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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

IN-VERSO DE RE-VERSOS IN-VERNOS - Manoel Ferreira Neto.


O Curvelo vale um conto
Cordisburgo vale um conto e cem
Mas. As lajes não tem preço
Porque lá mora meu bem.
Guimarães Rosa. 

Conforme as palavras de João Guimarães Rosa, numa trova, Curvelo vale um conto, Burrinho Pedrês, Sagarana, e, reafirmando tais palavras desta primeira estrofe, endossando-as, desejo tecer as linhas deste editorial, fundando nelas, não como análise da trova, dentro do pensamento roseano, por muitíssimo pouco conhecer de sua obra, para mostrar o por quê, para mim, Curvelo vale um conto e cem.
Vale um conto, sim, senhor, por escolher veredas em cujas poeiras cada passo dado é outro passo, as experiências e vivências se comungam, tornando-se únicas na vontade de mudanças, transformações. No céu, as estrelas velam o ossuário da terra, nelas inscritas as palavras divinas, as palavras que re-presentam, simbolizam a fé que delas, sem pressa, sem margens, deixando-as re-velarem-se com espontaneidade, a-nunciam-se os caminhos da salvação, ressurreição.
Curvelo vale um conto de ideais de encontros e mudanças, de sonhos e desejos de conhecimentos, de saciar a sede de amor, mas um conto em que as entre-linhas mostrem as contramãos das hipocrisias, felicidades, fugas, aparências, a consciência do espírito, do subterrâneo que nos habita, os sofrimentos e dores todos presentes, os homens sendo quem são e na cotidianidade outras conquistas e relações.
Alguém me dissera Curvelo ser bastante privilegiada, temos grandes talentos, personalidades famosas no mundo inteiro, intelectuais renomados, atores de teatro, cinema e televisão, escritores re-conhecidos, o que, de direito e fato, endossei, mas pensando na origem, nas raízes que dis-ponibilizam a sensibilidade artística, cultural. Ouvindo tais palavras, senti profundo essa origem, porque recebi o dom gratuito de Deus da percepção, intuição, inteligência, letras, para saber ser a fé – somos um povo místico, e por isso o privilégio dos dons e talentos.
Ainda conforme Guimarães – esclareço desde aqui a intenção ser a de comungar Curvelo e Cordisburgo, no que tange ao que dentro trago em mim pelas duas cidades -, “Cordisburgo vale um conto e cem”, a razão deste “valimento” é única, é porque lá mora o bem. A obra inteira do imortal escritor é a busca da espiritualidade, o bem mora nele, o bem habita o coração do sertão, as veredas são as experiências e vivências, em que todas as dimensões do ser “humano”, alma, espírito, corpo, psique se unem num todo. Os subterrâneos do espírito mostram o que vivemos e o que neles trazemos de sim, as contradições são pedras de toque para nos despertar de uma realidade e construirmos outras que nos levem à sublimidade, elevem-nos na fé. O bem é manifestação do coração, nele mora o perdão de nossos desencontros, enganos, erros, pecados e culpas, o amor nele brota e suas pétalas encantam, mostra-nos a sagrada face de quem somos.
Nas artes, na literatura, prosa e verso, a presença do misticismo nas entrelinhas é latente, que sentimentos e dores são estes que perpassam a alma, o dom e a dificuldade de real-izá-lo; o que poderá me salvar? É preciso dis-ponibilizar as condições de serem divulgados. Há em Rosa uma tensão entre efeitos de imaginário de fortíssimo irracionalismo, emanados da condição mágico-metafísica de suas personagens e do modo por que recebem e se representam o real, e efeitos racionais, não explicitamente críticos, quando da encenação destes mesmos efeitos no texto.
Tomando isto em consideração, refiro-me à linguagem e o estilo dos escritores curvelanos, a musicalidade, a poiésis dos poetas mostram a tensão do imaginário da fé, irmanada à realidade de sofrimentos, dúvidas, culpas, pecados, e do modo por que re-presentam as aparências, não explicitamente arbitrárias, mas que se transformam em fantasmas que lhes aparecem no silêncio da alcova, em momentos de angústias, tristezas, depressões. A linguagem e o estilo das obras curvelanas revelam os subterrâneos da alma dos homens. Nestas obras, encontramos vivas as esperanças de salvação e ressurreição, latentes são os desejos de libertação dos curvelanos, dos cordisburguenses.
Muitos têm medo de que suas palavras revelariam a seu respeito algo que preferiam esconder. Outros poderiam deduzir de suas palavras, gaguejos, tom de voz, inibições, tudo aquilo que reprimiram com muito esforço. O Curvelo vale um conto de fé. Para João, podemos superar esse medo somente acreditando que Cristo nos concedeu seu Espírito, que no Espírito de Jesus temos acesso ao Pai, que Deus está perto de nós nesse Espírito, e que pelo Espírito temos comunhão com o Deus trino “Se alguém me ama, permanecerá em minha palavra, meu Pai o amara, e nós chegaremos a ele e habitaremos com ele”.
O Curvelo vale um conto de fé, um conto de busca da liberdade. Para os curvelanos o que liberta dos medos, culpas e pecados, é a fé, o que nos falta para isto real-izar é o desejo de nos tornarmos livres das tensões dos sofrimentos e dores. A liberdade para a qual Cristo nos libertou é a liberdade do pecado, da Lei e da morte. A liberdade do pecado se re-vela no fato de, como Jesus, não vivermos mais para nós mesmos e, sim, para Deus. No Espírito que Cristo nos concede “a existência está libertada de sua auto-referência e de seu comportamento”. Quando o ser humano não está mais enclausurado em si mesmo, mas está em Cristo, então ele livrou-se do pecado.
A poetisa cordisburguense Sara June escreve esta estrofe num de seus poemas, Vozes do corpo, “Não há salvação para os meus/ pecados capitais...”. O curvelano vale um conto, vale um conto de fé porque se angustia com seus pecados capitais, se vivesse profundamente esta angústia, descobriria nela as sementes para a salvação, infelizmente a reprime. A liberdade se manifesta com o encontro, o encontro do outro, a doação verdadeira e sincera. A sua angústia são os outros, a eles não querem entregar-se. Valem um conto e cem, Cordisburgo e Curvelo, duas almas irmãs, os lados da mesma moeda, a fé e esperança do encontro, as veredas são as mesmas. 
Cordisburgo vale cem conto. O sertão é, como diz Rosa com imagens roubadas à teologia, o mundo em que o homem ainda não provou o fruto da árvore do bem e do mal, daí a necessidade de uma linguagem absolutamente singular. A linguagem deve ser singular, autêntica, comungue as dimensões da fé e o quotidiano das dores e conflitos, tensões e contrariedades das utopias e realidade, dúvidas, medos, angústias. Nas obras curvelanas e cordisburguenses mora o desejo do fruto da árvore do bem e do mal.





[1] Edição nº 03, 23/07 a 23/08/2009, E agora?  

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