Iniciando a noite, fui para a varanda
de minha residência, colocando uma cadeira para sentar, próxima ao parapeito.
Olhava a rua sem qualquer movimento, um verdadeiro deserto, as luzes por todos
os lados. Ouvia no íntimo várias vozes: “Por que não nos dirige missiva? Se tu
estás assim, imagine nós por todos os séculos e milênios! Assim,
confortar-nos-á, sentir-te-ás também confortado”.
A depressão havia, enfim, re-velado o
quando deveria acontecer a tão esperada missiva que desejava enviar a todos os
homens, humanidade? Quem sabe esteja maduro o suficiente para esta empreitada.
Deveria alegrar-me, chegara o que esperava. Era colocar a “mão na massa”.
Indagava-me, circunspecto, se se pode
ter mínima consideração por si mesmo aquele que comete o sacrilégio de tirar prazer
de sua própria humilhação? E não digo isso por nenhum arrependimento hipócrita.
Nunca pude concordar em dizer estas palavras: “perdão, papai, não o farei
mais”. Não porque fosse incapaz disso, mas, ao contrário, porque tinha
demasiada vontade de fazê-lo. Tive essa coragem de o dizer a amigo, era e é querido demais, senti-me culpado e
com remorso de haver-lhe sido agressivo. Não pensava que fosse fazê-lo devido à
coragem. Fui perdoado, a relação entre nós se solidificou mais. O homem merece
mais consideração e reconhecimento, quando pede perdão de suas atitudes e ações
indecorosas, indecentes.
Observai-vos melhor, e
compreender-vos-eis. Quanta vez imaginei aventuras e compus minha vida como um
livro! Quanta vez me aconteceu, por exemplo, ofender-me por nada, de propósito,
sem motivo! Mas excitamo-nos tão fácil e perfeitamente, que, afinal,
acreditamos ter sido verdadeiramente ofendidos. Freqüentemente, fiz esse jogo,
de tal maneira que acabei por me enganar e não ser dono de mim. Outras vezes,
tentei ficar apaixonado contra minha vontade. Sofri muito, juro-vos...
Nessa observação, é que pude conhecer
poucochinho – insuficiente para re-verter a depressão – a razão, motivo de
estar deprimido; sentia-me ofendido, humilhado, desrespeitado, o orgulho estava
ferido, o sangue jorrava, podia senti-lo nas feridas. Não me sentia ofendido e
humilhado por me sentir sozinho – não há motivo para isso, tenho a minha
senhora ao meu lado, ama-me e muito -, por haver sido condenado à solidão por
não haver deixado pedra sobre pedra com os ácidos críticos em taças de cristal
que ofereci à população, mostrar-lhes o lugar, enfim, que ocupam e representam
no mundo. Uma comunidade sem ética, moral, princípios e valores é um estábulo
cheio de gente. Se fechassem as fronteiras, um estábulo. Contudo, a cidade é
cercada de serras. Separada de tudo e de todos, apodrece ao longo do tempo.
Não conheço piores sofrimentos –
misturados com prazeres, contudo – do que os que senti quando Kátia Moreira,
uma namorada da juventude, me deixou acreditar que poderia amar-me, e quase
imediatamente me abandonou. No entanto, se eu soubesse querer, tê-la-ia retido!
Não posso afiançar-vos se Kátia Moreira
inventara, criara, se havia lido; verdade é que dois dias antes do término de
nossas relações contara-me algo. Um matagal muito fechado. O tempo sobremaneira
nublado, não havendo qualquer denúncia de haver chovido, mesmo no dia anterior.
Aproximou-se de um córrego, a água preta de tão suja, causando-lhe nojo. Sem
alternativa: tinha que atravessar. Voltar impossível. Nem mesmo sabia como
chegara ali. Não sabia de onde viera, por que lugar passara. Necessário
continuar. Para onde estava indo? Atravessando o córrego, seguira em linha
reta, em algum lugar teria de chegar.
