O Curvelo
vale um conto
Cordisburgo
vale um conto e cem
Mas. As
lajes não tem preço
Porque lá
mora meu bem.
Guimarães
Rosa.
Conforme as palavras de João
Guimarães Rosa, numa trova, Curvelo vale um conto, Burrinho Pedrês, Sagarana,
e, reafirmando tais palavras desta primeira estrofe, endossando-as, desejo
tecer as linhas deste editorial, fundando nelas, não como análise da trova,
dentro do pensamento roseano, por muitíssimo pouco conhecer de sua obra, para
mostrar o por quê, para mim, Curvelo vale um conto e cem.
Vale um conto, sim, senhor, por
escolher veredas em cujas poeiras cada passo dado é outro passo, as
experiências e vivências se comungam, tornando-se únicas na vontade de
mudanças, transformações. No céu, as estrelas velam o ossuário da terra, nelas
inscritas as palavras divinas, as palavras que re-presentam, simbolizam a fé
que delas, sem pressa, sem margens, deixando-as re-velarem-se com
espontaneidade, a-nunciam-se os caminhos da salvação, ressurreição.
Curvelo vale um conto de ideais
de encontros e mudanças, de sonhos e desejos de conhecimentos, de saciar a sede
de amor, mas um conto em que as entre-linhas mostrem as contramãos das
hipocrisias, felicidades, fugas, aparências, a consciência do espírito, do
subterrâneo que nos habita, os sofrimentos e dores todos presentes, os homens
sendo quem são e na cotidianidade outras conquistas e relações.
Alguém me dissera Curvelo ser
bastante privilegiada, temos grandes talentos, personalidades famosas no mundo
inteiro, intelectuais renomados, atores de teatro, cinema e televisão,
escritores re-conhecidos, o que, de direito e fato, endossei, mas pensando na
origem, nas raízes que dis-ponibilizam a sensibilidade artística, cultural.
Ouvindo tais palavras, senti profundo essa origem, porque recebi o dom gratuito
de Deus da percepção, intuição, inteligência, letras, para saber ser a fé –
somos um povo místico, e por isso o privilégio dos dons e talentos.
Ainda conforme Guimarães –
esclareço desde aqui a intenção ser a de comungar Curvelo e Cordisburgo, no que
tange ao que dentro trago em mim pelas duas cidades -, “Cordisburgo vale um
conto e cem”, a razão deste “valimento” é única, é porque lá mora o bem. A obra
inteira do imortal escritor é a busca da espiritualidade, o bem mora nele, o
bem habita o coração do sertão, as veredas são as experiências e vivências, em
que todas as dimensões do ser “humano”, alma, espírito, corpo, psique se unem
num todo. Os subterrâneos do espírito mostram o que vivemos e o que neles
trazemos de sim, as contradições são pedras de toque para nos despertar de uma
realidade e construirmos outras que nos levem à sublimidade, elevem-nos na fé.
O bem é manifestação do coração, nele mora o perdão de nossos desencontros,
enganos, erros, pecados e culpas, o amor nele brota e suas pétalas encantam,
mostra-nos a sagrada face de quem somos.
Nas artes, na literatura, prosa e
verso, a presença do misticismo nas entrelinhas é latente, que sentimentos e
dores são estes que perpassam a alma, o dom e a dificuldade de real-izá-lo; o
que poderá me salvar? É preciso dis-ponibilizar as condições de serem
divulgados. Há em Rosa uma tensão entre efeitos de imaginário de fortíssimo
irracionalismo, emanados da condição mágico-metafísica de suas personagens e do
modo por que recebem e se representam o real, e efeitos racionais, não
explicitamente críticos, quando da encenação destes mesmos efeitos no texto.
Tomando isto em consideração,
refiro-me à linguagem e o estilo dos escritores curvelanos, a musicalidade, a
poiésis dos poetas mostram a tensão do imaginário da fé, irmanada à realidade
de sofrimentos, dúvidas, culpas, pecados, e do modo por que re-presentam as
aparências, não explicitamente arbitrárias, mas que se transformam em fantasmas
que lhes aparecem no silêncio da alcova, em momentos de angústias, tristezas,
depressões. A linguagem e o estilo das obras curvelanas revelam os subterrâneos
da alma dos homens. Nestas obras, encontramos vivas as esperanças de salvação e
ressurreição, latentes são os desejos de libertação dos curvelanos, dos
cordisburguenses.
Muitos têm medo de que suas
palavras revelariam a seu respeito algo que preferiam esconder. Outros poderiam
deduzir de suas palavras, gaguejos, tom de voz, inibições, tudo aquilo que
reprimiram com muito esforço. O Curvelo vale um conto de fé. Para João, podemos
superar esse medo somente acreditando que Cristo nos concedeu seu Espírito, que
no Espírito de Jesus temos acesso ao Pai, que Deus está perto de nós nesse
Espírito, e que pelo Espírito temos comunhão com o Deus trino “Se alguém me
ama, permanecerá em minha palavra, meu Pai o amara, e nós chegaremos a ele e
habitaremos com ele”.
O Curvelo vale um conto de fé, um
conto de busca da liberdade. Para os curvelanos o que liberta dos medos, culpas
e pecados, é a fé, o que nos falta para isto real-izar é o desejo de nos
tornarmos livres das tensões dos sofrimentos e dores. A liberdade para a qual
Cristo nos libertou é a liberdade do pecado, da Lei e da morte. A liberdade do
pecado se re-vela no fato de, como Jesus, não vivermos mais para nós mesmos e,
sim, para Deus. No Espírito que Cristo nos concede “a existência está libertada
de sua auto-referência e de seu comportamento”. Quando o ser humano não está
mais enclausurado em si mesmo, mas está em Cristo, então ele livrou-se do
pecado.
A poetisa cordisburguense Sara
June escreve esta estrofe num de seus poemas, Vozes do corpo, “Não há salvação
para os meus/ pecados capitais...”. O curvelano vale um conto, vale um conto de
fé porque se angustia com seus pecados capitais, se vivesse profundamente esta
angústia, descobriria nela as sementes para a salvação, infelizmente a reprime.
A liberdade se manifesta com o encontro, o encontro do outro, a doação
verdadeira e sincera. A sua angústia são os outros, a eles não querem
entregar-se. Valem um conto e cem, Cordisburgo e Curvelo, duas almas irmãs, os
lados da mesma moeda, a fé e esperança do encontro, as veredas são as
mesmas.
Cordisburgo vale cem conto. O
sertão é, como diz Rosa com imagens roubadas à teologia, o mundo em que o homem
ainda não provou o fruto da árvore do bem e do mal, daí a necessidade de uma
linguagem absolutamente singular. A linguagem deve ser singular, autêntica,
comungue as dimensões da fé e o quotidiano das dores e conflitos, tensões e
contrariedades das utopias e realidade, dúvidas, medos, angústias. Nas obras
curvelanas e cordisburguenses mora o desejo do fruto da árvore do bem e do mal.
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