidade era a responsável por sua pobreza, misérias, suas
dificuldades até de ser considerado homem, indivíduo, cidadão. Olhou-me
interrogativo, circunspecto, olhar de quem implora, roga alguma coisa,
explicação, justificativa, de que não entende o que realmente lhe está sendo
dito.
Chamei o garçom, pedi-lhe que nos levasse uma porção
de carne de sol com mandioca – os olhos do convidado faiscaram de tanta
alegria, creio que a boca salivou, nunca pensou que iria comer um prato desses,
se pudesse conservaria a carne de sol com mandioca no estômago por várias
décadas, a fome ter-se-ia sido extinta por todo o sempre. A verdade é que
desvirtuar-lhe a atenção um pouco, teria de lhe dizer as coisas, ser-lhe
honesto e franco, enquanto estivesse comendo não sentiria a dor da verdade.
Também pedi uma garrafa de vinho dos melhores que Joãozinho “pé frio” tivesse
na sua adega.
- Então, não vai dizer alguma coisa... – disse-me,
olhando-me com fixidez; estava esperando minhas palavras, conhecia minha
honestidade, conversar com homens assim é que amadurece, cresce.
Alguma coisa, de que não me lembra no momento,
chamou-me a atenção, creio que foi a presença de um vereador, ex-prefeito, que
saíra de sua mesa, passando a cumprimentar todos os clientes com um aperto de
mãos, três tapinhas no ombro, era tempo de política, as eleições estavam bem
próximas, garantia sua candidatura.
O garçom levou a carne de sol com mandioca, o vinho.
Em vão, provei-lhe que ele escrevia como Vieira ou Cícero, Machado de Assis,
Apuleio, Sartre e Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso e Dostoiévski. Admirava-me
sobremodo que estivesse tão miserável, letras como as suas propiciavam
verdadeiros banquetes, alguma coisa estava errada com ele. Ouvira de vários de
seus leitores elogios os mais suntuosos, estava abafando no mundo das letras, o
único escritor em evidência de nossa terra. Talvez fosse melhor que mudasse de
editora. Dissera-lhe, como conselho, que passasse da intelectualidade à
materialidade, para esquentar a língua, afiá-la. Talvez fosse melhor mudar de
editora, seu problema era a falta de divulgação de seu trabalho. Foi quando
fiquei sabendo que alguém lhe pagava as edições, que, aliás, eram primorosas,
melhor papel, a obra costurada, a capa de primeiríssima qualidade. Então,
sugerisse ao seu padrinho que mudasse de editora, rogasse aos editores que
divulgassem mais a obra, no lançamento fizessem um banquete para os
intelectuais e escritores, amigos, íntimos, com efeito, isto estava faltando.
Os leitores são exigentes em lançamentos: querem banquetes, sentem-se
reconhecidos, compram os exemplares, alguns até mais de três para doarem aos
amigos e conhecidos. Sabia eu que não suas obras jamais foram lançadas, nunca
houve qualquer evento de lançamento.
Ouvia-me com todos os ouvidos possíveis e impossíveis.
Estava eu mais do que com a razão. Naquele dia mesmo, iria procurar o seu
padrinho, tentar convencer-lhe a mudar de editora, aumentar a edição de 200
exemplares para quinhentos. Talvez conseguisse fazê-lo. Verdade pura e
inconteste: se comi uns dez pedaços de carne de sol e mandioca foi muito, o
convidado comeu tudo, quase de única vez, estava mesmo faminto. Bebera o vinho
quase de um só gole.
Já era quase meia-noite, precisava ir embora, a minha
querida esposa não dorme enquanto eu não chego em casa, fica muito preocupada
comigo, o meu cinismo e ironia, sarcasmo ainda me darão sérios problemas,
conseqüências, o que ele me respondeu que Patrícia estava equivocada, nunca em
toda a sua vida conheceu um homem tão sincero, digno, honesto como eu, ninguém
iria dizer-lhe tantas coisas reais e verdadeiras, sentia-se até orgulhoso com a
minha amizade, consideração, respeito. E eu no íntimo pensava comigo próprio:
“O que a miséria e a fome fazem de um homem. Não tem quaisquer condições de
separar o trigo do joio”.
- Não sei como, meu amigo, mas, conforme suas
palavras, tenho condições de superar os meus problemas de miséria e pobreza,
minhas letras são profundas, o povo gosta é de profundidade. Não vou passar da
intelectualidade à materialidade, vou-me aprofundar na intelectualidade. Não
sei mesmo tratar de negócios, vender produtos. O que venderia? Talvez começasse
vendendo as roupas, inclusive cuecas e meias furadas, para a sobrevivência.
Soube mais tarde, através do próprio Joãozinho “pé
frio” que o amigo perdera as noites e os sonos em cima dos livros – não gastou
fortuna na compra deles, pois que não tinha um “tostão furado”, mas emprestou
da Biblioteca Pública -, comera as unhas, ao invés de pão, encanecera,
encalvecera, não morrera com as angústias e depressões que isto causa, sem crer
que o mal distingue o verbo do advérbio, mas continua vivendo, respirando,
inspirando, andando, buscando esclarecer a diferença entre ser intelectual e
dedicar-se a ganhar dinheiro, ser rico, milionário, bilionário, vender o seu
barraco na periferia, comprar uma mansão na Soares dos Santos que é o bairro
das grandes personalidades de nossa comunidade, mais ou menos como Hollywood
nos Estados Unidos
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