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terça-feira, 24 de novembro de 2015

CORCOVADO DE ESPERANÇAS - Manoel Ferreira Neto


À humanidade,
Rua do Desterro, s/nº
Mundo Inteiro 
Se os homens não tivessem o que invejar – desejar o que o outro tem, sabendo que não pode alcançar, real-izar esse desejo, e por isso destila o seu veneno -, creio que se sentiriam abaixo das criaturas de Deus. Deus tudo perdoa...

O autor


Dirigir-vos a palavra: não é tão fácil quanto alguém possa imaginar...
O homem de espírito é o menos hábil, astucioso, para escrever à humanidade, dirigir-lhe palavras que tenham profundidade suficiente para fazer-lhe pensar, repensar suas sendas perdidas. Quando se arrisca, ousa, tem coragem ininteligível, sente dificuldades incríveis, indescritíveis, não sei se lhes falta palavras percucientes ou se sentimentos verdadeiros.  Desprezando o vasconço da galanteria, não sabe como se há de fazer entender. Quer ser reservado e parece frio; quer ser modesto e parece que os êxtases da vaidade lhe habitam todos os sítios da alma; quer ser vaidoso e parece que as artes do espírito silenciaram-se; quer dizer o que espera e indica receio; confessa que nada tem para agradar, e é apanhado pela palavra. Comete o crime de não ser comum ou vulgar – o comunismo é até inteligível, mas a vulgaridade é imperdoável.  As suas missivas saem da cabeça e não do coração; têm o estilo simples, claro e límpido, contendo apenas alguns pormenores interessantes, detalhes tocantes. Mas é justamente o que faz com que elas não sejam lidas, nem compreendidas. São cartas decentes, quando as pedem estúpidas. Hoje, a maioria dos leitores pedem dos homens de letras só babaquices, idiotices.  E quando há alguém que seja erudito, clássico, prolixo, hermético, pegam-lhe pelo pé, pensam que têm a chave-mestra para não lhe deixarem realizar os sonhos – enfim, há os interesses particulares, alguns devem figurar nos anais da história, não importando as condições ridículas e imbecis -, pois é assim que irá fazê-lo, só o que é profundo se pereniza.
Quem não gostaria de vos dirigir as palavras, confessando pecados e pecadilhos, vaidades e modéstias, tramóias e sandices, os momentos felizes e tristes que tivera em vida, de alguns lembrando, de outros olvidando com prazer e júbilo, até o momento que começou a desejar essa conversa? Dizer dos que são lembrados é fácil, basta mostrar os sentimentos que lhe habitam o íntimo, as idoneidades éticas e morais, as dignidades e honras todas, os corações humanos que têm, a espiritualidade divina de que são imbuídos. Dos que são olvidados, visto que razões houve e muitas, se conseguem trazer-lhes à memória, é hora de destilar os ácidos críticos, descascar os pepinos. Reunir as lembranças e olvidamentos jamais podem, faltam-lhes a engenhosidade de serem imparciais. Muitas vezes para se sentir importante, tentou dirigir-vos a palavra numa cartinha. Olhe que alguns, apesar dos pesares, souberam dizer qualquer coisa, os prazeres e alegrias que sentiram com amigos íntimos, pessoais, quem realmente amaram na vida, desejaram ao seu lado. Não há quem não tenha imaginado, desejado, tentado, conseguido. Servindo-se da fala – sozinho no seu canto, perdido no espaço, o medo do sentimento de vergonha (sempre acreditei que “a vergonha é a lata ao rabo do caráter”) de ser tachado louco, doido, varrido. Servindo-se das letras, através de missiva, sem dúvida escondida dos familiares, o maior amigo não sabendo; através de romances, novelas, contos, poemas... Todos nós os homens desejamos nos dirigir à humanidade.   
Os caminhos foram muito diferentes?!
Não nos hão de lapidar por atos que são antes efeito de uma epidemia do tempo, por atitudes que são antes conseqüências das frivolidades de uma doença da alma e do espírito. Ou lapidem-nos com valores e virtudes que hão de legar frutos à posteridade, mas no sentido em que se lapida um diamante, para se lhe deixar o puro brilho da espécie. Neste ponto, força é confessar que ainda há impurezas e defeitos graves nas idéias e pensamentos que os séculos nos legaram, que nos enfiaram na garganta à força, fomos obrigados a engolir a seco, impuseram-nos. Mas o belo diamante Estrela do Sul que hoje pertence a não sei que coroa européia, não foi achado na Bagagem, prestes a ser engastado, mas naturalmente bruto. Há impurezas. Há inépcia, por exemplo, muita inépcia. Quando não é inépcia, são inadvertências. Apontam-se diamantes que tanto têm de finos, luxuosos, como de pataus, e só ao longo estudo da mineralidade poderá dar a chave da interpretação. 
Diz-nos de tua dificuldade de te expressares, não sabendo se te compreendemos, entendemos, se somos capazes de sentir o mais profundo de tua alma, o mais abismático, quem sabe melhor dizer abissal, de teu espírito, o que mesmo desejas dizer-nos ipsis litteris, o que não sabemos inda se se trata de um recurso de estilo e linguagem, se a intenção exclusivíssima é negligenciar-nos, enfim as idéias, pensamentos, posturas morais e éticas que nos obrigaram a seguir, a engolir a seco, sem qualquer pio de contestação e rebeldia, alienou-nos de vez, ou se com isto estamos prontas para outros horizontes, e tu estás a dar-nos a oportunidade de nos redimir dos erros e arbitrariedades. Ao longo do que nos escreves, lendo com perspicácia e percuciência, sentido no âmago tuas sensibilidades, teus profundos desejos de liberdade, cremos estar nos dando esta oportunidade, o que nos faz sentir lisonjeada, orgulhosa, sobremodo agradecida.
