Outrora, quando de todo o sermão da
montanha eu só conhecia o padre-nosso (aí tempos vão, pois hoje é Pai-Nosso, as
primeiras letras são maiúsculas, o padre foi trocado pelo “pai”; até o leitor
de olhos perspicazes de intuição sobremodo sensível, eis um dos inícios mais
melancólicos e nostálgicos que conheci em cinqüenta e dois anos de experiência
e vivência, jamais li outro igual, creio que não o farei, e se outros fizerem,
haverá outros que farão melhor; digo-lhes que não é nostalgia é que estou
vivendo neste momento tempos outrora passados, tempos que trago na memória, mas
só a mim digo, não saberia ser inteligível e transparente para lhes re-velar em
sua essência pura; trata-se antes de um jogo de palavras que somente será dito
e insinuado no final) – rezava-o pela manhã assim que abria os olhos, pedindo a
Deus que me iluminasse a inteligência para entender as coisas do mundo, para
compreender a hipocrisia dos homens, realmente sentia que estava sobrando no
mundo, ninguém mais distinguia, discernia, tinha senso e consciência da
diferença ente hipocrisia e seriedade, noutra vida, noutra reencarnação
passada, devia ter vivido num mundo de só seriedades e sinceridades,
autenticidades, e outras “cositas mais”, pois que a cheirava a quilômetro de
distância, sentia-a bem perto, discernia-a em todos os gestos, atitudes, modos,
estilos, linguagens, era-me bem familiar, corria dela mesmo, odiava, tinha-lhe
asco, ojeriza, calafrio, e tudo o mais que se possa incluir os estados de espírito e de alma; ao
deitar-me, luz já apagada, fechava os olhos, dizendo a Deus que não tinha sido
possível realizar meus interesses, era impressionante mas a cada minuto,segundo a hipocrisia entre os homens
aumentava consideravelmente, inteligente
era, e muito, todos diziam e também os sérios, dignos, sinceros, que freqüentavam
quase que assiduamente a minha residência, não iria mentir, fantasiar,
representar algo assim, ainda mais que
percebia, sentia, intuía invejas, ciúmes, despeitos, a ponto de
questionar Deusa respeito do
porquê não lhes terem dado, doado, agraciado, contemplado com tamanha
inteligência, e eles não, o que haveria de errado,fariam tudo para consertar,
queriam ser inteligentes como eu; acreditava que havia sido iluminado,
ter-me-íeis ouvido, atendestes-me, quem sabe um dia me fosse possível, rezava o
padre-nosso, virava para o canto, dormia o sono dos anjos -, a impressão que
recebia era mui singular, em latim mesmo, sui generis, uma mistura de fé
e curiosidade, um gosto de ver as luzes, de ouvir os cantos, de mirar as alvas
e as casulas, o hissope e o turíbulo. Para que você leitor não tenha o trabalho
de ir à cata de um dicionário, folhear as páginas, procurar com o dedo até
encontrar, gastando-lhe um tempo sem fim, irritando-lhe, aborrecendo,
prejudicando-lhe na boa leitura, nos risos ao final, na sensação de que tudo no
mundo é ridículo depois destas letras, digo-lhe já: hissope é “por ser com
raminhos desta planta que se fazia a
bênção”. Turíbulo: “vaso onde se queima incenso nos templos; incensório,
incensário”, assim o leitor já se desperta para o nível destas minhas palavras.
Entrei na igreja, fiz o gesto de
reverência a uns trinta passos do altar, o sinal da cruz, rezei o padre-nosso.
Hoje, mui dificilmente rezo o pai-nosso, rezo sempre a Ave-Maria. Antigamente,
era o contrário. A gente não era muita, os verdadeiros cristãos e fiéis não
gostavam daquela igreja, em verdade, ninguém rezava, reparava nos trajes de
todos, falavam da vida alheia. Iam estes fiéis a outra bem abaixo desta, tinham
de descer um morrinho até lá chegar, mas lá a fé era verdadeira, legítima,
autêntica, real, divina, magistral, gastavam um pouco do solado do sapato; na
verdade, ninguém rezava, falavam da vida alheia. Metade dos fiéis ali
presentes, eram senhoras, e senhoras de chapéu. O chapéu era peça obrigatória
na vestimenta, fossem homens e mulheres, das mulheres à moda de Greta Garbo, se
dos homens à moda de Chaplin, como se diz em Inglês: fazia parte do layout;
quem usava chapéu era pessoa de grande importância, uma personalidade, uma
autoridade, um empresário, um professor, até as crianças usavam chapéus,
esqueceu-me dizer das bengalas, inteligível porque a metade dos fiéis ali
presentes era mulher, e mulher não usava bengala, nunca vi mulher de bengala
senão as que eram deficientes físicos, quebraram a perna, o pé, estavam se
restabelecendo, não por modismo. Na era dos chapéus, era modismo mesmo.
