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terça-feira, 24 de novembro de 2015

CORCOVADO DE ESPERANÇAS I PARTE – DERRAMAR O NADA NO VÁCUO - Manoel Ferreira Nerto



Iniciando a noite, fui para a varanda de minha residência, colocando uma cadeira para sentar, próxima ao parapeito. Olhava a rua sem qualquer movimento, um verdadeiro deserto, as luzes por todos os lados. Ouvia no íntimo várias vozes: “Por que não nos dirige missiva? Se tu estás assim, imagine nós por todos os séculos e milênios! Assim, confortar-nos-á, sentir-te-ás também confortado”.
A depressão havia, enfim, re-velado o quando deveria acontecer a tão esperada missiva que desejava enviar a todos os homens, humanidade? Quem sabe esteja maduro o suficiente para esta empreitada. Deveria alegrar-me, chegara o que esperava. Era colocar a “mão na massa”.
Indagava-me, circunspecto, se se pode ter mínima consideração por si mesmo aquele que comete o sacrilégio de tirar prazer de sua própria humilhação? E não digo isso por nenhum arrependimento hipócrita. Nunca pude concordar em dizer estas palavras: “perdão, papai, não o farei mais”. Não porque fosse incapaz disso, mas, ao contrário, porque tinha demasiada vontade de fazê-lo. Tive essa coragem de o dizer a amigo,  era e é querido demais, senti-me culpado e com remorso de haver-lhe sido agressivo. Não pensava que fosse fazê-lo devido à coragem. Fui perdoado, a relação entre nós se solidificou mais. O homem merece mais consideração e reconhecimento, quando pede perdão de suas atitudes e ações indecorosas, indecentes.
Observai-vos melhor, e compreender-vos-eis. Quanta vez imaginei aventuras e compus minha vida como um livro! Quanta vez me aconteceu, por exemplo, ofender-me por nada, de propósito, sem motivo! Mas excitamo-nos tão fácil e perfeitamente, que, afinal, acreditamos ter sido verdadeiramente ofendidos. Freqüentemente, fiz esse jogo, de tal maneira que acabei por me enganar e não ser dono de mim. Outras vezes, tentei ficar apaixonado contra minha vontade. Sofri muito, juro-vos...
Nessa observação, é que pude conhecer poucochinho – insuficiente para re-verter a depressão – a razão, motivo de estar deprimido; sentia-me ofendido, humilhado, desrespeitado, o orgulho estava ferido, o sangue jorrava, podia senti-lo nas feridas. Não me sentia ofendido e humilhado por me sentir sozinho – não há motivo para isso, tenho a minha senhora ao meu lado, ama-me e muito -, por haver sido condenado à solidão por não haver deixado pedra sobre pedra com os ácidos críticos em taças de cristal que ofereci à população, mostrar-lhes o lugar, enfim, que ocupam e representam no mundo. Uma comunidade sem ética, moral, princípios e valores é um estábulo cheio de gente. Se fechassem as fronteiras, um estábulo. Contudo, a cidade é cercada de serras. Separada de tudo e de todos, apodrece ao longo do tempo.
Não conheço piores sofrimentos – misturados com prazeres, contudo – do que os que senti quando Kátia Moreira, uma namorada da juventude, me deixou acreditar que poderia amar-me, e quase imediatamente me abandonou. No entanto, se eu soubesse querer, tê-la-ia retido!
Não posso afiançar-vos se Kátia Moreira inventara, criara, se havia lido; verdade é que dois dias antes do término de nossas relações contara-me algo. Um matagal muito fechado. O tempo sobremaneira nublado, não havendo qualquer denúncia de haver chovido, mesmo no dia anterior. Aproximou-se de um córrego, a água preta de tão suja, causando-lhe nojo. Sem alternativa: tinha que atravessar. Voltar impossível. Nem mesmo sabia como chegara ali. Não sabia de onde viera, por que lugar passara. Necessário continuar. Para onde estava indo? Atravessando o córrego, seguira em linha reta, em algum lugar teria de  chegar.
