S
enhora, Ó hora da
ascensão, os olhos sobem, perdem-se maravilhados no raiado do espaço, fremente
de luzes, ofuscados de brilhos. Entre eles procuro uns que lá não estão; que
estão onde? Porque deve brilhar para os meus olhos que os pressentem. Terei
crescido o bastante? Que tem que ver com uma mulher a infância absoluta?
Subitamente, ela emerge e surpreendo-me. Porque supunha a infância absoluta assimilada
na estabilidade de minha força. Subitamente. Despojado de mim, do que me sei,
não é o nada que aparece, mas outra coisa, a outra coisa de todas as coisas –
que coisa? Irredutível, fugidia.
De Vós, Senhora, a voz sem
eloqüência, os cabelos longos, a origem sem início, a cor...
De Esther, o fio das
palavras, a linha dos estilos e significados, os olhos míopes, a história sem
desfecho, sem fim, o começo, a dor. São seis horas: entre mim e o aqui-agora, a
sombra e suas sobras. De minha história, imagens fátuas, ausências luminosas,
resplandecentes. De minha vida, perspectivas de esperanças, fé, sonhos,
comungadas aos sofrimentos e dores, ressentimentos, mágoas, o ímpeto de
encontrar salvação, a partir de entrega, luta, esforços os mais variados.
Aqui-agora!... Lançando
vossas raízes numa alma, maravilhas de graça se produzem, e só Vós as podeis
produzir... Vós produzistes, com o Espírito Santo, a maior maravilha que existe
e existirá – um Deus-homem, e vós produzireis, por conseguinte, as coisas mais
admiráveis que hão de existir nos últimos tempos, em todos os tempos, aqui e
agora, por todo sempre. No vosso seio de caríssima Mãe, Cristo não só tornou a
carne que uniu a si hipostaticamente, mas, além disso, assumiu um Corpo
espiritual, formado por todos aqueles que haviam de crer nele: de modo que se
dizer que Vós, tendo em vosso seio o Salvador, trazíeis também todos aqueles
cuja vida estava encerrada na vida do Salvador.
Bendito o fruto de Vosso
Ventre! Bendita a Palavra de Vosso Útero!...
É vontade de Deus Espírito
Santo que em Vós e por Vós se formem eleitos, e em Vós se reproduzam, gerando
em cada filho as raízes de Vossa fé, de Vossa humanidade profunda, de Vossa
mortificação universal, de Vossa oração sublime, de Vossa caridade ardente, de
Vossa firmíssima esperança e de todas Vossas virtudes.
No Vosso olhar, de Virgem
Maria, vêem-se as dores de Jesus, que por todos nós, os homens, indivíduos, eus
que desejam a autenticidade das situações e circunstâncias, morreu pregado na
Cruz. No momento em que o sol desfalece, abre sua face de outras manhãs,
alvoreceres, seis horas, Ave Maria... Recolhe-se a Natureza, samambaias,
flamboyants, rosas, damas-da-noite...
Fito, em torno, com olhos
que já não são mais deste mundo, que não são mais desta vida, e eu tenho forças
para tudo, tenho todos os ímpetos no corpo e no espírito, menos para mentir
diante desse olhar, que vislumbra e con-templa a Verdade, o Amor. O que vem nele ergue-se com o impulso de uma
seiva ascendendo ao longo de um caule – só que a ramaria se acha morta, e
nenhuma flor brota mais desta paisagem em despedida.
Confio-Vos o meu excesso,
paradoxos, extremismos, o meu avesso, re-verso, que me empresto à imagem vária
que me dei, ou seria melhor dizer que me doei de modo que a esquerda não viesse
a saber o que a direita doara. Viajo ao longo do que sou, entre miríades de
idéias e pensamentos, sonhos e utopias, entre imagens de emoções, sentimentos, busco
tecer o que em mim trago dentro, as ad-versidades e similaridades desejo
comungar com dignidade. Esplêndido
vislumbrar os resultados deste tecimento, a obra de arte, ornamentos e
arrebiques; contudo, o prazer e felicidade que constituiriam o orgulho, a
lisonja, o sentimento de que a real-ização se faz presente e a Vida, vivida e
vivenciada em todos os dias de modo diferente. A busca continua sua trajetória,
destino, rumo. Passei a vida inteira observando minhas “mães de criação”,
tecendo, crocheteando, costurando. Antes de morrer, a vovó crocheteou colcha de
cama de casal para mim, fora a sua última obra. Morrendo, a madrinha, a que
considerava mãe, chamava-a de Dinha, deixou-me uma pequena imagem Vossa que
trago sobre a mesa de meu escritório. Já deve ter quase cem anos de existência,
se não mais por haver sido da vovó. Com agulha, não saberia tecer ou
crochetear, mas tecer com as palavras me não é trabalho sobremodo árduo. Bastam-me
engenhosidade, esforço e dedicação para trabalhar, sonhar com o desfecho,
desejar resultados universais e divinos.
