Total de visualizações de página

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

ABYSSUS ABYSSUM INVOCAT - Manoel Ferreira Neto.





Aqui está uma obra que há-de ser relida com apreço por todos os séculos e milênios, ultrapassando a consumação dos tempos – as coisas e objetos dis-cutirão, an-alisarão, in-terpretarão, buscando com-preendê-la, entendê-la, apresentando-a ao mundo, ouvindo seus senões, conselhos, sugestões de bases e raízes em que lhe mergulhar a profundidade; os homens doutos não puderam fazê-lo, a vida não lhes dera esta oportunidade, chance, chegou ao fim, então a incumbência de de-cifrá-la, des-trinçá-la, des-carná-la, ficou a cargo das coisas e dos objetos, pois que a profundidade é imensa, e não poderia ser esquecida; quando houverem homens de novo no mundo, será a pedra de toque para outras real-idades, sonhos, utopias. 


O autor que ocupa lugar eminente, nesta comunidade sertaneja, na crítica dos valores, na arte de destilar os ácidos contra as hipocrisias, farsas, falsidades, nas aparências de todas as categorias e laias da modernidade e atualidade, também enveredou um dia pelo olvidamento delas, buscando aperfeiçoar a sua arte, esclarecer mais dignamente as suas idéias, deixar transparentes os pontos de vista, opiniões, ideais, vontades e desejos, já que as críticas ferinas e ultrajantes não surtiram qualquer efeito, numa linguagem das mais chinfrins – não encontrando outra que abarque os seus interesses e objetivos -, tornaram-se conversa-pra-boi-dormir, parábola-para-jeque-abanar-as-orelhas; ouviu de todos que se julgava ele o mais perfeito dos homens, nasceu isento do pecado original, os gênios de todos os séculos deixaram a desejar com a sua inteligência, cultura, intelectualidade, tornou-se antipatizado por todos. Alguns de seus contemporâneos e conterrâneos, encontrando-se com ele pelas ruas, atravessavam a rua, avenidas, paravam não sabendo se seguiam, se voltavam, pois que as suas críticas e ironias surgiam frescas na mente, chegando até a passarem a mão na cabeça, a fim de se certificarem se não esqueceram o digníssimo chapéu de coco em casa, no rosto para sentirem se a máscara continuava bem ajustada, se já não apresentava algumas rugas. 


Já era tempo de dar às críticas outra e melhor edição, a repetição indiscriminada das coisas torna-se falta de criatividade, de inspiração, de observação dos outros horizontes e uni-versos da vida – e, sendo a arte eterno des-afio, tal despautério não pode mesmo acontecer, correndo o risco, acontecendo, de ser esquecido por todo o sempre, a tão almejada imortalidade acabou virando mortalidade das bravas, e a obra inscrita no Index Librorum Prohibitorum, não queimada em praça pública, mas mofando no quarto de bugigangas literárias das bibliotecas. 


Fora um sono bem agitado deste autor – agitadíssimo mesmo – pleno de pesadelos dos mais escalabrosos, impossíveis de serem descritos com rigor, seguindo-lhes a confusão que lhes é própria e característica. Acordou de supetão, dir-se-ia até que isto nada mais era que tentativa de escapar deles. Levantou-se. Fora até a cozinha tomar um gole de leite frio, o que sempre ajudara o autor a reconciliar o sono. Sentou-se na poltrona da cozinha, acendeu um cigarro. Ficara lembrando-se dos vira-latas da rua de sua casa, magros, com as costelas salientes, como se houvessem engolido arcos de barris. Os urubus que pousaram naquela tarde nas árvores, alguma vez baixando ao solo, andando com o passo ritmado de anjos de procissão. O cigarro acabou. Apagou a luz. Retornou ao quarto. Deitou-se, tentou dormir, não conseguindo. Não tinha jeito mesmo, o jeito era levantar-se, ir para o seu escritório. Em sua mente, apenas algumas imagens dis-persas e ad-versas dos pesadelos. Talvez pudesse ad-vir inspiração para um novo texto – não por intermédio dos pesadelos; como iria escrever sobre algo de que não se lembrava? Se reunisse as imagens que estavam frescas em sua mente, seria obra em absoluto sem pé e nem cabeça, ilegível, ininteligível. 


Havia, mui recentemente, coisa de três dias, feito cinqüenta e seis anos; era-lhe comum, desde que se entendeu como homem dotado de “inteligência incomum”, como político de suas relações pessoais havia dito com re-conhecimento e generosidade, nesta época acontecerem pesadelos constantes, só terminando no início de setembro, visto aniversariar-se no início de agosto, vinte e um dia de pesadelos. Estava explicado o que estava havendo com ele. Consciente, as coisas mudam inevitavelmente. 


Por três horas a fio e pavio, olhos fixos na página branca do computador, buscou idéias, espremeu os miolos, nada conseguira. Os pesadelos arrancaram-lhe não só a inspiração, arrancaram-lhe os sentimentos, emoções, estava por inteiro vazio, só a carcaça sentada na poltrona, e não há quem apresente argumentos contrários, ad-versos, para o fato de que nenhuma carcaça pode transcender-se, tornar-se letras, tornar-se obra de arte, ossos e carne não compõem obra de arte. 


Apagou a luz do escritório. Fora deitar-se. Pensara, passando pela cozinha para outro copo de leite gelado, tomar um comprimido de Dramin para dormir, não o fizera, contudo. Dormiria, com efeito, gastou muitas energias em busca da divina inspiração para novo texto, fatigou-se. Deitou-se. 


Enquanto esperava o sono, experimentou pensar em outras coisas, as que fazem um homem dormir tranqüilo, sereno. A floresta e a água envolvem e acabrunham a alma. São milhões, milhares e centenas os seres que vão pelos rios e igarapés, que espiam entre a água e a terra, ou bramam e cantam na mata, em meio de um concerto de rumores, cóleras, delícias e mistérios. A natureza estira os braços num bocejo preguiçoso... de quem deixa a rede.


Antes de completar a sua idéia, tendo parado no “bocejo preguiçoso” – eu é que completei para ele por benevolência, pois que senti que no seu espírito a imagem da rede se a-nunciou, pensando eu que, não conseguindo dormir, iria estender a rede no alpendre de sua residência, deitar-se, contar estrelas - o sono tomou-lhe por inteiro.


Não teve pesadelos. Dormia tranqüilo, sereno, dir-se-ia que os anjos, sensíveis com a sua falta de inspiração de novo texto, os pesadelos escalabrosos que tivera, tomaram-lhe nos braços, e entoaram a famosa musiquinha “se esta rua/se esta rua fosse minha/eu mandava/eu mandava ladrilhar...”. E o autor, agradecido com a gentileza dos anjos, entregou-se inteiro aos braços dos anjos, à musiquinha. 


A faculdade de ver claro e largo, a arte de dizer originalmente as sensações pessoais, o autor as possuía como os principais que hajam enveredado para as críticas deslavadas das condutas e posturas dos homens, de suas mazelas e pitis. Invenção de estilo, observação aguda, erudição discreta e vasta, graça, poesia e imaginação produziram páginas vivas e saborosas – lendo-as com espírito e perspicácia, chegava-se à perfeita conclusão de que o autor divertia, fazia esquecer as dores e sofrimentos da alma, os problemas quotidianos, fazia rir com a sua linguagem cáustica, ferina, com os seus jogos paradoxais. Crítico dos mais ferinos, mas engraçado no que tangia às suas considerações dos valores e virtudes humanas, adorava espicaçar os brios das pessoas.


Sonhara que estava deitado numa rede no alpendre de sua residência, um calor de assar a carne, trincar os ossos, estava sem camisa, de shorts. Sobre o banquinho um livro aberto, não podendo eu reconhecer-lhe o título e autor, o celular ao lado. O celular tocou. Atendeu. Uma voz esganiçada, era de mulher: “Tome vergonha na sua cara, vagabundo...”. Antes de o “o” de vagabundo” ser pronunciado, a famosa res-posta: “Vá a putaquepariu, mulher”, desligando. Pensara consigo mesmo: “com efeito, é leitora a quem a carapuça de minhas críticas serviu-lhe bem, com perfeição Virou lugar-comum leitores ligarem, descascando os meus pepinos”. O seu pensamento no sonho era verdadeiro: nas ultimas três semanas, recebera ligações várias de pessoas dizendo-lhe os maiores absurdos, humilhando-o, ofendendo-o. Deixava-lhes dizer o que quisesse em silêncio, desligavam por não ouvirem qualquer revide. A esposa, diante de seus comentários, dizia-lhe: “Seu problema é não dar nome aos bois, sua arte é a indeterminação; se lhes dessem nomes, fossem personagens, as carapuças não iriam servir a todos. Servem a todos, e todos se sentem nus aos olhos das pessoas. Têm de ligar para você, dizendo-lhe tantas coisas do arco da velha”. A mulher da voz esganiçada voltou a ligar de novo, não repetindo o palavrão anterior, dizendo-lhe tão simplesmente: “Deixe-me dormir em paz. Ligue-me pela manhã, quando acordar, serei todo ouvidos. Um autor tem também os seus direitos de descanso e sono, ora essa!”