Contudo, deixamos-te esta reflexão da lapidação do diamante bruto, podendo garantir-te que não é tão simples chegar a alguma conclusão, esclarecer os prós e contras, será preciso longo tempo de meditação, o teu tempo de vida será insuficiente, mas o importante é que, sendo uma missiva a nós, os homens, à humanidade, muitos irão ler, legamos-lhes este privilégio de ler esta missiva, os homens de hoje não serão os mesmos de amanhã, a humanidade de hoje não será a mesma do futuro, e assim ao longo dos séculos e milênios a res-posta será lapidada com esmero e acuidade. Quem sabe possam lapidar o diamante de modo que lhe seja possível riscar o éter, o etéreo. O que te dizemos não é para hoje, para amanhã, é para o futuro. Distante? Sobremodo longínquo, muito longínquo.
 Que dialogo interessante! Não vos encerro entre quatro paredes, vós não me encerrais em muralhas indestrutíveis. Crescemos juntos. Isso é que é importante num diálogo, conversa. Abrimos juntos o mundo sem porteiras, abrimos juntos a porteira do mundo, mesmo que, por alguma razão, tragédia, situação e circunstância da vida e do mundo, decidamos não mais seguir as trilhas que antes seguíamos, siga eu o meu destino outro, sigais vós outras trilhas. Isto sim é diálogo. Ninguém impõe suas idéias, ninguém impõe seus pensamentos e ideologias, interesses e verdades, tudo está aberto, escancarado às novas possibilidades, a um futuro outro.
Mas sursum corda, como se diz na missa. Subamos ao alto valor espiritual do açougueiro, este que com a lida constante com o matar, esquartejar, descarnar, expor a carne fresca nos ganchos, à apreciação pública, aos gostos variados desta ou daquela qualidade, patim, chã de dentro, de fora, contra-filet, filet, perde toda a sensibilidade com a convivência com o sangue, a morte, e, no tempo, não serão mais homens, tomando em conta a sensibilidade, nada são em verdade, ousando uma definição para não ficar pedra sobre pedra, serão homens imbuídos de instintos animalescos unicamente.
Um quilo mal pesado. Uma carne pedida, qualidade servida outra – quem há-de negar que os açougueiros têm prazer, júbilo, tesão, em servir aos fregueses na contramão de seus gostos e paladares? Costuma-se dizer que os açougueiros são os absolutos viperinos da humanidade, e tem razão quem o diz. São eles os únicos conhecedores, o resto está condenado a comer músculo ao invés de filet mignon. Só na mesa é possível distinguir a diferença: os dentes que expliquem! 
Saiamos do açougue, o ambiente é infecto.
Posso garantir-vos que muitos tentaram dizer-vos algo, as palavras faltaram ou começaram a dizer-vos, mas sentiram que era inútil, não sentia ninguém ouvindo senão ele(ela). Acharam fácil, mais fácil até que se aproximar de alguém, mas não conseguiram fazê-lo. Estava falando consigo mesmo e era o que menos desejava, queria ver-se o mais distante de si, não queria ouvir a própria palavra. Pensastes o que é isto alguém não querer mais ouvir a própria palavra? Meu Deus! O que é isto, a humanidade? Tinham de deixar disso de vos dizer algo, se houver quem o saiba serão objetos de chacota, conversar com a humanidade, só mesmo na cabeça de insano isso é possível. Rides. Mas não é verdade? Ou não? Não estou sabendo de muitas transformações e mudanças. São considerados os que vos dirige a palavra gênios, homens de grandes virtudes, os monstros sagrados. Realmente está diferente hoje, na minha época não era assim.
Desistiram do desejo, perguntando para que isso de conversar com a humanidade, dirigir-vos a palavra, o que poderá ganhar com isso é nada. Não se vive de nada, vive-se do desejo do nada para que o tudo possa se re-velar. O maior sofrimento se anuncia: será que tenho algo a dizer? Será que serei ouvido, aclamado, reconhecido por isso? Nada. Isso é o que não queria se tornar.
Deus meu!... É muito difícil dizer-vos qualquer palavra, aproximar-me de vós, diria até ser complexo e complicado olhar-vos de esguelha – rides, olhar-vos de esguelha, o que vem nessas letras, não é mesmo? -, e eu, extasiado com a anunciação de uma luz no subterrâneo das almas, do baldio no terreno das almas, dirijo-vos essas palavras, registradas na folha branca de papel, o que diria senão um dedo de prosa nascido de nossas conversas, nossos diálogos ao longo de tantos anos.
Alguns acreditaram que lhes fosse possível dirigir-vos algumas palavras, não iniciando com aqueles patrimônios da humanidade, “Como vai? Tudo bem?”, e entrando no assunto que é o mais importante, sem devaneios. “A minha vida está uma coisa de louco. Queria conversar com todos os homens, ver o que pensam de tudo. Peço que todos se unam e rezem por mim, quem sabe Deus possa ouvir”. Escreve muito bem até. O que de imediato disse na “lata”, revelou, anunciou, manifestou? Está angustiado, desesperado, fracassado, triste, abandonado, exilado, ressentido, magoado... – meu Deus, a relação não teria fim; está nas últimas de sua vida, quer que alguém o salve, que a humanidade lhe dê a mão para se levantar. E só. Não continuam, e se continuam são os primeiros a reconhecer que foram asnices que escreveram na folha branca de papel. Houve até quem decidiu contestar o pensamento do poeta Baudelaire, quem disse que se um poeta usar de droga para escrever, irá escrever poema, e se um imbecil usar droga para escrever, escreverá imbecilidade. Encheu-se de droga. Escreveu. No momento, pareceu-lhe obra de arte; passado o efeito da droga, viu que idiotice havia escrito.
Não terei tanta pré-ocupação de saber se, em verdade, estais entendendo as trilhas por onde ando, passo a passo, em busca da vida. Aliás, isso é importante, pois que posso desenvolver o que intenciono fazer com mais espontaneidade – sabeis daquelas situações em que alguém gasta mais o tempo em explicar do que consegue dizer realmente? Compreendestes com perfeição, cabe-me ir além de vossa perfeição, preenchendo os desejos e vontades de expressão, revelar-me, por que decido, noutras dimensões do espírito, escrever-vos essa missiva.
Admito, então, que seja fácil escrever-vos, dirigir-vos a palavra. O alguém seja eu próprio, que resolvera fazê-lo, embora a experiência de conversarmos desde a infância. No fundo, reconheço os limites, e quero transcendê-los, quero sentir-me-sendo as palavras. Desde a tenra infância, ouvi de todos que o homem para ser homem tinha de plantar uma árvore, ter um filho, escrever um livro. Se me perguntassem o que é preciso para se tornar homem, diria com empáfia: transcender tudo isso. Mas a transcendência de tudo isso implica solidão absoluta ou silêncio juramentado, e disso ninguém quer saber, correm léguas ou milhas. Não estais errada nesse aspecto, e desde já vos parabenizo pela intuição e percepção de meus desejos mais escondidos, recônditos.    
Imaginemos alguém, num sábado, à hora do crepúsculo, após o banho, no seu quarto, sentindo-se sozinho, angustiado, triste, aborrecido, deprimido, resolve escrever para alguém de suas relações, não residente em sua cidade – se residisse na mesma, mais fácil seria ir à casa dele ou dela, abrindo-se, confessando-se; ouviria alguns conselhos a serem colocados em prática, caber-lhe-ia apenas selecionar os que dariam maiores e melhores resultados no restabelecimento da angústia e depressão -,  falando de sua vida, seus temores e sonhos...
Pigarreia. Olha em volta de si, examina seu quarto onde não há livros nem quadros, imagens sacras. Levanta-se com um gemido, caminha até a cama, deita-se sob as cobertas, que apesar de muito velhas estão limpinhas e cheiram bem. Uma paz sem medidas. Laços frágeis que pareciam correntes eternas soltaram-se.
Há vinte anos ele havia escrito no alto daquela folha: O QUARTO e nunca mais conseguira escrever uma só palavra. Ele olha pela janela, da cama mesmo, deitado. Há neblina no céu, há neblina nos seus olhos. Duas escamas caem de seus olhos, a neblina do céu se esgarça e ele vê a estrela. Ah, esperou por ela tanto tempo!... Desejou-a com toda a força do espírito. Ela aproxima-se cada vez mais. É linda, linda, com os seus olhos de fogo. Deita-se ao seu lado, nua, quentinha, sorriso que só especialista pode ver. Agora ele está nela e ela está nele e nenhum dos dois nunca mais vai morrer.
Pura poesia. Estar deitado na cama, janela aberta, a lua se projetando no peito, a claridade, a noite. E usei dessa poesia – a poiésis me habita, digo-vos desde já para que vos inteireis de mim por inteiro, e, ademais, se não sabeis o que é isso “poiésis”, é tempo de vos inteirar, pesquisando a arte grega, os filósofos gregos. Então, aquilo de se conselho fosse bom não seria dado, e sim vendido, é real: aconselhar-vos a ler e pesquisar a arte grega não é bom, só mesmo o pior inimigo pode fazer isso. Os tempos mudaram e a noite custa a passar.
Sim... Mostrais com engenhosidade que estais atenta a todas as dimensões da vida, estejam presentes e fortes na alma e no espírito, e desejais mesmo saber o que nesses longos anos de nossas relações consegui acolher e recolher no íntimo, abrindo-me à plenitude, à amplitude, se é que vós podeis traduzir essas palavras, pois que fui tomado por um alvoroço no íntimo que precisava afastar-lhe para continuar a vos dirigir as palavras, devido a isso o disse com tanta ansiedade, num fluxo de inconsciência e consciência exacerbado, e no meio do pensamento senti que havia perdido o chão sob os pés, mergulhando, saindo, ofegante, as palavras na ponta da língua, conseguindo segurar-lhes pelas tangentes. O que isso importa?!
Escrevendo-vos essa missiva, sentir-me-ia estar em vós e vós estais em mim, e nenhum de nós dois nunca mais vai ser esquecido na história, falar de vós suscita a minha lembrança, falar de mim exige a vossa presença que é quem pode com categoria apresentar-me como mereço, como os valores adquiridos e assimilados no tempo tornaram-me digno de ser reconhecido, não louvado, pois que as louvações são características dos espíritos párvulos e medíocres, e a fama são vaidades dos néscios e imbecis. A sede e fome de eternidade poderiam ser realizadas a partir do instante em que tomasse da pena e vos escrevêsseis uma missiva; sirvo-me de vós para realizar os sonhos que acreditei não ser possível caso assim não fosse? Por que não assumir isso?