Não pertenço ao número dos
Reis Magos, mas ficou-me o jeito de o ser, um rastro procuro, rastro de nada,
um sinal busco, sinal de nada. Não o encontrar não será porque o desfiz com os
próprios pés para não ser seguido, para não ser des-coberto, para seguir em paz
a estrada que escolhi percorrer até o fim de meus dias? Caminho à deriva pelas
ruas, que é que me acena? Não o sei reconhecer, serão miríades de luz, o que
será? Será a vida que enfim deseja mostrar-se de modo pleno e sublime,
reconheceu que pode confiar em minha boa vontade, nos desejos verdadeiros que
alimento no peito, servir-se de mim para esta re-velação? Sinto-me bem. Esquema
invisível orienta o meu deambular e é decerto daí que vem a minha segurança,
porque me sinto bem. Pelas ruas, becos, gentes alegres e satisfeitas caminham.
Têm encontro marcado, sabemo-lo, encontro com a verdade perfeita. Verdade
antiqüíssima e intocável. Envelhecem, apodrecem, tornam-se cinzas, a verdade
fica, deixam-na em herança como a própria vida. Deixam-se como ícone de alguma
coisa, merecedores de serem seguidos, imitados, plagiados.
Agora tudo é perfeito,
absoluto, sutil, nu. A primavera continua a caminhada, longa, mas pura em todo
esplendor e maravilha. Camada nova re-compõe a terra em perfeição, sutileza,
contemplação. Um cão uiva, no horizonte a vida, talvez seja o meu cão “museu”,
fazendo-se anunciar, magro, surrado de miséria. “As inglesas o adotaram, criaram,
educaram, deram-lhe a cultura que usufrui, depois se foram, deixou-o por aí”,
vozes em uníssono ouço, dizendo-me isto, olho em direção ao infinito, nuvens
azuis e brancas. Ainda há muitas coisas para fazer, realizar, sentir-me em
verdade livre das peias, algemas e correntes do passado.
Assumo a Imagem que me ilumina.
Assumo o Ser Divino que é Generosa, Amiga, Compassiva, Solidária, Mãe... A
explicação de mim, do que faço e vivo, é tão ridícula como monte de feno à
beira de Taberna perdida na estrada sem fim... No fim de contas, constato quem
sou e para quê a existência. Mas inventar o quê?! Teria algo a ser inventado? A
ser criado, re-criado? E para quê? Lindo, maravilhoso, digno dos deuses do
Olimpo, mas, sem a essência da Vida, valor algum tem, é inútil, despautério
mesmo. Re-conto a minha história, oferto-me com prazer e deleite pequena
ilusão: nalgum lugar Sofia re-nascerá, aí começará a Vida, a Verdadeira, com
uma Fé que alimenta sempre a minha vida, a Fé em “Vós”. O mundo tinha de
morrer, e é só, e junto com ele as suas coisas. Havia muita coisa que incitava descobrir.
Onde, não sei! Levo a face, o semblante, a imagem, deixo o espelho e seu
reflexo, deixo a perspectiva e origem, deixo o ângulo e a resolução. Em Vosso
rosto, Senhora, de-posito o meu assombro, espanto, susto, medo, temores, os
meus sentimentos, emoções, o meu Ser entrego-Vos em mãos, iluminai-me.
Re-colhei-me, a-colhei-me nelas feitas concha, um pequeno ser que necessita de
Vosso Amor, Compaixão, Solidariedade!...Só Vós achastes graça diante de Deus,
sem auxílio de qualquer outra criatura. E todos, depois de Vós, que acharam
graça diante de Deus acharam-na por intermédio de Vós, e é só por Vós que
acharão graça os que ainda virão.
Vago ressoar pelo espaço,
como respiração da montanha. Imperceptivelmente, nos recantos de sombra, o “ó”
da geada brilha. O ar gélido desfibra-me a garganta. Até que tudo findou.