A questão era mesmo aquela água preta. Tinha nojo. Entrar nela!... Que situação!... Não sabia voltar de onde viera. Não iria ficar ali, em pé, sem fazer coisa alguma. A única proposta de resolução era a travessia. Ao menos se pudesse seguir a margem do córrego, mas, além de quase impossível entrar no matagal, era uma região de brejo. Não era um córrego largo nem estreito. Apesar disso, não conseguia enxergar o outro lado devido ao nublamento. Tinha de tomar uma decisão, embora nada soubesse de... não soubesse sobre o que iria encontrar do outro lado. Havia um cipó  dentro da água. Teria de usá-lo para alcançar o chão de terra da outra margem.
Decidiu pular de mergulho. Preferia o corpo inteiro naquela água a somente os pés. O que desejava mesmo era sair do impasse. Pulou. Saiu do outro lado. Segurou-se no cipó, atolou o pé direito na lama. Subiu. Seguiu em linha reta. Mesmo não sabendo para onde estava indo, sentia-se  mais tranqüila. Estava numa enorme sujeira.
Era um sonho que havia tido. Talvez tenha interpretado de modo a acreditar que não podia continuar a relação comigo, não podia deixar-me acreditando que fosse possível amar-me; a nossa relação prejudicava-a, se continuasse, as conseqüências seriam reais e difíceis.
Oh, senhores, não é precisamente porque nunca pude terminar nem começar nada que me considero um homem inteligente? Seja, sou um charlatão inofensivo - como todos!  Mas                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          quê?! Não é essa charlatanice o único destino de todos os homens inteligentes? Essa charlatanice, isto é: a ação de derramar o nada no vácuo?
Apreciáreis essa expressão “derramar o nada no vácuo”. Não estou em condições de esclarecer agora, faltam-me as palavras que definiriam o que quero significar com ela diante dessas circunstâncias. Talvez estejais pensando que não me encontro mais deprimido, felizmente superei, tive lições breves, mas eficientes para conviver com os problemas. Ao contrário, não me res-tabeleci de todo, começo a fazê-lo. Só quem está deprimido consegue derramar o nada no vácuo, esta estranha façanha, dependendo do grau de depressão, torna-se perfeita, mas a imperfeição habita o íntimo do homem, e dela não consegue sair. Não, não desejo justificar o suicídio – como vós sugeris e insinuais com o brilho intenso nos olhos-, quero apenas dizer que é uma ação contra a depressão isso de derramar o nada no vácuo. Só o múltiplo pode tomar o lugar do nada, e o vácuo...
Sentia presente, forte, a eriçar-me os cabelinhos dos braços e por toda a medula, na escuridão da varanda, a desconfiança prematura que é, nas criaturas rudemente vergastadas pela ad-versidade, uma  espécie de sexto sentido – e qualquer parcela de alegria, de felicidade ou de esquecimento era para mim um fato tão   inesperado, tão irreal, que me sentia tímido, sufocado, sem ousar me apossar do que parecia ter vindo furtivamente às  minhas mãos, por um desses obscuros acasos.

Depois de terríveis lutas e dificuldades, consegui, durante os últimos meses, entender algumas das lições que  se escondem no âmago da dor, algumas mensagens que habitam o sofrimento. Os pregadores, e outras pessoas que costumam usar frases destituídas de bom senso, falam às vezes do sofrimento como de um mistério. Na verdade, ele é uma re-velação. Através dele, percebemos coisas que nunca havíamos percebido  antes, encaramos a História sob um ponto de vista inteiramente novo: tudo o que sentíamos  vagamente, por instinto, sobre a arte, passa a ser apreendido tanto sob o aspecto emocional quanto intelectualmente com perfeita clareza e intensidade.  

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