Contudo, creio ser-vos imprescindível considerar que não pensara em nada disso que estais a questionar-me; escrever-vos, desde que iniciei, não é outra coisa senão registrar o que aprendi, des-aprendi, o que segui ou não com os ensinamentos que recebi, e sobretudo ter o testemunho em termos de experiência e vivência de haver mantido colóquios convosco desde a infância. A primeira vez que ouvi as vossas vozes nos recônditos de minha alma, olhando para o horizonte distante, tive muito medo, mas ele foi saudável, inspirado nele aprendi a ler e a escrever. O que estais apresentando como questionamento e indagações, percucientes, não tenho dúvidas, mas são considerações que pretendia ir trabalhando nessa missiva, mas vós já o adiantais, deixando eu como um intróito à margem.
Quem sabe um artista quem sente o que é isto intróito à margem possa revelar que nessa missiva que vos dirijo, neste início palavras que prometem, o importante é o que transcendem a esse momento e instante, dão asas à emoção. O artista seria se realmente reconhecesse os seus dons, talentos, privilégios a si doados gratuitamente, e que ele tornou isso uma busca de entender e compreender os caminhos do homem, do eu, da humanidade... Rides. Continuais rindo.  
Isso ajuda a compreensão, isto é, já estais consciente de muitos fatores imprescindíveis, desejos disso e daquilo nas entrelinhas, participando, partilhando, em busca de saberdes a profundidade do que está sendo revelado, manifestado, anunciado... Lendo, irá, com efeito, compreender as coisas com mais segurança, em termos de interpretação, de análise, mergulhar fundo, pois o que conheceis vos lega maiores condições sensíveis e espirituais, a intuição, percepção, visão intensificam-se, e a audição permite reconhecer na voz segredos e mistérios que se anunciam.   
Ao completar dezessete anos de idade, Balsamão de Oliveira era admirado e invejado por muitos. Filho único de um poderoso empresário, era brilhante jogador de xadrez, desejado e disputado por “gatinhas” bonitas, elegantes e também disputadas e desejadas.
Ele era grande, mas queria ser maior. Alguém lhe dissera que quem pensa pequeno é medíocre – isso jamais quis admitir, embora, por vezes, assustasse com os seus pensamentos mais do que pequenos, quase inexistentes, e era mister superar isso. Também a pessoa que lhe dissera isso completou o pensamento: quem pensa grande é gênio. Da mediocridade à genialidade só por milagre, e para quem rezou e pediu esta façanha, conseguindo realizá-la; se o espírito que o ajudou ainda não foi beatificado, seria preciso comunicar ao Papa Bento XVI, era merecedor da beatificação. Um dos milagres mais difíceis de toda a eternidade do mundo. Da mediocridade à genialidade. E da genialidade à mediocridade é caminho árduo, só mesmo com a Providência Divina? Não. É a coisa mais fácil do mundo: basta dizer palavras profundas, quando os homens as pedem supérfluas e superficiais.
Silêncio... O que vos dizer acerca, se não o ouço, sei que existe em mim, habita-me o espírito? Não me digais que o ouvis, é o caminho de nossa condição de homens perdidos no mundo, desamparados, des-encontrados da fé e da esperança, os passos na alameda seguem o ritmo, a métrica da solidão. Não, não é desfeita de um pensamento profundo – não me olhais de esguelha -, acredito possais ouvi-lo, e tendes como de-monstrá-lo; sabeis o que pode contribuir para o encontro da vida nos vestígios das vozes que se calaram ao longo dos séculos e milênios.
Ah, por que vos dirigis a mim, experimentando dizer o silêncio; conheço esse vosso desejo, e não credes seja possível realizá-lo. Posso sentir-vos e saber o que vos habita o íntimo, adivinho vossas palavras. Seria interessante um diálogo no silêncio.
Perguntais-me, rindo à sorrelfa de idílios compactos (quem já construíra essa imagem, mesmo em grandes poemas? Ninguém. Não haja dúvida fora escrito numa missiva que fora escrita por um psicólogo, nascido em Coriaçu do Norte, Ilíade Adriano; tomei a liberdade de o inscrever ipsis litteris nesta missiva por saber que dará muito trabalho de construir a imagem que desejo mostrar-vos, mas é assim mesmo, o mistério é uma excelente semente para o futuro) como registrar na folha branca de papel essa conversa, se não trocamos palavras. Respondo-vos: o amor diz tudo. Existe amor entre nós, não? Torna-se possível, não sendo fácil.
Não. Se a intenção primordial é sermos unidade, vós sois eu e eu sou vós, creio não haver problema se comungarmos nossos silêncios, e daí se anunciando as letras de paixão e desejos, de volúpia e vontades, de quimeras, fantasias, medos, instintos, ódios.
Tendo coisa alguma a ser dita, estando nesse restaurante, esperando o garçom servir-me o almoço em panela de ferro, costelinha de porco com quiabo e angu, garatujo essa anotação para ser trabalhada na missiva. Não me preocupam as idéias esclarecidas e transparentes. Enfim, são anotações, não sabendo até se me utilizarei delas. Se me utilizar, terei a preocupação  do estilo poético, pois que a razão, o intelecto são os menos hábeis para os esclarecimentos do espírito e da sensibilidade. 
Tive a inspiração de chamar o proprietário desse restaurante, mostrando-lhe a anotação, perguntando-lhe se nesta cidade há alguém que tenha dons e talentos para escrever à humanidade missiva, a comunidade se orgulhe dele, no futuro será motivo de orgulho e lisonja, engrandeceu as artes e cultura. Podia garantir-lhe que a comunidade de minha terra-natal se orgulha de meus talentos e dons, sabe que minhas letras irão engrandecer a nossa cultura. Nada respondeu, olhou-me de esguelha, os olhos faiscaram.
Experimentei reler o parágrafo inicial com o objetivo de mergulhar no que está significando, qual o sentido que merece ser investigado. Nada há. Palavras, palavras, palavras... Mais nada. Não há qualquer realidade nelas. Ah, quem dera se não me habitasse isso de dizer as coisas com engenhosidade, defini-las, conceituá-las, fazer-me entendido. Todos que escrevem, seja lá o que for, precisam de esclarecer e serem compreendidos.
Estais vendo?! Apenas palavras. Engraçado, se registro a letra “a” no papel, sinto que vos dirijo a palavra, satisfaz-me. Que prazer ininteligível registrar palavras no papel, apesar das corcovas de esperanças, de silêncio, a questão seria não as cristalizar, deixá-las expostas à luz do sol e da lua, até que o próprio mundo se estiole, um belo panorama e paisagem aos olhos dos homens.
Este papel de pedido está mesmo interessante. Palavras que são palavras e nada mais que palavras. E eu fico em silêncio, desejando que diga ou escreva uma coisa importante. Há dias que as corcovas ficam escondidas no nublamento causado pela chuva de alguns dias.  Acho isso legal. À margem, escrever uma coisa que irá despertar a intuição pura, e a pena não descansar, enquanto não esgotar o fôlego.
Grande jogador, reconhecido e aplaudido por uma comunidade que não bate palma nem para si no aniversário, Balsamão de Oliveira sabia que os seus pensamentos eram pequenos, a lógica, a razão, a habilidade e destreza de raciocínio eram voltados apenas para o xadrez. Não posso afirmar com categoria, mas dizem que era exímio conhecedor da Língua Alemã. Era um grande medíocre nas coisas do espírito e da alma. Não sei o que lhe aconteceu, pois a família participou mudança para Cordisburgo e não mais retornara a Coriaçu do Norte.
Autocrítica, não é verdade? Olhando o teu passado, as condições que viveras por alguns anos, e a vontade e desejo de superar isso fez-te tornar quem és, hoje. Quem não te ouve, não conversa contigo, não te sentes presente, não pode perceber e intuir com facilidade a tua linguagem e estilo de te mostrares, revelares. Podemos nós. Mas dizemos-te sinceramente que está superado, não há mais o que pensar sobre, apenas considerar ser o passado, as origens. Sabemos que vives isso nas entranhas, tuas origens.
Sabemos que o pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger “o artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro...” fora chave-mestra de muitas aberturas que houve no teu pensamento, idéias, posturas e atitudes diante da vida não apenas psiquicamente, mas espiritualmente. Ajudou-te a superar muitos problemas. 
Devo, então, agradecer-vos por tais palavras verdadeiras, exemplo de sinceridade e seriedade diante dos sentimentos, o amor que sentis por mim. Devo ficar orgulhoso, alegre e saltitante, pois, enfim, alguém reconheceu que superei os sofrimentos e dores sentidos naqueles anos – não foram muitos, foram três e meio, suficientes para deixarem passos e traços. Muito obrigado, lembrar-me-ei dessas palavras verdadeiras, e isso é a chave-mestra para outras superações.   
Num dia espetacular, de nuvens tão escuras que o sol chegou a cochilar atrás delas, permitindo o súbito aparecimento da lua, Balsamão de Oliveira descobriu que estava com muita sede. Ele sempre tinha muita sede, sempre tinha muita fome e sempre tinha muita coca-cola, uísque, comida. Mas aquele era um dia diferente, como todos os dias são diferentes, dia do aparente não ser e do ser aparecer. (À margem do manuscrito que vos envio junto com o que fora digitado no computador, para que vejais as mudanças feitas aqui e ali: “Digo-vos de início: começar hoje esse diálogo significa que o escolhi para ser o dia do aparente mais não ser e do ser aparecer. Fora justamente essa idéia que me surgiu súbito na mente que deu o último toque para escrever-vos essa missiva. Memorizai-a e ledes toda essa missiva tendo essa idéia no espírito, irá sobremodo ajudar na compreensão, entendimento de minhas intenções profundas e espirituais)”.  Não sei se digo “advertência”, se digo “conselho”; contudo, lede aos poucos, como se estivésseis tomando um bom vinho, aquela necessidade de degustar-lhe o sabor, talvez leve anos para lerdes toda a missiva, mas, ao cabo, os sentimentos e emoções, a sensibilidade se tornaram outras, e a vida será bem diferente. Agora, se lerdes num fôlego só, além de nada terem entendido, as letras não sairão do papel e mergulharão no vosso íntimo.  
Tomara água, o suficiente para saciar a sede. Quis escrever sobre isso, a professora havia mandado escrever uma redação sobre o tema da sede. Sentira sede, tomara a água. Sentara para escrever. Preenchera uma página e meia. Lendo-a em classe, não houve quem não risse o tempo inteiro, não sabendo se continuaram ouvindo desde o primeiro parágrafo, de tanta besteira. Apelidaram-lhe de “verborréia”, ao invés da diarréia, os verbos é que mais figuraram na redação. “Estava com sede e a sede pedia-me que bebesse água, e eu fiquei sem saber se matava a sede ou se bebia água. A água mata a sede e a sede termina, e só depois de algum tempo é que outra sede haverá e outra água será tomada”, eis apenas o intróito de sua redação, que lhe custaram umas duas horas para a realização.   Realmente, uma verborréia. Quem sabe nessa verborréia toda o seu ser não tenha aparecido, enfim já era tempo. Entenderam de modo errôneo o que dissera com todas as dimensões do espírito.