Manoel Coveiro, com a pá, alisa a terra sobre o túmulo num requinte de
perfeição. Dá-lhe ainda uma olhadela perita e satisfeita. Depois recomeça a
carregar o esquife e a ferramenta da carroça. Nós partimos.
O Senhor ia dirigindo
Vossos passos. Através das circunstâncias alegres e dolorosas de que está cheia
a vida. Ele vos ia conduzindo. À primeira vista, Vossa vida podia parecer uma
descensão; do maior para o menor, de Jerusalém para Séforis e depois de Séforis
para Nazaré... Mas para Vós era o contrário. Na Vossa vida, à medida que
passavam os anos, ocorria fenômeno inverso: do menor para o maior. E não só nas
passagens dos anos, mas no que vos chamaríeis de maturação espiritual e nas
possibilidades para crescer na vida interior. Em Nazaré, encontráreis maior
recolhimento, mais tempo para Deus, maior desprendimento. Parecia-Vos o lugar
de Deus, que amava as coisas humildes, aquelas que não têm nome.
Que responsabilidade, hein,
Senhora, tinha de cuidar do Filho de Deus e Vosso, tinha de dar-Lhe a Vida,
enfim os homens desde toda a eternidade esperavam a vinda do Salvador do mundo!
Perseguidos, Vós e José!... O Filho de Deus nasceria, custasse o que custasse.
A fé na proteção de Deus era inabalável, a confiança na Sua iluminação existia
de verdade. Nada temia.
Colina... colina que domina
aldeia, casinhas simples e brancas, no meio de romãzeiras e ciprestes. Grande
depressão arredondada, de frente para o sul, e as vertentes das colinas descem
suavemente até o centro, onde se eleva outeiro no qual se instala a população.
Vós permanecestes por toda
vida oculta. Tão profunda, abismática, essencial e nuclear era Vossa humildade.
Para vós o atrativo mais poderoso, constante, era esconder-Vos de Vós mesma e
de toda criatura, para ser conhecida somente de Deus. Nisto inspirado, não
sendo apenas re-presentação, não desejando ser fantasia e quimera, modo de
justificar as dores, ressentimentos, mágoas, devido às discriminações,
preconceitos, violências físicas sofridas, mostro-me, re-velo-me, digo-me
somente aos íntimos, à minha senhora, para ser conhecido apenas por eles. Nas
letras, sei como agir e atuar, sei como reunir as perspectivas, sei como
comungar as imagens e sentimentos, sei como confundir, tripudiar os enredos e
molduras, para que transcenda o meramente dado, a contingência vivida,
experimentada, isto sem deixar de ser verdadeiro com que penso e sinto seja eu,
sem deixar de ser digno e honrado com os sonhos de liberdade, integridade,
acima de nada, antes de tudo, com a minha salvação, redenção dos pecados e
culpas. Enfim, não quero expor nas prateleiras literárias o íntimo. Não tenho
medo de opiniões, sou homem consciente da vida e dos limites. Se me não estou
enganado, isto se denomina autodefesa, isto se chama segurança.
Para atender aos pedidos
que fizestes a Deus de esconder-Vos, Senhora, empobrecer-Vos e humilhar-Vos
Deus providenciou para que permanecêsseis oculta em Vosso nascimento, Vida,
passando despercebida dos olhos de quase toda criatura humana. Vossos próprios
parentes não Vos conheciam; e os anjos perguntavam muitas vezes uns aos outros:
“Quem é esta?”, pois que o Altíssimo a escondia; ou, se algo lhes desvendava a
respeito, muito mais, infinitamente lhes ocultava.
Quanta vez, Amada e Querida
Mãe, em visitas aos familiares de minha senhora permaneci em silêncio absoluto,
enquanto todos tagarelavam a todos os ventos – alguns pensando que lhes ouvia a
tagarelice, no íntimo censurava e negligenciava as condutas e posturas
diversas, as atitudes e sentimentos de não, quando, em verdade, não prestava a
mínima atenção nas palavras, nos sentimentos e emoções que com elas eram
revelados. Em verdade, presto divino tributo ao silêncio, nele me encontro,
nele busco o que me preenche, o que me sacia os desejos de conhecimento.
Devido a estas atitudes,
para todos arbitrárias e gratuitas, para todos orgulho, quem eram eles para
dialogarem comigo, não tinham condições, pois que o nível de cultura e
intelectualidade transcendia-lhes, alguém dissera à minha senhora: “Parece ser
um homem muito inteligente, mas não se abre para ninguém”. Não, Senhora, não me
abro para as pessoas em particular, abro-me para os homens em sentido
universal. Mas também, Senhora, salvas estas explicações que elaboro do “fundo
do peito”, jamais compreendi, não o farei nunca, o porquê de quando duas ou
mais pessoas estiverem reunidas a palavra deverá sempre ser pronunciada. Também porque sempre que dizia algo em
presença delas, o que pensava e sentia, era objeto de chacota ou de censura, ou
era homem desprezível pelo que sentia ou pensava ou por ser sonhador, ter
imaginação sobremodo fértil, ou por ser louco, desequilibrado. Precisava
encontrar meios de expressão, de exteriorizar os sentimentos e emoções, idéias
e pensamentos, encontrei as letras, entreguei-me. Salvei-me.
Para mim, é dom silenciar-me na presença das
pessoas, é dom falar, falar na minha solidão, quando escrevo. É neste momento,
em presença de mim mesmo, que me abro, rasgo as letras dos verbos que me
habitam o espírito, rasgo os verbos de letras que me fazem sofrer. Aliás,
Senhora, sempre vos pedi no íntimo de mim que me protegêsseis, iluminásseis-me,
não deixásseis me perder por nada deste mundo. Creio que Vós, nisto confio e
tenho fé absoluta e perene, providenciastes para que a minha sensibilidade
permanecesse pura, as minhas letras permanecessem verdadeiras, embora as
circunstâncias e situações da vida e dos sofrimentos, dores, em qualquer
momento pudesse nelas me inspirar para revelar o que dentro trago em mim, a
missão que Vós, os Cinco, Deus, Espírito Santo, Vós, Jesus e José me incumbiram
de real-izar.
Minha Mãe querida – antes
de vós sempre foi “Dinha”, quem, aliás, despertou-me no Espírito a Vossa
Presença e amor: “Você, filho, não teve pai, senão o Altíssimo, mas tem várias
mães que o amam, desejam-lhe felicidades . Maria Santíssima é a sua Mãe eterna,
e Ela será sempre a sua companheira na vida”-, quanto Vos quero, amo, adoro;
pedi-me por isto o que quiserdes, porque, seja qual for Vossa petição, sereis por
mim ouvida sempre. Minha Mãe, nada me negais na terra, é justo que nada Vos
negue, nada negue aos homens, à humanidade. Vós sois onipotente, Mãe querida.
Vós sóis onipotente por
natureza. Vós sois a única dentre todos da “indade”. A única mulher dentre
todos os divinos, onipotentes e onipresentes. Mãe, amo-vos mesmo de todo
coração, “do fundo de meu peito”.
As portas do inferno – ah,
Senhora, elucidai-me, esclarecei-me isto: existe mesmo o lugar “inferno”, onde
todos purgam seus pecados? O lugar “paraíso”
onde todos desfrutam das alegrias e felicidades absolutas e perenes? Ou
é apenas oratória das mais chinfrins e ridículas? Ah, Mãe, nós os homens
sabemos que onde quer que sois objeto de sincera e ardente piedade nunca pode
faltar a esperança da salvação. Assim, por mais que os homens porfiem com
violência e impiedade por tirar do ânimo dos cidadãos a santa religião e a
virtude cristã; por mais que o próprio Satanás procure, com todos os meios,
ativar esse combate sacrílego e agravá-lo ferozmente, segundo a frase do Apóstolo
das Gentes: “... não temos de lutar contra a carne e o sangue, mas contra os
príncipes e as potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra
os espíritos malignos”; apesar de tudo isso, se Vós interpondes Vosso valioso
patrocínio, as portas do inferno não podem prevalecer.
Fora fácil liquidar os
deuses e semideuses de todos os meus sonhos, de toda minha inquietação. Mas ao
fim de todas as mortes, nos limites do silêncio, há um fantasma sem nome,
oblíqua presença de nada. A terra é estéril e virgem, é a hora do Re-começo
Perfeito. Entrego a Vós, minha Mãe Santíssima, o silêncio total. A voz se cala
com a minha voz. Erguer-se-á da própria terra. Vem a voz desde o útero à
Palavra. Subitamente, uma iluminação!...
Esboço uma face a régua e
compasso, com aquela destreza e habilidade do engenheiro, do artífice. É falsa.
Desfaço o que fiz, o que criei, re-criei, desfaço o que imaginei. Retraço o
retrato, a imagem. Evoco o abstrato, o que transcende as formas, ângulos, perspectivas,
resolução. Faço da sombra minha origem, raiz. Faço das sobras sementes e
imagens.
