Não tenho sono; não tento sequer meter-me na cama,
embora esteja arrumada, coberta azul, limpa, cheirando a sabão em pó, fronha do
travesseiro de espuma, branca, cobertor com listas brancas e pretas, chovera à
tarde, está “friozinho”. Tudo convida ao sono profundo, ao descanso das
preocupações, dos pensamentos e idéias comungados aos sentimentos e emoções.
Nada. Não tenho sono. Entro a andar de um lado para outro, passeando,
planeando, relembrando – à guisa de informação,
Dostoiévski gostava mais de andar de um lado para o outro, construindo
seus romances, do que propriamente escrevê-los. De memória em memória,
re-construo as ilusões de outro tempo, as quimeras que me perpassavam a alma,
as fantasias que me excitava, os sonhos tantos que me habitavam o mais profundo
de minhalma, as utopias que desejava realizar, vislumbrando um futuro sem
precedentes, vida de só alegrias, prazeres, felicidades, comparo-as com as
sensações de hoje, com os sentimentos e emoções que vivencio o íntimo, e
acho-me roubado.
Roubado? Que é isto de assim sentir-me? Deve haver
um equívoco, caso contrário, estou sendo inautêntico, e isto não é inerente à
minha índole, ou seja, não sou homem de negligenciar e rejeitar a minha vida.
Quem me roubara as ilusões de outrora? Se não fora alguém – no pensamento
ninguém se me surge, na alma não identifico qualquer ressentimento, mágoa,
raiva, ódio, no peito não vislumbro ou contemplo qualquer tristeza, angústia,
desolação, solidão -, o que me teria roubado a vida que imaginei fosse
desfrutar com orgulho e empáfia, sobremodo comum ao meu caráter e personalidade
incisivos? Nada, ninguém me roubara o que quer que seja. Confesso haver sentido
no íntimo que fora eu próprio quem me roubou a vida. Mas não. Para ser quem
hoje sou – amanhã serei outro... -, era necessário que vivesse o que vivi. O
tempo passou, como sempre passa, nada é mais efêmero que ele, talvez por isto a
vida seja breve, não o sei; outras experiências, vivências, realidades,
sentimentos e emoções, o que fora sendo construído, as quimeras se
metamorfosearam, as fantasias se transformaram – em quê? Não o sei, e isto é
verdadeiro; sei que a vida se tornou em uma busca incessante de sonhos,
vontades e desejos verdadeiros, de plenitude, eternidade, com o conhecimento de
minhas dores e sofrimentos, angústias e desesperanças, traumas e conflitos,
medos e tristezas, conhecimento que me permitira fazer da vida outro uni-verso,
alcançasse a espiritualidade.
Voluptuoso até nos sofrimentos, na dor, miro
afincadamente essas ilusões perdidas – é mesmo verdade esteja mesmo ansioso por
senti-las, vivê-las, experimentá-las “aqui-e-agora”, ou simplesmente me refiro
a elas no sentido de me inspirar nelas para outros vôos, sabendo
que experimente estou para mergulho mais profundo do que tentara naquela época
-, como uma velha contempla as suas fotografias da mocidade, como um escritor
relê as suas obras, os pensamentos e idéias que professava, deixou alguns para
trás, não resultariam em nada, adquiriu outras, aprofundou-as, sem esquecer das
outras mas comungando-as, o que com eles conquistou, utopias e sonhos que
criara, recriara, e sente que não fora autêntico com sua vida, seus interesses
e objetivos eram imortalizar-se aos olhos dos leitores, do mundo, e não aos
seus próprios também.
Não sou, busco o Ser. Acaso nas fantasias, quimeras de outro tempo,
acreditava “eu sou” – seria não fantasia, quimera, sim hipocrisia e cretinice
por a vida ser busca, sonho; se “sou”, não precisaria buscar o “ser” – aliás,
conforme a visão-(de)-mundo que me habita, concepções que trago em mim, a vida
seria eminentemente imbecil e ridícula não fossem as buscas e os sonhos do ser.
A busca é eterna.
Lembrou-me amigo que me dizia em todas as
dificuldades da vida, olhasse para o futuro, dizia-lhe em res-posta que o
futuro precedia o presente, reunindo as duas consciências é que pude pensar e
refletir, pude lançar-me para frente.
Abro a primeira gaveta de uma de minhas estantes de
livro, tiro dous ou três maços de cartas, cartões de amigos mui íntimos – à
guisa de algo interessante: por que certa vez fizera uma homenagem a pessoas
mui queridas, agradecendo-lhes as relações sempre afetuosas, amigáveis,
sensíveis, humanas, de doação, entrega e amor, escrevi no cartão-postal “nossas
relações íntimas”, alguém chamara-me a atenção, um tio, a quem mostrei antes de
enviar, “relações íntimas são as sexuais”, deveria dizer pessoais:
re-truquei-lhe dizendo que as pessoais tenho com as coisas, os objetos, os
homens, mas em se tratando de relações de amizade são íntimas, não concordou,
mas aceitou, enfim era tradicional, homem arraigado a princípios, normas,
regras, chegava a ser dogmático – e espirituais. Muitos deles estão encardidos
do tempo. Embora nenhum dos signatários, remetentes hajam morrido, o aspecto
geral é de cemitério, donde se pode inferir, num certo ângulo de visão, que não
tenho qualquer esperança de conciliar o sono, de sentir as ilusões de outro
tempo são felicidades de hoje.
Começo a reler todos os cartões, missivas simples,
considerações – quem sabe assim o sono chegue, mesmo que não o fizer, excite-me
ainda mais, tirando o sono que porventura se re-velasse, o modo e estilo de
leitura são de re-viver alegrias, felicidades, as emoções e sentimentos que
vivenciei, aquando abri as correspondências, li-as um sem-número de vezes -, mergulhando no oceano vivo das
recordações.
“É
bom sabermos que temos amigos tão cheios do Espírito Santo, tão agraciados por
Deus-Pai, Deus-Mãe, Deus-Filho. Saiba que a sua alegria e a luz que irradia do
seu lar chegam até aqui e nos contagia. Agradecemos ao céu por isto. Feliz
Natal e felicidade eterna para você. Beijos. Gustavo e Milena”.
Recosto-me à cadeira, olho através da janela aberta
de minha alcova - por que ainda
persistir e insistir nas fantasias? Alcova é de casal, um homem e mulher
dormindo agarrados, usufrindo sentimentos e emoções, amando e sonhando vida
outra, amantes que sabem serão eternos, nem a morte os separará, nada o fará,
nada intervirá no sentimento de amor de ambos; não me casei, não tenho ninguém,
vivo sozinho com uma aposentadoria de dois salários , que me permite pagar a
alimentação, roupa lavada e passada, uma governanta para fazer comida todos os
dias, faxina nos finais de semana, não tenho vícios, não esbanjo dinheiro à toa
– a madrugada que já vai alta. O relógio de parede da sala de visitas bate uma,
duas, três, quatro vezes, são quatro horas da madrugada, passei a noite quase
toda mergulhado no oceano vivo das recordações.
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