Os colegas riam a Deus-dará de Balsamão, alguns se levantaram para continuar a rir, permaneci na minha carteira, ouvindo, apesar das dificuldades devido aos risos, e pensando comigo mesmo que era sim verborréia, a quantidade de verbo existente nesta escrita dele, não o que significa cinicamente em termos do apelido que recebera, aquele que só diz besteira, que memorizei. Tinha sentido o que ele dizia, só que naquela idade não podia entender e compreender, intui, percebi, memorizei. Algum dia iria saber o que mesmo Balsamão estava dizendo com aquelas palavras tão sem sentido e esquisitas, devido a um jogo bem inocente que fizera, aliás inconsciente, mas que legará um nível de profundidade enorme.
A missiva é isso também: tempo do aparente não ser e do ser aparecer. As palavras atuam nesse sentido, têm essa função, a de des-velamento, se assim podeis compreender com distinção e engenhosidade.
Se a intenção primordial é sermos único, vós sois eu e eu sou vós, creio não haver problema se comungarmos o silêncio, e daí se anunciando as letras de paixão e desejos.
Poderia iniciar a tua missiva com essas coisas que te surgiram na mente, um bom início, seria preciso apenas saber colocar na folha de papel branca, de modo a identificar o que te perpassa o íntimo, o que enfim necessitas dizer para que seja possível a libertação de teus estados de espírito. Não é suficiente ter a idéia, é necessário saber trabalhá-la, e é isso que não sabes.
Podemos garantir-te que ficarás por longos minutos à cata de única palavra que inicie, e só depois de enervar-te é que escreverás a primeira. Continuar. No máximo, conseguirás dois parágrafos. Assim mesmo terás sérias dúvidas se há correção gramatical nas tuas frases pequenas, há muito que não pesquisas a gramática para aprender alguma coisa, na escola em termos de Língua Portuguesa só tiravas o mínimo para ser aprovado.  Por que não sabes escrever? Não. Porque não sabes exteriorizar suas dores e sofrimentos.
Em verdade, não gosto de comentar sobre isso de haver sido péssimo aluno de Língua Portuguesa, haver sido reprovado no terceiro ano de ginásio porque ao invés de usar o termo “senão” numa frase, usei “se não”. Houvesse escrito certo, não teria sido reprovado. Não gosto porque se tornou lugar-comum dizer que alguns grandes homens de letras foram péssimos em redação, em Língua Portuguesa. E todos dizem, o que me deixa envaidecido, que escrevo muito bem. Alguns chegam a ter inveja de mim.  
Quem não conhece o que lhe habita o silêncio, na profundeza das águas, não saberá escrever para ninguém senão o trivial. E de trivialidades estamos mesmo preenchidos até a alma, e dela não saímos. Se conhecer poucochinho que seja, será capaz de mostrar a poesia de seus desejos e vontades, e aí haver interesse em ler o que está realmente escrito, apesar de que a linguagem e estilo importam e muito.
Não diria finalizando, por estar iniciando, mas chegando ao ponto exclusivo disso, haver-me decidido escrever-vos essa missiva, fora importante descobrir que a intenção verdadeira seria: escrevendo, sou-vos e vós sois eu. Difícil... Dirigir-me à humanidade, essa é a reunião de todos os homens, é uma idéia sobremodo abstrata; dirigir-me aos homens, e todos, cada um por si, às vezes ao mesmo tempo, discutindo, opondo, não concordando, endossando. Nossa... Difícil. Inda mais que o desejo é dirigir-me a vós, em primeira instância, e só depois aos homens, vice-versa, até quando não puder distinguir mais ninguém, ouvindo as vozes de todos nos meus ouvidos, aquela conversa agradável, eu no centro, sou eu a dirigir-vos, sois vós a dirigir-me. As luzes da ribalta incidindo sobre mim. Que espetáculo glamoroso!...
Sim... Já havia pensado que haverá momentos que, se alguém lesse, os leitores, iria sentir que não estava sendo você a dizer as coisas, sim nós, e você, com certeza, estivera pensando que não poderia haver isso a todo momento. As nossas vozes se confundem no corpo da missiva, e quem ler terá de estar muito atento para construir a mensagem aos homens que desejamos passar. Aliás, Ilíade Adriano, tu admiras bastante a linguagem e estilo dúbios, gerando ambigüidade nas idéias e pensamentos, e muitos leitores irão ter certas dificuldades de leitura, o que mesmo querias tu dizer. Estamos te lembrando isso para que te conscientizes e sejas feliz nas tuas visões, idéias que nos quer dirigir, deixando-nos pensativos. “Quem sabe não tenha sido Ilíade Adriano quem recebera a missiva da humanidade? É possível”.  Uma viagem...
Que ousadia! Meu Deus, que ousadia!...  
Devo confessar-vos que uma espada de dor traspassou meu coração – creio que devido a imaginar se não soubesse exteriorizar os meus, nas entrelinhas e além-linhas reconhecer de que posso me servir para atingir essa ou aquela realidade na vida, posso ver nelas a felicidade que as habita, e que são frutos de minhas experiências e vivências. Foi terrível, nunca imaginei que fosse possível sentir algo assim; terrível, terrível... Eu, que sempre ri do profeta Galileu, de repente, entendi tudo o que ele quis dizer e tudo se resume a única frase: minha alma está triste até a morte. Sim, a dor que senti foi assim, como a morte, foi a morte. 