Eternidade: um tempo que
quer dizer nunca mais! Difícil conceber este tempo, se “nunca mais” quer dizer
sempre, o nunca é inicio e origem do sempre. ... Destino dos homens. Ausência
de ausentes que não se espera, no mínimo espera as ausentes consintam nas
presenças, a presença se real-ize nos ausentes.
No Calvário, realiza-se o
seu maior acontecimento de todos os tempos. E é tão grande a Vossa Maternidade,
e tão ligada à aplicação dos méritos infinitos que Vosso Filho nos conquistou
com Sua morte e Deus Vos quis proclamada naquele momento especial de nossa
salvação. Podemos nós os Vossos Filhos dizer que Vossa Maternidade Espiritual
foi um testamento com letras de sangue.
É assim, Senhora, que me
sinto quando no ápice de dores e sofrimentos, o peito dilacerado, consigo
registrar o que sofro, e digo a mim: “escrevi com o sangue que me corre nas
veias”, escrevi com a tinta de todas as agonias, angústias e depressões. Se
observo com perspicácia as linhas de minha escritura, consigo contemplar
serenidade, não necessito mais pensar e sentir que nada fiz para tornar a Vida
digna, nada fiz para merecer viver como os homens, passei a vida em brancas
nuvens. Mas, olhando com mais perspicácia ainda, percebo que no íntimo
habitam-me as indagações mais percucientes, pungentes que as não posso
responder com clareza e transparência, perguntas que me afligem e deixam-me
suspenso, dores perpassam-me por inteiro.
Chego a pensar, Senhora,
que estou sendo fingido, sou falso, uso de farsa para justificar o que em mim
dilacera, divide, corta. Escrever belas e esplendorosas palavras não é difícil,
suficiente delinear as imagens, mas escrever palavras que revelam e mostram a
condição e natureza humanas, o que me habita, não é tão simples assim. Não há
única palavra na Bíblia que na superfície, nas linhas mesmas, a beleza, amor
não resplandeçam e nas entrelinhas habitam o verso de nossos sonhos e utopias. Desejo,
Senhora, atingir esse ápice nas minhas letras, desejo que as minhas palavras
sejam sementes de espiritualidade e amor, por mais gratuito e pecador seja eu;
desejo a universalidade do espírito com o que escrevo. Minhas obras sejam tão
importantes nos séculos e milênios vindouros como a Palavra de Deus. Sonhos,
sonhos, sonhos... Contudo, não perco tempo em dedicar-me fervorosamente, de
vasculhar os âmbitos de minha alma, de mergulhar profundo em quem sou, buscando
o que verdadeiramente habita-me o espírito.
Vida: ironia das ironias,
porque se vive na agonia, na dor, sem limites e fronteiras, no desespero e
desesperança. Alguém, não me lembra em que circunstâncias, situações, se amigo
íntimo, apenas conhecido, dissera-me que a vida é um tempo dentro de um tempo,
o sonho dentro de outros sonhos. A vida é algo que está entre o princípio e o
fim, entre a origem e as estirpes, causa e efeito, resultado e conseqüência.
Isto porque se morre em um tempo, em qualquer tempo.
Vós conheceis e vedes os
socorros, auxílios, ajudas de que necessito para viver, os perigos públicos,
sociais, políticos, que me ameaçam, as angústias e males que me oprimem, e
sobretudo a luta encarniçada que hei-de sustentar com os inimigos da salvação,
da redenção, da ressurreição.
Vós sabeis, Mãe amada e
querida, que Vós sois Vós!... Que é de Vós e para Vós que falo, sonho,
silencio, calo-me. Como posso falar, se não de Vós, se não por Vós. Vivo a
sonhar, vivo a tecer as letras de sonhos de plenitude e absolutidade, do eterno
e consagrado. Quando, nas primeiras horas da manhã, Vos vejo, quando entro no
escritório, no quadro dependurada na parede, na Vossa Imagem, duas outras
imagens Vossas ao lado de meu computador, não vejo Vós! Ouço Vossa voz
dizendo-me: “Levai, meu filho, a esperança, fé, amor a todos os homens através
de vossa vida e palavras”.
Senhora, por tudo que vivo
hoje, por todos os prazeres e alegrias que me habitam, por todas as felicidades
que usufruo, desde que me glorificastes com o amor, entrega, dedicação de uma
mulher, não seria nunca capaz de trairdes, amarei esta mulher como Vós amastes
Vosso Filho. Falar de mim no futuro será falar dela, de seu amor, compaixão.