Quiseram-me naquelas idades da infância
fazer-me usar chapéu, era elegante, causava boa impressão, mas me recusei de
pés juntos, a minha vaidade chegava apenas nos sapatos bem polidos, na calça
comprida vincada, que até fazia o sapato perguntar: “por que esta calça caiu
tão bem em mim, pois que não faz ela o meu gênero?”, na camisa de manga
comprida. Não recusei a usar chapéu porque, entrando na igreja, tinha de tirá-la,
conservá-la sobre o colo, levantar-se quando p padre mandava, ajoelhava,
rezava, colocando o chapéu sobre o banco, um burocracia daquelas, um show de
bons costumes e religiosidade, durante a missa inteira, era atitude de respeito
a Deus. Recusei porque todos usavam, seria eu mais um a fazê-lo – como dissera
alguém de minhas relações passadas, quando não estive presente no lançamento de
livro de meu maior melhor amigo: “você brilhou pela ausência”, isto é, todos em
uníssono reclamaram dela, queriam saber o porquê não havia comparecido, algo
sério estava havendo, qual seria; isto é, se é para chamar a atenção de todos
por usar chapéu, era uma criança importante, um menino de grande inteligência,
chamaria a atenção de minha inteligência por não usar chapéu, não era “menino
de rebanho”, como Nietzsche dizia do homem de rebanho, segue todos em todos os
níveis, o mais incrível é que não sabe o porquê de estar fazendo as mesmas
coisas, pensando as mesmas coisas, sentindo as mesmas coisas de tudo e de
todos, vazios até na alma.
Nunca me esqueceu o escândalo produzido
pelos primeiros chapéus que ousaram entrar na igreja em tais dias, usavam todos
chapéus, desde o raiar do sol até a hora de dormir, mas à missa ninguém o
fazia, deixava-o em casa, a moda vence qualquer obstáculo; escândalo sem
tumulto, nada mais que murmuração, sussurro, cochicho ao pé do ouvido. O
costume venceu a repugnância e os chapéus vão à missa e ao sermão.
Alguns senhoras rezavam por livros,
outras desfiavam os rosários, as restantes olhavam só ou rezariam mentalmente.
As semanas santas de outros, de outros
tempos longínquos, eram antes de nada, acima de tudo, muito mais compridas. O
Domingo de Ramos valia por três. As palmas que se traziam das igrejas eram
muito mais verdes que as de hoje, mais e melhor. Verdadeiramente já não há
verde. O verde de hoje é um amarelo escuro. A segunda-feira e a terça-feira
eram lentas, não longas; não sei se os leitores percebem a diferença, creio que
si porque têm mais ou menos a mesma idade minha, uns mais, outros menos, os
jovens não lêem minhas páginas, falta-lhes erudição, antigamente existia
ensino, hoje não existe. Quero dizer que eram tediosas por serem vazias.
Raiava, porém, a quarta-feira de trevas; era o princípio de uma série de
cerimônias e de ofícios, de procissões, de sermos de lágrimas, até o Sábado de
Aleluia, em que a alegria reaparecia, e finalmente o Domingo de Páscoa que era
a chave de ouro.
Na era dos chapéus, quando chegava a
Semana Santa, os fervorosos fiéis não usavam durante sete dias, desde o Domingo
de Ramos até o Domingo de Páscoa, era um sacrifício que faziam para que Deus
iluminasse suas inteligências, para que a inteligência lhes proporcionassem
frutos os mais prazerosos. Os mais simples diziam que a promessa de não usarem
chapéu na Semana Santa era para não murchar o cérebro. Hoje que o modismo do
chapéu é démodé, retrógrado, os pinguços não bem cachaça, os jogadores só Jam a
leite de rato, os adúlteros só transam com as mulheres oficiais, com quem
assinaram compromisso no cartório.
Eu não. Na Sexta-feira da Paixão
passava o dia inteiro dentro de casa, obviamente, com um chapéu coco na cabeça,
o que era ininteligível aos olhos de minha família. Recusava usar chapéu como
todos, e quando todos deixavam o chapéu por respeito ao luto de Deus, à morte
de Cristo, usava eu dentro de casa. Todos diziam em uníssono: “Ele é do
contra...”. E ainda enfatizavam a contrariedade, dizendo que ao invés de torcer
pelos mocinhos nas películas cinematográficas, torcia pelos bandidos, era fã
incondicional deles.
Até que um dia, na Sexta-Feira da
Paixão, a minha primeira professora fora à minha residência a convite de vovó
para tomar um chá, perguntando-me o que era aquilo de usar chapéu na
Sexta-feira da Paixão, desde o raiar do sol até a hora de dormir. Precisei de
um tempo exíguo para pensar, gostava muito de D. Noninha, dissera-me que não
lesse revista em quadrinhos por ser prejudicial à boa leitura – jamais li uma
-, tinha de ser-lhe sincero. Não podia responder como os adultos, para mim eram
hipócritas irreversíveis, rezava a Deus, pedindo-Lhe que iluminasse a minha
inteligência para compreender a hipocrisia dos homens, e responder
hipocritamente à pergunta de porquê usava chapéu na Sexta-feira da Paixão, não
tinha qualquer sentido, o menor cabimento, rezar para compreendera hipocrisia e
ser hipócrita era um disparate, despautério sem limites; até então não havia
compreendido e entendido a hipocrisia dos homens, continuava rezando,
sendo hipócrita Deus não me ouviria,
castigar-me-ia por atitude tão indecente e imoral.
- Se eu fosse Deus, meu filho Jesus
Cristo foi crucificado, eu usaria o chapéu no enterro para tirar-lhe a cada
passo dado e honrar-lhe por haver entregue sua vida à salvação dos homens, como
eu lhe instrui, eduquei; tirando-lhe o chapéu, salvar-lhe-ia da morte.
Estavam à mesa sete pessoas, quando D.
Noninha fizera a pergunta. Conversavam, discutiam, proseavam, riam. Estavam
todos alegres, a felicidade divina ali reinava. Depois de minha resposta,
silenciaram-se todos.
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