Mistérios não me aborreceram,
nunca, jamais; a prova é que agora folgo diante de alguns mistérios enormes,
verdadeiros mistérios (insondáveis). Com este tom grave, não quero, afianço com
seriedade, causar impacto, ser exagerado, fazer disto tragédia, encabular.
Sempre gostei do inextrincável. Não odeio as questões simples, as soluções
fáceis, não digo que as ame. A razão está só na sedução do obscuro e do
complexo, está ainda em que o obscuro e o complexo abrem as portas à
contro-vérsia.
Imagine, leitor, este mistério e
depois me diga se não estou coberto de razões de ficar bestificado,
estupidificado com as mesquinhas filosofias. Se a contro-vérsia não nasceu
conosco, os homens, foi pelo fato inteiramente fortuito de haver nascido antes;
se se não tem apressado em vir a este mundo, não importando se com ou sem
cancelas, sem ou com fronteiras, era nossa irmã gêmea, se temos de a deixar
neste mundo é porque ainda cá ficarão homens.
Se ergo a lebre da contro-vérsia
nesta linguagem, que necessita ser lida várias vezes com muita atenção para entender,
assimilar as idéias e mensagens, re-colhê-las e a-colhê-las no espírito, é que
necessito com urgência ser compreendido, coisa que nunca aconteceu, não apenas
nas letras, na vida mesma; para gastar mais um pouco de tinta e folha de papel
com os mistérios que nos últimos dias assolaram minha mente, se a abrir só
serão encontrados mistérios, até os miolos são misteriosos, é que só assim
posso mostrar, identificar, de-monstrar os valores que me habitam, o que há nas
minhas pré-fundas que merece atenção e re-conhecimento, meus desejos profundos
no que tange ao destino e rumo dos homens, humanidade. A afluência
de tantos mistérios é porque a poesia é também um mistério, dos mais
insondáveis, e todos os mistérios são mais ou menos, tomando em conta certos
fatores e perspectivas de análise, parentes uns dos outros.
Onde está o delírio? Onde estão
as imaginações férteis, a criatividade? As melancolias, nostalgias? As estradas
na lua, os castelos nas nuvens, o anel de Saturno? Onde vão todos esses sonhos
deslumbrantes, que nos fizeram viver?
Não tenho papas na língua. Não me
tomem os leitores por homem despachado que vem para des-vendar os mistérios
mais pujantes da alma humana, re-velar dores e sofrimentos mais re-cônditos,
sem dó nem piedade, dizer tudo na “lata”, rasgar todos os verbos. Qualquer
homem foge léguas e milhas deles, fazem o possível e impossível para
escondê-los. Não sou sádico ou masoquista. Não tenho papas na língua, é
inconteste, consumado até ao fim dos tempos, é para vir a tê-las que escrevo.
Levantando a questão dos
mistérios todos que habitam o ser homem, na alma e espírito, à altura da grande
retórica e galhofa, diria que o pior deles não é o que deixa a vida em suspenso
por todo o sempre, o que, se des-vendado, causará mais malefícios do que benefícios,
mas o que busca a liberdade nas pré-fundas de todos os problemas, propriedade,
sossego, todos esses pés morais, pedras de toque, se assim me pudesse exprimir
com clareza e distinção, os dentes da compreensão, que nem sempre soem morder
lentamente a carne das angústias, nostalgias, caminhar tranqüilo na estrada
social.
O mistério, que a mitologia
tradicional nos pinta ensombrecido, escuro e obscuro, ensimesmado e
sorumbático, brilha como a pedra de diamante à luz dos raios de sol, brilha
tanto que ofusca a visão – acredito ser esta a razão de tantas dificuldades,
acompanhadas de todos os medos de nele mergulhar de cabeça.