Quis ver cessar o meu
pranto, desditas, ressentimentos, mágoas, ódios, raivas, eu que já tanto
sofrera... Vi-me a cismar, hoje, antes de entrar nesta igreja, caminhando a
esmo pelas ruas, alamedas, becos, ladeiras, e quando coloquei o pé direito
aqui, a Ave-Maria resplandeceu em todos os lugares da Vida, nós os homens somos
da mesma água, do mesmo âmago, da mesma essência.
Farto de mim, afasto-me, distancio-me,
e constato, diria até de queixo caído, Senhora: na arte ou na vida, em carne,
osso, pena, lápis, pincel, tintas, giz, onde estou não é sempre, onde sou não é
jamais, e o que sou é por um triz.
O silêncio estala a minha
boca como uma pedra, estala-me nos ossos. É o Silêncio do Espírito, da minha
condição última. É uma luz de dentro, íntima. É uma luz. O luar vibra – uma lua
enorme escorre pela montanha, coada luminosidade, pálida. É uma luz de dentro,
do útero, íntima. Luar aberto. Repassa a terra, residência, acende-lhe a
superfície o Halo do Mistério.
Quem, então, é meu próximo?
Nós, os homens, sabemos que o reconhecimento do outro é universal, é a sagrada
face. Todo homem é meu próximo. Num tempo em que a informação é mundial, em que
as mídias constituem um quarto poder, nós podemos ser tentados a confundir esta
universalidade do reconhecimento que é Amor, com uma forma sutil de abstração.
É bom, Senhora, ter a idéia fixa de um mundo que sofre, de homens que enfrentam
problemas os mais variados, dores as mais pujantes, sofrimentos difíceis; é
normal, Senhora, para um cristão.
Como em esperança o
alimento da vida, paragem breve ou longa para o balanço de um re-nascimento e
re-começo possíveis. O mundo é pequeno: cabe todo numa mão colérica. Pelas
entranhas dos montes, a areia acumula-se ao pé dos buracos, formigam homens
dentro e fora, obstinados, dentro e fora, tecnificados, formigam – o tempo
morreu. É o presente absoluto.
Luz de escuros, véu para o
olhar, contemplar, vislumbrar, que não vê senão a cor da noite que reluz. A lua
desliza sob as sombras do sol que não há. De um infinito azul, a serena ironia,
soberano cinismo: cerração de sono. O reino do longe é aqui: na terra insone,
na vigília do mundo, nos nevoeiros de espectros, onde a pedra consome a falsa
raiz, onde a raiz some na terra profunda.
De meu quarto, não digo
solitário, há letras, há luzes, há músicas, nenhuma envolvente penumbra, ouço
estrondear trovões. A chuva cai, desce as ladeiras; de quando em vez,
relâmpagos anunciam mais barulho. Outrora, uma cama vazia retratava o meu viver
sempre vazio; eterna espera de um bem que não vinha, um amor que se quer e nem
se sente.
Para a eternidade da
memória dos milênios de silêncio, para a contemplação e vislumbração, a Fé e a
Esperança, no negrume das sombras do céu, no cruzado símbolo da Cruz e do
Tempo, dobram os sinos, dobram – quem re-nasce?!...
Há-de chegar o instante que
todos nós sentiremos após a meditação, o quinhão de nossas culpas e remorsos,
de nossas dores e sofrimentos, sentimentos de pecado e de erros, enganos e
tropeços, pelo desmoronamento de tantos sonhos desfeitos.
Daí-me o esquecimento, oh,
Senhora. Daí-me uma noite sem sombra ou sobressalto, um sono inteiro, completo,
profundo, sem rumores. Daí-me Vosso silêncio, Senhora, a serenidade das flores,
a tranqüilidade das águas, a iluminidade da luz, o rigor das coisas. Daí-me,
Senhora, a plenitude do Amor. Somente o
perdão redime, e a humildade enobrece, assim nos ensinou Vosso Filho. Sinto-me
resignado a sofrer o meu castigo para me redimir das culpas.
Espero o que esperam, o que
todos esperam. Algo que jamais chegou. Mas espero, porque me desespero, torço,
contorço-me, se não espero o in-verso do que sou. Eu que sou efêmero, assim
como os homens que me cercam, me desespera, porque preciso ser eterno. A
eternidade é-me modo e estilo de compensação pelas dores e sofrimentos vividos,
pelas desesperanças e angústias da humanidade, dos homens.
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