Total de visualizações de página

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

LETRAS DE ESTIRPE E RAÇA - Manoel Ferreira Neto



Convém sublinhar, de início, o sol desta manhã de maio quase me cozinhou os miolos; se estive com fome, matando cachorro a grito de tanta, era só cortar umas rodelas de cebola, colocar farinha, um excelente prato, saciar-me-iam a fome, não se faria necessário comer pelo resto do dia.
Assim há-de se considerar que as idéias e pensamentos estão quentes, fervendo, o que não proporciona escrever com decoro e empáfia. No final, nada estará escrito, apenas caracteres na página. Urge que imbecilidades sejam registradas, enfim não sou obrigado a ser profundo em todos os instantes; tenho direito a diversões, momentos de pura hipocrisia, jogar palavras a esmo, idéias ao léu.
Não penso, nada sinto. Sei apenas que é mister estar fazendo estas anotações para não ficar olhando as coisas inutilmente, enquanto tomo uma cerveja, “cabeça vazia é tenda do diabo”, diz o adágio com sabedoria. Bebo cerveja, e o xixi é de letras, conceitos, categorias. Nada de sério, nada que mereça esforços de interpretação, o melhor seria se nada disso fosse lido por alguém. Não existe, contudo, única letra escrita por alguém que não seja endereçada a alguém, o orgulho é saber que está sendo lido, se gostar  ótimo, se não gostar, o que posso fazer?
Se até o presente momento tudo que fora escrito re-vela profundidades, agora quero modificar um pouco; não as quero nestas poucas páginas, passo o tempo, o leitor se diverte lendo algo que não apresenta qualquer mérito de interpretação, é mais uma sobremesa no almoço, a tarde de trabalho será tranqüila e serena. O calor sempre me incomodou, os raios de sol queimam-me a calvície, é a primeira vez que cozinharam os miolos, as idéias e pensamentos escafederam-se durante o processo de ser cozidos, o fogo estava insuportável. Podem até voltar no finalzinho da tarde, no crepúsculo, restam horas a fio, tenho de andar por todos os lados da cidade, preciso divulgar o que agora está a faltar-me, sendo de responsabilidade do sol, tornei-me um vendedor de sonhos e utopias através das palavras.
Contudo, anuncia-me uma idéia, inda que distante, longínqua, talvez por estar sentado debaixo de árvores, aqui os raios de sol não chegam, servindo para deleite e diversão próprias, merecem respeito e consideração os tropeços na sua concepção, os cata-cavacos na sua criação, merecem os pensamentos, tentativas de lhes esboçar, mas nada de interpretações. Estive pensando que o verso verdadeiro nasce justamente nestes momentos de falta de inspiração, de miolos cozidos, de ócios artísticos e preguiças conting-“entes”, quando só a imbecilidade pode sa-tisfazer.
Com esta idéia presente, depois de uns quinze minutos deslizando a penas nos papéis de saldo bancário, creio que a imbecilidade não será mais possível, será apenas aparência – imbecilidade com aparência profunda, profundidade com aparência imbecil, não é este o retrato real da condição humana, dos homens que já acordam com o poder, desejo de poder infernizando-lhes a cabeça, só descansando se os bens materiais se multiplicam a olhos vistos, mesmo que os simples e humildes sejam pisoteados a rigor e classe.
A idéia acaba com o sonho das letras de nada, o nada nas linhas, a imbecilidade nas entrelinhas. Queria que a minha imagem fosse denegrida, dissessem todos que só escrevo e digo asnices, evitar-me em quaisquer circunstâncias é a melhor medida, conheço algumas personalidades e autoridades de quem todos correm, não se deseja ouvir-lhes sair da boca qualquer palavra, com os movimentos e trejeitos da língua. Não mais o será. A idéia roubou a cena.
A idéia do verso verdadeiro não será mais possível, mais um vez fracasso e me frustro. Há quando sinto que os deuses, pagãos e cristãos, condenaram-me a escrever só coisas profundas, e viver só as dúvidas e questionamentos sem respostas. Levo os símbolos até a soleira do Olimpo, e quando preciso tergiversar as imbecilidades em versos, para solidificar e comprovar os méritos de ocupar uma de suas cadeiras, dúvidas da veracidade dos sonhos e desejos tomam-me por inteiro. Retorno-me ao pé de todos os idílios, tenho de re-pensar tudo, recriar. Subo dois degraus, desço um sem-número deles. Nunca a profundidade absoluta, nunca a imbecilidade perene, nunca e jamais a comunhão de ambas.
O verso verdadeiro será possível de realização se os verbos da condição e natureza são aceites e consentidos.
Indago. Num momento como este, miolos cozidos, busca de apenas diversão, traçando letras, tecendo caracteres, para não ficar olhando as coisas da vida, mundo e realidade, como é possível saber o que são verbos da condição e natureza, inda mais quando decidi com prepotência não lhes saber, em palavras simples e vulgares: “De nada sei e tenho ojerizas de quem sabe”.
Escreveria horas a fio, preencheria páginas e mais páginas, enrolar-me, seria objeto de chacotas, o fio da meada seria perdido, qualquer conclusão estaria em suspenso, dando origem a todos dizerem: “Se nada houvesse escrito, apenas registrado o título “Letras de estirpe e raça”, palavra alguma a mais, teria atingido os objetivos e projetos de nada dizer, quaisquer ângulos de interpretação seriam obtusos.
Sempre que tomo da pena para escrever, o que mais desejo é dizer coisas profundas com imbecilidades, é imbecilizar a vida e as coisas com dimensões profundas, não sei se algum dia isto me será possível, as tentativas foram-me insuficientes, acumulo frustrações e fracassos. A condenação dos deuses são implacáveis. O fígado de Prometeu continua sendo comido pelos abutres, Sísifo continua levando sua pedra ao topo da montanha, sempre caindo. Nada há que re-verta essa realidade, é eterna. Meu Deus!, quando me será possível registrar a imbecilidade pura. Encontro-me enfastiado e cansado, perco o sono todas as noites, e não tenho qualquer segurança de o espírito serenizar.
Difícil. Complicado. Fazer o quê? Conscientizar-me de que nunca estarei livre da profundidade, acumularei dúvidas e fracassos na tentativa de falar besteira, preencher os desejos e vontades dos leitores de uma leitura leve e descompromissada.






Nenhum comentário:

Postar um comentário