Se é difícil, por que pensar em fazê-lo? Pensar assim interfere na espontaneidade da anunciação e revelação do que deseja sentir e expressar. Não acha que seria melhor levar as palavras, as letras ao som do ritmo de “blues”, especialmente cantado e interpretado por B. B. King? Levar os sons, os símbolos no ritmo do Jazz.
A imaginação deixou-se-me embalar pela música – devo isso confessar-vos, com intenção mesma de mergulhar mais profundo nesta missiva que está sendo escrita com o coração, intelecto e razão, com todas as dimensões sensíveis que me habitam: sempre que me sento para escrever faço questão de fazê-lo ouvindo músicas, a música me acompanha desde tenra infância, quando ainda nem caminhava, arrastava-me pelo chão, e,chegando perto da radiola, apontava, pedindo à mamãe que colocasse disco – e inebriar  pelo aroma, duas fortes asas que me levam de norte a sul, de leste a oeste. Atrás dela, é o coração tomado à simpleza antiga, secular, milenar. Nietzsche, o filósofo alemão, perguntava-se o que fazer, quando a música terminava. Não tenho dúvidas de que a musicalidade de minhas letras advém daí, embora as influências adquiridas de alguns mestres.
E eu, embalado pela música, ressurjo antes de Jesus. E Jesus aparece-me antes de morto, antes de ressuscitado, a julgar pela sua fisionomia com os seus trinta e dois anos, olhos brilhantes, face lívida, suave, terna, compassiva, como nos dias em que rodeava a Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua Palavra é a salvação, a resolução de todos os meus problemas, conflitos, dores e sofrimentos, é realmente a liberdade absoluta, devido a ela já superei muito o que habita minhalma, é necessário entregar-me de todo, por inteiro. Por que ainda reluto?
- Senhor – digo-lhe eu sentindo-me circunspecto, olhando as coisas do mundo, respirando com um pouco de dificuldade -, a vida é aflitiva, dolorosa, dificílima de ser vivida, e aí está o Eclesiastes que diz ter visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava, ninguém lhes dizia palavras de esperanças, ninguém lhes dava o peito para deitar e sentirem-se protegidos.
- Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
- Vede a injustiça do mundo. “Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm”, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade – di-lo, olhando-o, sentindo que os olhos brilhavam, mostrando-lhe o que meu coração sentia, as tristezas que o habitavam.
- Bem-aventurados os que têm sede e fome de justiça, porque eles serão fartos.
- Mas é ainda o Eclesiastes, Senhor, que proclama haver justos, aos quais provêm males... Vós me entendeis, disso tenho convicção, sabeis o porquê vos digo isso. Conheces-me a alma e o espírito.
- Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, por amor da solidariedade, por amor da compassividade, porque deles é o reino do céu, porque meu Pai sempre os protegerá.
E assim por diante. A cada palavra de lástima, de dor e sofrimento, a cada palavra de reclamação, respondia Jesus com uma palavra de esperança, de fé, de amor. Mas já então não era Jesus que me aparecia, era eu que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo. Era eu quem me deixava embalar por suas Palavras, que me deixava ser consolado. E o sermão continuava. Bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos... Bem aventurados...
Posso dizer-vos com sinceridade, dignidade, quando alguns amigos, conhecidos, íntimos lerem esta missiva que estou a vos escrever, pois que desejo colocá-la à apreciação deles, antes de colocá-la em vossas mãos, dirão que sou o único de minha terra que escrevo nesta linguagem, sou o único que se preocupa com a espiritualização e evangelização dos homens. Dir-lhes-ei que não, não sou o único, há outro, mas que reside noutras terras, continuando sua trilha de evangelização, espiritualização através de suas letras, de seu compromisso com a vida e com os homens. Quanto ao resto, a única preocupação é com as frivolidades das letras, fama e sucesso, tirar foto com as grandes personalidades e aparecer nas colunas sociais. 
Ficarei lisonjeado, não resta a menor dúvida, mas esta é a minha missão, embora só no futuro distante e longínquo serei compreendido, quando não mais restar qualquer vestígio de cinza de meus restos mortais. Como dissera um grande amigo: “Não quero encher-lhe de vento, Ilíade Adriano, mas você é o único realmente escritor de nossa terra, o mais profundo”. Alguns reconhecem-me, dão-me os valores merecidos, mas a compreensão de meu pensamento só mesmo no futuro longínquo.
Voltemos a Deus. Para mim a questão do Paraíso terrestre explica-se com nitidez e transparência, terna e singelamente, pelo vegetarismo. Estaria eu brincando, querer fazer galhofa, para não deixar o cinismo, ironia, sarcasmo de lado, para não largar mão de meu espírito contestador, rebelde, digo-vos sobre o vegetarismo que é a explicação do Paraíso Terrestre. Há verdade nisto, não nego, mas, antes de qualquer juízo, ouvi meus argumentos. Aí, sim, podemos passar para as discussões.
Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso entupigaitado de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, fartai até mais não puderdes, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor. Não sei Latim, Grego, Hebraico. Sei a Língua Portuguesa e Inglesa, que nestes méritos e ângulos nada dizem, são paupérrimas. Quanto ao Inglês, deixei-o de lado, faço jus a minha língua, ela é a minha identidade.
Vede o nobre cavalo! o paciente asno! o incomparável jumento, o inigualável burro! Vede o próprio boi. Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça, - e o gato, seu parente pobre – não diz cousa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, enigmática que não chego a compreender. Talvez, por mais amigo que todos, comesse o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe veio igual castigo.