Levantou-se da rede, apanhou o livro, colocando-o de por baixo do braço direito, dando uma gargalhada daquelas, lembrando-se de alguém haver-lhe dito: “Se andar com livro debaixo do braço é ser culto, você deve ser um deus de tanta cultura”. Comentário ridículo, pois que andava pelas calçadas lendo, às vezes dando de cara com os postes de cimento armado. Fechou a porta do alpendre. Sentando-se na poltrona, colocando os pés cruzados na mesinha de centro. A esposa passou, carregando nos braços as roupas secas, perguntando-lhe o que estava havendo, pareceu-lhe bastante sorumbático: “Mais uma das ligações ofensivas”. Nada respondeu. Abriu o livro, lendo a seguinte passagem: “No dia seguinte, ainda vinha rompendo a manhã, já eu me achava de pé. Entrou no meu quarto um escravo com um grande copo de leite tirado minutos antes. Em poucos goles o devorei”. 


Levantou-se num movimento só. Atravessou a sala de visita em passos largos. Tivera uma idéia supimpa. A caneta estava sobre o banquinho ao lado da cama, havia-lhe deixado lá sobre uma agenda. Precisava de folha de ofício. Iria escrever o que, sui generis, havia-lhe a-nunciado no espírito. Escrito, afixaria no portão de sua residência, quem passasse iria, inevitavelmente, ler. Não mais seria incomodado por ninguém. Difícil saber se o que lhe surgira fora inspirado nalgum escritor, filósofo, pois que eles é que são mestres em tais frases de efeito. Pareceu-me que havia se inspirado em Schopenhauer num escrito colocado na porta de seu quarto, frente a uma escadaria, “Não perturbe, estou trabalhando”. Dizem até que uma mulher, daquelas bem ousadas, bateu na porta; Schopenhauer abriu e jogou a mulher escada abaixo; ficara paralítica; todo mês ele tinha crises de depressão, devido ao fato de ter de pagar-lhe pensão por invalidez. Não era homossexual, mas detestava mulher, chegara até a dizer, visto que a mãe escrevera um livro, que, se ela fosse um dia reconhecida, não seria por seu livro, mas por ser mãe dele. 


Apanhou a caneta na alcova. Voltou à sala de visita, abriu uma gaveta do móvel, tirou uma folha de ofício. Sentou-se na mesa. Escreveu em letras garrafais: “Se perguntarem por mim, digam que fui pentear macaco, quando eu voltar apanho o pente”. Enquanto escrevia cada palavra, ria. Os olhos brilhavam. Achara a supimpa solução para as ofensas que vinha sofrendo nas últimas semanas.


Acordara. A esposa havia acabado de abrir a porta, fora apanhar o colar, era sábado, iria sair. 


- Acordou, meu amor?


- Encontrei a tão esperada inspiração para um novo texto.


- Que bom, querido!...


- Diferente de tudo que já escrevi. Digo-lhe mesmo que jamais será esquecido, viverá por todos os séculos e milênios. Vou dar trabalho aos críticos e doutos para entenderem e compreenderem o que mesmo eu quis dizer. E jamais chegarão a fazê-lo.


- Mas que inspiração é essa?


- Simplesmente: “Se perguntarem por mim, digam que fui pentear macaco, quando eu voltar apanho o pente”.


- Você é realmente crítico...


- Acredita que sonhei com isso?! Sonhei com esta frase.


- Então aproveite a inspiração, escreva...


- Será agora mesmo...


Levantou-se. Foi para o escritório. 
















































































Nenhum comentário:

Postar um comentário