A questão era mesmo aquela água preta.
Tinha nojo. Entrar nela!... Que situação!... Não sabia voltar de onde viera.
Não iria ficar ali, em pé, sem fazer coisa alguma. A única proposta de
resolução era a travessia. Ao menos se pudesse seguir a margem do córrego, mas,
além de quase impossível entrar no matagal, era uma região de brejo. Não era um
córrego largo nem estreito. Apesar disso, não conseguia enxergar o outro lado
devido ao nublamento. Tinha de tomar uma decisão, embora nada soubesse de...
não soubesse sobre o que iria encontrar do outro lado. Havia um cipó dentro da água. Teria de usá-lo para alcançar
o chão de terra da outra margem.
Decidiu pular de mergulho. Preferia o
corpo inteiro naquela água a somente os pés. O que desejava mesmo era sair do
impasse. Pulou. Saiu do outro lado. Segurou-se no cipó, atolou o pé direito na
lama. Subiu. Seguiu em linha reta. Mesmo não sabendo para onde estava indo,
sentia-se mais tranqüila. Estava numa
enorme sujeira.
Era um sonho que havia tido. Talvez
tenha interpretado de modo a acreditar que não podia continuar a relação
comigo, não podia deixar-me acreditando que fosse possível amar-me; a nossa
relação prejudicava-a, se continuasse, as conseqüências seriam reais e
difíceis.
Oh, senhores, não é precisamente porque
nunca pude terminar nem começar nada que me considero um homem inteligente?
Seja, sou um charlatão inofensivo - como todos!
Mas
quê?!
Não é essa charlatanice o único destino de todos os homens inteligentes? Essa
charlatanice, isto é: a ação de derramar o nada no vácuo?
Apreciáreis essa expressão “derramar o
nada no vácuo”. Não estou em condições de esclarecer agora, faltam-me as
palavras que definiriam o que quero significar com ela diante dessas circunstâncias.
Talvez estejais pensando que não me encontro mais deprimido, felizmente
superei, tive lições breves, mas eficientes para conviver com os problemas. Ao
contrário, não me res-tabeleci de todo, começo a fazê-lo. Só quem está
deprimido consegue derramar o nada no vácuo, esta estranha façanha, dependendo
do grau de depressão, torna-se perfeita, mas a imperfeição habita o íntimo do
homem, e dela não consegue sair. Não, não desejo justificar o suicídio – como
vós sugeris e insinuais com o brilho intenso nos olhos-, quero apenas dizer que
é uma ação contra a depressão isso de derramar o nada no vácuo. Só o múltiplo
pode tomar o lugar do nada, e o vácuo...
Sentia presente, forte, a eriçar-me os
cabelinhos dos braços e por toda a medula, na escuridão da varanda, a
desconfiança prematura que é, nas criaturas rudemente vergastadas pela
ad-versidade, uma espécie de sexto
sentido – e qualquer parcela de alegria, de felicidade ou de esquecimento era
para mim um fato tão inesperado, tão
irreal, que me sentia tímido, sufocado, sem ousar me apossar do que parecia ter
vindo furtivamente às minhas mãos, por
um desses obscuros acasos.
Depois de terríveis lutas e
dificuldades, consegui, durante os últimos meses, entender algumas das lições
que se escondem no âmago da dor, algumas
mensagens que habitam o sofrimento. Os pregadores, e outras pessoas que
costumam usar frases destituídas de bom senso, falam às vezes do sofrimento
como de um mistério. Na verdade, ele é uma re-velação. Através dele, percebemos
coisas que nunca havíamos percebido
antes, encaramos a História sob um ponto de vista inteiramente novo:
tudo o que sentíamos vagamente, por
instinto, sobre a arte, passa a ser apreendido tanto sob o aspecto emocional
quanto intelectualmente com perfeita clareza e intensidade.
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