São estes os meus argumentos para a explicação, de-monstração de meu pensamento, disto de o vegetarismo ser a chave de leitura do Paraíso Terrestre. Não espero que me entendais de imediato, há muito a considerar, separar o trigo do joio, meditar e refletir, não é de supetão, embora reconheça eu a vossa inteligência e sensibilidade secular e milenar. Já vos mostraram inúmeros, di-versos ângulos de interpretação do “fruto proibido” de Adão e Eva, que, vós mesmos concordais, fizeram-vos engolir a seco, ideologias, dogmas chinfrins, mas este argumento só dois vos mostrardes, um no final do século XIX, eu, no início do século XXI, com a cenoura devidamente suspensa numa engenhoca colocada à frente do burro, para suscitar-lhe o desejo de comê-la, e não com a lata amarrada ao rabo dele.  
Pensais, refletis, meditais... Quando tiverdes a res-posta na ponta da língua, já não mais estarei no Paraíso Terrestre, terei participado minha mudança para o Paraíso Celestial. Respondei aos homens, são eles que interessam, eu vou, os homens ficam, para ser fiel àquela teoria de que os anéis vão, os dedos ficam.
Pode ser que, se deixar amadurecerem as idéias, sentimentos e emoções que te perpassam a alma, o que desejas tanto dizer-nos, não seja mais tão difícil quanto estás a dizer-nos. Isso é porque não estás preparado, necessitas de algumas outras experiências que revelem as verdadeiras intenções e propósitos. Aconselhamos-te a esperar um pouco mais. Tua missiva será escrita num só fôlego – e, ao chegares ao final, assustar-te-ás, dizendo: “Não acredito que fora tão fácil; consegui o que almejava”.  Terás a convicção de que estivera escrita fazia longo tempo, só restava registrá-la. A missiva nasceu pronta e acabada.
Conhecendo-te como o fazemos, sabemos que não irás esperar o tempo revelar as coisas para ti, preferes escrever diante de todas as dificuldades, assim te sentirás orgulhoso pela luta e tentativa, a persistência e insistência são a chave-mestra das grandes realizações. Admiramos isso em ti. Continues. Ao longo dos dias, irás percebendo os obstáculos serem vencidos.
Há uma lenda de um jornalista e um escritor. O primeiro lera certa obra e de repente tornou-lhe escritor renomado. Todas as vezes que o escritor lhe colocava novo livro em mãos, tendo lido, perguntava-lhe: “É obra-prima?...”. O outro respondia: “Já disse... Vou ficar como um crítico sem crédito. Se eu digo que é, você escreve outro e supera, como eu vou ficar nessa história?...”. Risível. É uma lenda apenas: para mostrar-te o que é isso o desejo, vontade, perseverança de estar sempre superando as dificuldades, problemas, caminhando rumo à sublimidade. Isso é o mais importante. 
Sim... Conversar é uma coisa, escrever é outra. Não estou interessado em escrever uma obra artística, romance, novela, crônica, etc., etc. Contudo, é intenção primordial que me expresse, diga o que me perpassa a alma, o espírito, o que me transcende, identificar-me sem peias, algemas, correntes, amarras, quem sou e represento no mundo, na existência.    
Em verdade, estou deprimido e só vós podeis compreender o que se passa comigo, dizendo-vos as razões de o estado de espírito se encontrar desse modo. Apesar de que saiba que, deprimido, angustiado, triste, magoado, e tantos outros estados de espírito, toda a tentativa de ser cínico e irônico torna-se vã, sai pela “culatra”, como se tem costume dizer. Não posso deixar de lado isso do cinismo e ironia por serem características primordiais de minha alma sedenta da verdade, da sublimidade. Se não vos dissésseis, seria que podíeis sabê-lo melhor que eu? – nesse futuro do pretérito “seria” há sim uma dúvida de que sejais capaz de responder-me, em verdade, nada saberia disso. É bom real-izar, ninguém melhor que eu para me conhecer, se é que estou disposto a ouvir os silêncios sinuosos, a trilha de ansiedades, medos, angústias, desejos e vontades, encontros e desencontros, e poder dizer a alguém: “Importa é que vivi tudo aquilo; não o fosse, quem seria eu agora e aqui?”.
Os recursos de que disponho para vos escreverdes voltam-se todos para as lutas de sentimentos, para as paixões que destroem e aniquilam, para as revoltas que sufocam e transbordam, para os amores, os ódios, as invejas, os ciúmes que parecem captar e conter a essência mesma da vida.
Complicado explicar isso; contudo, digo-vos que penso a liberdade aí habitar: quando o homem toma a sua vida em mãos, isto é, assume o passado e o presente, projetando o futuro – fez o que pôde para evitar certos problemas, solucionar outros, não tendo sido possível, mas o que seria do homem, de mim, de toda gente, se não fossem as coisas passadas. Cumpre sabê-las primeiro, caso contrário, não se é possível mergulhar fundo na liberdade e arrancá-la de dentro, sê-la – se é que podeis compreender e entender isso em profundidade. Não perderá por esperar:
“Vim aqui só pra dizer/Ninguém há de me calar/Se alguém tem que morrer/Que seja pra melhorar/Tanta vida pra viver/Tanta vida se acabar/Com tanto pra se fazer/Com tanto pra se salvar/Você que não me entendeu/Não perde por esperar... Lá-rá-lá-lá-rá-lá”.


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