Vejo no mistério – não me
perguntem a razão, não saberia explicar mesmo que houvesse nascido com a bossa
da genialidade – um argumento mais para comprovar a boçalidades, de o
des-vendar, só tem sentido e significado se in-sondável, só fascina se
ininteligível, só extasia se perpétuo. Prefiro-o como é. Nasci com a bossa da
genialidade, mas com medo de me tornar gênio bossal, daqueles que têm resposta
para todas as coisas e mistérios, se se lhes olhar dentro da cabeça, vê-se-lhe
vazia, oca de toda. E a pergunta: “como pôde pensar e des-vendar tantos
mistérios, se não tinha massa cefálica?” Vejo no mistério um argumento a mais
em favor de minha tese: se os mistérios se fazem continuamente, basta estar
vivo, a continuidade é também o mistério.
O leitor nasceu com a bossa da
inteligência pura: morto, acabam os mistérios, para os mortos os mistérios são
coisas da vida. Não me refiro aos irmãos do leitor, sobrinhos, compadres, nem a
seus amigos, mas tão-somente ao próprio leitor, isto porque não os conheço, só
conheço mesmo o leitor, eis a razão para escrever para ele – única e
exclusivamente para não se afligir com os mistérios, é só entregar-se inteiro
aos risos e ouros da poesia, tudo mais se escafede sem deixar vestígios. Todos
os demais fiquem isentos da mácula se a há.
Dizendo isto a pessoas de minhas
relações íntimas e pessoas, sobre isto de agarrarem-se aos risos e ouros da
poesia, deixarem os mistérios se resolverem entre si mesmos, mesmo a troco de
unhas e dentes, apertam-me o braço ou me puxam com força pela gola. Longe de
lhes atribuir o gesto a simples censura, reprovação, condenação, estou
muitíssimo errado, tudo foi feito para ser assumido, agarrar aos risos e ouros
da poesia não vai resolver nossos problemas e mistérios, vai agravar ainda mais
a psique, a loucura é inevitável. Longe de atribuir o gesto a simples loucura
transitória, acredito ser um modo de orarem e exporem os medos e resistências
de se entregarem ao riso, serem galhofeiros com a vida, e também de os versos e
estrofes dissolverem a única dignidade deles: a busca de conhecimento dos
mistérios da alma e espírito.
Uma vez que se foge aos
mistérios, entregando-se aos risos e ouros da poesia, onde achará método para
distinguir um louco de um homem de juízo? Penso mesmo numa charada, se assim
posso definir: “Qual a diferença entre o neurótico e o psicótico?”, cuja
res-posta é: “o neurótico faz castelo de areia nas nuvens; o psicótico mora
nele”. É muito perigoso viver de poesia. De ora avante, quando alguém vier
dizer-me de problemas, conflitos, dores, sofrimentos, medo da morte e da vida,
dos mistérios que nos habitam, ainda que não arranque os botões, não ficarei
incerto se é pessoa que se governa, ou se está num daqueles intervalos lúcidos,
que permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não mais direi que se
entregue aos risos e ouros da poesia, direi para se agarrar às barbas do
profeta Abraão. É sabido que a demência dá ao enfermo a visão de um estado
estranho e contrário á realidade. Também é sabido que a razão dá ao homem de
inteligência, percepção, a visão de um juízo límpido e inerente aos idílios do
nascimento e da morte.
Retornemos ao mistério que é o
tema destas letras traçadas a rigor e critério com a pena da galhofa e tinta da
sinceridade com que vivemos até que a morte nos separe, no além tudo
transparente e nítido, no mundo todos os mistérios sem dó e piedade. Deve-se
re-conhecer mesmo a cor-agem de viver no mundo, não só a coragem mas também a
perseverança.
Quando a vida cá fora estiver tão
agitada e aborrecida, risos e ouros da poesia acabam por aborrecer, o espírito
e alma já não conseguem re-tornar aos mistérios, perderam-se na história que ,
que não se possa viver tranqüilo e saltitante, haverá um asilo para a minha
alma – e para o meu corpo, naturalmente. O céu é bom, mas imagino que não mais
haver mistérios lá em cima não me legará sublimar com a poesia, com os seus
ouros e risos. As pessoas que vão deste mundo anistiadas ou perdoadas por Deus,
podem ter saudades da terra, dos mistérios que só fizeram sofrer, angustiar,
deprimir, só fizeram travar os desejos de liberdade e divinidade, de consolidar
o homem novo. Por pior que seja o mistério da vida, por desesperador e
angustiante que sejam os mistérios da morte e da ressurreição dos pecados e
mazelas, a terra há de dar saudades, melancolias, nostalgias, quando ficar tão
longe que mal pareça um miserável pontinho preto no fundo do abismo. O pontinho
preto que foste o meu infinito, universo, horizonte (exclamarão os
bem-aventurados), quem me dera poder trocar esta chuva de maná pela fome do deserto.
O deserto não era inteiramente mau; morria-se nele, é verdade, mas vivia-se
também; e uma ou outra vez, como nos povoados, os homens quebravam a cabeça uns
aos outros, espremiam os miolos mutuamente – sem saber porque como nos
povoados.
A minha ojeriza maior que a dos
mistérios insondáveis é a vulgaridade com que alguns intelectuais tratam a
recorrência, isto é, haver tratado de algo numa obra, retornar ao mesmo, até
com as palavras mesmas, em outras. O que chamam de empobrecimento das idéias,
pensamentos, chamo de espiritualidade, pois que, ao longo das experiências
vivenciárias e vivenciais fui aprofundando ainda mais, fui-me amadurecendo,
compreendo mais e melhor o que é isto a vida.
Já escrevi não sei quantas
páginas, centenas, posso afiançar com naturalidade, o leitor não conhece o meu
acervo cultural, filosófico, teológico e literário, o número de páginas que já
tenho escritas, o que conhece é apenas uma pontinha do iceberg, o já publicado.
Escrevi sobre um sonho que tive há dez anos. Mas agora esta recorrência
aprofunda muitíssimo o que é isto o abismo nisto dos mistérios insondáveis da
vida.
Sonhei que estava com meus dois
filhos à beira de um abismo; o mais novo, tranqüilo e sereno, quieto, ficou
sentado no meu colo, o mais velho, inquieto, chamei-lhe a atenção diversas
vezes, não aproximasse do abismo, se caísse nele, continuaria caindo por toda
eternidade. De repente, larguei os dois á beira do abismo, fui embora.
Encontrei um portão aberto, em verdade uma porta, estava com um das mãos cheia
de semente, era jogar-lhes no chão de imediato nasciam uma espécie de pé de
alface. Despertando-me o desejo de sentir-lhe o gosto, surgiu alguém, a que, no
sonho mesmo, chamei-lhe “homem do espaço”, dizendo que não comesse aquelas
folhas, eram amargas, intragáveis. Disse-lhe que não, rasgando uma folha,
levando-a à boca, mastigando, dizendo-lhe: “Não disse! Nada de amarga,
simplesmente deliciosa”, o que me respondeu: “de início, no tempo, ao longo dos
anos, sentirá a amargura delas”.
Disse antes que haverá um asilo
para mim, quando a vida cá fora estiver agitada e aborrecida com somente risos
e ouros da poesia, a ausência plena e absoluta dos mistérios. O asilo que
haverá para mim é o hospício. Não escrevendo obras mentais e complicadas,
tratados de estética e beleza, de jurisprudência ou constituições políticas,
nem filosofias, nem matemáticas, poderei achar nas reflexões e meditações
acerca dos mistérios um paliativo, uma anestesia, a louca, e um pouco de
descanso á agitação interior.
Bendito seja o que primeiro
cuidou de encher-lhes o tempo com serviços e labutas, e recompôs-lhe em parte
os fios arrebentados da razão. Lembrei o termo que iria completar o sentimento
de minhas idéias: morfina. Uma morfina às dores e sofrimentos do mistério da
vida e da morte, morre-se mais tranqüilo e saltitante, e a eternidade será bem
mais longe do que diz as mesquinhas filosofias do além.
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