Terá
sido a intenção do carroceiro, colocando um varal com uma cenoura dependurada à
frente da carroça, a uma distância em que o asno não a conseguisse alcançar, um
modo de suscitar no asno o desejo de comer a cenoura? Se esta fora a sua
intenção, a de suscitar o desejo, estaria o carroceiro castigando alguma
atitude do asno que ele não concordara, merecendo este castigo? Talvez esta
atitude do carroceiro não tenha nada a ver com o seu asno, existe uma outra
intenção, digamos, atrás dos panos, que ele apenas intuíra e o tempo iria enfim
mostrá-la com todas as pompas e empáfias.
São
questionamentos que faço apenas para dar início a esta escritura. Antes de a
começar, estive por alguns momentos, sentado na cadeira de sofá, cofiando o
bigode, procurando algo a escrever, pois que faz uma semana e quase meia que
nada escrevo. O título nascera nestes minutos poucos, devo confessar, em que
estive procurando o algo que escrever, pensando ser bem sugestivo, causar uma
curiosidade em saber que intenção fora a do carroceiro, despertar em alguém o
sentimento de uma ironia com esta atitude do carroceiro.
Sem
dúvida, há quando um asno empaca, não havendo surra capaz de fazer com que o
animal ao menos retire uma das patas do lugar. Morre de tanto apanhar, mas não
se move. Daí, creio eu, que tenha nascido um dito popular acerca de pessoas que
por nada deste mundo mude de opinião, quando decide por algo. São os “burros
empacados”. São os “cabeças-duras”.
Talvez
o asno Lúcifer Pernóstico deste carroceiro seja daqueles que vivem sempre a
empacar, atrasando o seu trabalho, as entregas em horas certas, tendo-o
prejudicado algumas vezes, perdendo fregueses, e este é o seu modo de trabalho.
Teve então a grande idéia de colocar um varal à frente de sua carroça, com uma
cenoura, a fim de suscitar no animal o desejo de comer o alimento, sendo-lhe
impossível fazê-lo, pois que fora colocado a uma distância tal que não era nem
possível aproximar o focinho. Assim, não empacaria mais nunca. O carroceiro não
mais seria prejudicado, não perderia mais os seus fretes.
Sem
dúvida, uma grande idéia a deste carroceiro. Todos os esforços do asno seriam
de alcançar a cenoura, degustá-la com todos os prazeres e alegrias do mundo.
Com os seus esforços, faria a carroça andar, não importando se estava numa
subida ou numa ladeira. Atrás de si, moveria tudo, menos alcançar a
cenoura.Todos os esforços do asno para comer a cenoura fazem avançar o veículo
inteiro, incluindo a cenoura, que se mantém à mesma distância do asno. Imagino
o momento em que o asno esteja com uma fome daquelas, a carroça desembestada
pelas ruas, o carroceiro se segurando para não ser jogado fora.
Fora
sim uma idéia muito engenhosa esta a do carroceiro. Um modo inteligente que
encontrara de seu asno não mais empacar. Algo tinha de ser feito, tivera esta
idéia.
Imagino
se este carroceiro não tenha tido esta idéia devido às atitudes de seu asno de
estar empacando sempre em momentos impróprios. Aliás, o seu asno era muito
trabalhador, muito pouco tinha de chicoteá-lo para andar mais depressa, para
subir as ladeiras. Jamais ele tinha perdido os seus fretes, entregou-lhes
sempre no tempo e hora devidos.
Imagino
se este carroceiro, ao invés de suscitar o desejo do asno de comer a cenoura,
tenha tido esta idéia para suscitar nos homens algo que eles mesmos se negavam
de pés juntos a aceitar, a admitir, enfim, a assumir. Ele, o carroceiro, com
toda a sua simplicidade, humildade, tinha já descoberto, de início,
parecendo-lhe algo sobremodo absurdo, julgando até que houvesse perdido os
freios nalguma rua ou ladeira da cidade, julgando ter perdido o juízo, mas o
tempo mostrara-lhe que não. O tempo mostrara-lhe que estava mais que certo.
Aliás, sentiu-se o mais orgulhoso dos homens, um carroceiro simples e humilde
descobrira uma das maiores verdades do mundo, quando existem homens
importantes, doutores, cientistas, estes que se julgam os deuses da humanidade,
nem de longe pensaram a respeito.
Sendo
assim, tinha de suscitar nos homens o questionamento desta verdade, fazer-lhes
espremer os miolos. Óbvio que os homens, tendo também percebido a verdade,
alguns a tenha aceite, não sem angústia e desespero, não iriam dizer que ele, o
carroceiro, tinha sido o mentor intelectual desta verdade, tinha ele sido o responsável
por lhes mostrá-la. Se alguém tivesse de ser indicado como quem a descobriu,
encontrariam um cientista famoso, um filósofo do momento, alguém de
importância. Humilhante um carroceiro ser o descobridor de uma verdade. Existem
homens próprios para as descobertas. Não estava ele preocupado em figurar nos
anais da história como quem fizera os homens assumir a realidade da vida
humana.
Os
homens corremos atrás de um possível que nosso próprio trajeto faz aparecer,
que não passa de nosso trajeto e, por isso mesmo, define-se como fora de
alcance. Corremos rumo a nós mesmos, e somos, por tal razão, o ser que jamais
pode se alcançar.
Quem
sabe o carroceiro com a sua atitude de colocar um varal, com uma cenoura
dependurada, à frente de sua carroça, não tenha tido a idéia de fazer com que o
seu asno não mais empacasse, tornasse-se um asno eficiente, e sim mostrar aos
homens que todas as suas empáfias e orgulhos, mostrando com sorrisos e alegrias
os bens materiais mais sofisticados, os saldos bancários bem rechonchudos, não
tinham o menor sentido, pois que os homens somos o ser que jamais pode se
alcançar.
Se
fora esta a sua verdadeira intenção, não se sabe, pois não dissera, quem sabe
até para evitar situações mais constrangedoras. Sem dúvida, causar-lhe-ia
muitos contratempos. Não que ninguém fosse aceitar ter sido ele quem mostrara
esta verdade, poderia ter sido qualquer um, mas esta verdade, com certeza, iria
insatisfazer a todos, iria deixar os homens revoltados, alguns suicídios e
loucuras. Seria ele crucificado por causa disso. Enfim, os homens não estão
preparados para verdade alguma.
O
fato é que a carroça com o varal, uma cenoura dependurada, à frente dela,
continua pelas ruas da cidade.
[1]
Em princípio, o conto fora intitulado Cofiando o bigode e atitudes. Depois
intitulei-o Lúcifer Pernóstico, passando a escrever um romance com este título.
A inspiração estendeu-se, transformando-o num romance de sete volumes; pensara
comigo que Dostoiévski quis escrever uma obra de sete volumes, mas a sua morte
prematura não tornou isto possível. Podia eu realizar este sonho dostoiévskiano
com a minha obra sobre o asno Lúcifer Pernóstico. Terminado os sete volumes,
precisava de um título que englobasse os sete volumes. Inspirado no compadre
Paulo César Carneiro Lopes, dei o título: Utopia do Asno no Sertão Mineiro.
Este conto fora escrito em 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário