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terça-feira, 24 de novembro de 2015

CORCOVADO DE ESPERANÇAS XVII - LUZ SECRETA DE SABEDORIAS



Acerca da epígrafe de vossa primeiríssima missiva, referimo-nos à “inveja”, até gostaríamos de perguntar se nos adulastes com o propósito de instigar os invejosos, mostrar-nos amor e consideração, aos homens desdém, indiferença, raiva, ódio, ressentimento. Apreciais sobremodo esses jogos sutis. São os momentos em que sentis o nada que  vos habitais, precisando chamar atenção, ser o centro de todos os olhares, e não conseguis realizar. A inveja existe apesar, independente disso.
Estais vós acaso percebendo que em minha primeira missiva, ao final, referi-me ao final da vossa, o que fora a inspiração para aquelas reflexões que desenvolvi a fim de que pudésseis perceber não só que havíamos lido toda a correspondência e meditado sobre isso e aquilo,  mas também desejo o mergulho profundo.
Desejava sair, uma voltinha no quarteirão, andar um pouco. Às quatro horas da manhã – com precisão esse horário -, acordara com o constante latido de um cachorro. Não era preciso saber de que residência vinha – não era necessário espremer os miolos – para saber ser do vizinho da esquerda. Há um portão de ferro, de grade e quem passa faz barulho ou apenas os passos chamam a atenção do irracional animal, e a audição aguçadíssima como nós os humanos o sabemos; não entende que os homens necessitam refazer as forças, ânimos, disposições para o novo dia, trabalhos árduos por vida digna e honrada; precisam dormir. Levantam cedo. O cão exerce sua função: latir quem passa, defender a segurança da família.
Há quando late muito. Se o irmão do proprietário da casa aparecer na esquina, uns oitenta metros da residência, o cão começa a latir. Continua. Quando ele entra na casa, o cachorro sai correndo e fica latindo de longe. Sabe desses cachorros que latem e se a pessoa mexer uma palha ele corre e começa a latir? O cachorro tem medo do homem. Escurraçou-o de perto dele.
Devia continuar a responder vossa missiva. Ao acordar, com o latido do cão, tive dificuldades, ainda que breves, de reconhecer era real o latido, vinha de um cão, e não de dentro de mim, a cobrança da responsabilidade que assumi em responder-vos. Acordei pensando que a humanidade, vozes de todos os homens reclamavam de meus compromissos.
Não dormi mais. Esperei que a jornada da noite rumo ao dia terminasse, o cachorro deixasse de latir. Pela manhã, Diana disse-me que dormira profundo, não ouvira qualquer som.  Ao sair para comprar pão e leite na padaria, a vizinha da direita estava varrendo a calçada, e dizendo a alguém que não dormira bem, o cão do vizinho havia latido muito durante a noite, os vizinhos viajaram.
O dia começou em nossa rua assim. As donas de casa comentando sobre a noite, não dormiram, o cão do vizinho latiu a noite toda. Quem passar na rua e trocar um dedo de prosa com algum proprietário de casa, com as donas, ouvirá sobre o latido do cão. Felizmente, irão voltar de viagem à noite, poderemos dormir em paz. “Noite perdida de sono, meu Deus!...”.
“Agora compreendo o porquê de ter latido tanto”, a responsabilidade dele era maior. Não havia ninguém em casa. Tinha de defender o patrimônio da família. A vizinha havia dito que latira a noite inteira. Creio que latira aqui e ali, durante um tempo, tomando fôlego, tirando uma soneca, voltando a latir, mas a partir das quatro da manhã latira constante. Quem me poderia garantir que os latidos compassados foram dados para que acordasse eu, e não o fazendo, depois de algumas pausas e retornos, resolveu latir constante, aí me acordaria? Teria de pensar a respeito da continuidade da missiva, e não se o cão tivera prévia determinação de acordar-me com os latidos a fim de pensar o que responderia.
Isto pela manhã. Embora andando pelas ruas, avenidas, alameda, o cão, e todos os outros do mundo, não me saía da cabeça e, a fim de espairecer, esquecê-lo, precisei o objetivo primordial, a intenção da missiva: desejo um sud-ário tecido com fios de ouro solar, de risos crepusculares. O sol é a tensão mágica do silêncio. Os risos são in-tensões espirituais da solidão.
Podeis não acreditar, disse-o em voz alta, óbvio, em primeira instância, para que não me esquecesse do que estava dizendo, era necessário que memorizasse, chegando a casa iria anotar ou continuar a escritura da resposta; em segunda, fiquei sem entender como que os latidos do cão, os momentos em que me senti envolvido com a situação, foram despertar isso do sud-ário tecido. Não creio que tenha relação –  não me conheço para que possa estabelecer essa relação, digo no mundo das “letras”. Não tenho experiências e vivências com a escrita, a continuidade que contribui para o desenvolvimento dos sentidos, espírito.
Em nossa viagem aos mistérios, ouvimos a luz secreta de uma sabedoria que tem intensidade. Não possuo o direito dos apátridas, vagabundos, irresponsáveis, de afastar-me das delicadezas e complicações e rir-me de tudo isso? Sim, esse direito me é concedido e não passo de um louco, em querer procurar aqui uma espécie de pátria, lar, pagando por tudo isso, um alto preço, em sofrimentos e contrariedades. Contudo, submeto-me, sofro, sofro até com prazer, chegando a sentir felicidade íntima. Amar dessa forma é tolo e difícil, é complicado e exaustivo, mas é encantador. Enternecedora é a tristeza desse amor, tristeza de uma beleza sombria; também o são minha loucura e meu desespero; belas são as noites à espera do sono; belo e delicioso é tudo isso: o traço de sofrimento dos lábios de Diana, o tom apagado e afetuoso de sua voz quando fala de seu amor e da sua preocupação.
Esse traço de sofrimento, tornando-se constante no rosto jovem de Diana, cujas linhas julgo encantadoras e importantes para serem copiadas; sinto que também me torno diferente; fico mais velho; não mais inteligente, porém mais experiente, não mais feliz, contudo mais amadurecido e enriquecido na alma. 
Diana queria sair, irmos às barraquinhas, fazer compras, almoçaríamos nalgum restaurante. Após feitas as compras, demoramos um pouco, Diana quando entra numa loja o tempo que gasta para escolher é bem maior que o de fazer as mercadorias. Não tenho paciência. Encontramos com Sérgio Penteado, dentista, que nos disse o Rotary Club estava servindo almoço aos romeiros de São Geraldo. Ele próprio estava ajudando. Disse-lhe eu que iríamos almoçar lá.  De perto da Camig até à Rua do Correio Velho é simplesmente um pulo, pode-se passar pelo beco do açougue do Vandinho, corta um caminho ainda que pequeno.
Encontrei-me com alguns conhecidos curvelanos no almoço oferecido aos romeiros no Rotary Clube. A comida estava simplesmente uma delícia, difícil tal qualidade em festas. Indo embora, disse às serventes que havia apreciado bastante a comida. Uma delas já me conhecia, mas não me lembrei, o que me deixara sem graça por me ter chamado pelo nome, dito que as outras não haviam me reconhecido. Expliquei-lhe não ser negligência, não havia percebido. Não me desculpasse. Compreendia. 
Ao iniciar a noite, sai para dar voltinha no quarteirão. Andava de cabeça baixa, a rua deserta. Olhei ao redor para me certificar de que ninguém passava, e era real, o único transeunte às oito e meia da noite era eu. Desci a avenida que a rua da residência de minha família corta, indo para as imediações de um esgoto, área grande de terreno baldio, apesar de a rua ser asfaltada. Sentei-me no meio-fio, acendendo um cigarro. Nada de baldio no terreno das almas: eis aqui uma verdade que professo, para professar é preciso conhecer as almas – melhor dizendo, é preciso  saber de seus mistérios e só Deus podendo desvendá-los.
Há quando aprecio sair de casa, ir para um lugar distante, ninguém me conhece, não há ninguém vendo, pondo-me a conversar comigo, dizer-me as coisas na “lata”, chamar-me aos verbos. Nesses momentos, costumo dizer coisas interessantes, espirituosas. Jamais tomei nota disso. Olhei alguém que passava sozinha na avenida, estava com pressa, andava de cabeça baixa. Em dias de festa, é necessário ter certas cautelas. Parecia com medo. Era uma mulher, podia ter uns vinte e cinco, vinte e seis anos. Olhei-a rapidamente, o suficiente para não ser mais vista.
Pensei no que dissera de no terreno das almas nada de baldio. Por quê? Porque há os mistérios, é preciso sabê-los, conhecê-los. Isso tomando em consideração o dito. E se não fosse essa a razão? Poderia ser outra. Não pude responder a essa questão. Não estava habituado a prestar atenção no que digo em meus momentos de reflexão nalgum lugar da cidade.
Certa manhã, acordei ao romper do dia e fiquei deitado na cama, cismando; rodeavam-me imagens desconexas de um sonho. Sonhara com minha mãe e com um amigo de colégio, cognominado Maninho, filho de Dona Nhanhá, uma vizinha nossa, morava frente à nossa casa, do outro lado da linha do trem de ferro, sendo que estas duas figuras pudera identificar claramente. Ao conseguir livrar-me da trama dos sonhos, notei uma claridade estranha, uma espécie de luminosidade muito singular que penetrava pela fenda da janela. Vi então que o parapeito, o telhado da cocheira, a entrada do pátio e toda a paisagem que se estendia do outro lado cintilava, com um tom castanho alvacento, cobertos com a primeira neve do inverno.
O contraste entre o alvoroço do meu coração e aquele mundo hibernal, tranqüilo e oferente, deixou-me surpreendido: como, de que maneira plácida, enternecedora e piedosa o campo e a floresta, a colina e a charneca se abandonavam ao sol, vento, chuva, seca, neve; de que maneira bela e suavemente sofredora, o bordo e o freixo suportavam o fardo do inverno! Não se conseguiria ser igual a eles, não se poderia aprender nada com eles? Pensativo, dirigi-me ao pátio, onde patinei na neve, senti-me com as mãos, fui ao jardim e olhei para a cerca pesada de neve e os galhos das roseiras vergados sob o alvo lastro. 
-                     É hora de refletir um pouco – disse-me em voz baixa. Poderia conversar comigo, ninguém passaria, ouvir-me-ia. Desde a eternidade até à eternidade isso de alguém vir alguém conversando sozinho é motivo de riso, preconceito, discriminação. Pensei em certas mudanças ocorridas, coisas que não esperava, por exemplo, alhear-me das situações e circunstâncias, as pessoas serem elas, seres humanos, estar sozinho mesmo, não me importar com olhares de esguelha. Nada dizia em voz alta, os pensamentos perpassavam-me.
Lembrou-me uma homilia de um redentorista em que ele dizia a “memória” para os redentoristas é para ser agradecida, é uma “graça” de Deus – não simples lembrança, recordação, a memória real, o que me chamou a atenção por não saber disso.
Perguntou o padre aos fiéis se se lembravam o que fizeram logo após se levantarem. O que pensaram? O que sentiram? Que sentimentos tiveram? O que comeram no café da manhã, na hora do almoço, do lanche vespertino? Qual era o sabor dos alimentos?  Será que guardavam apenas angústias, depressões, medos, amarguras, ódios e raivas. A celebração fora campal – era a festa de São Geraldo. Havíamos a esposa, eu ido assistir à festa, acompanharmos a procissão. Chegamos a Curvelo no sábado pela manhã.
Olhei para uma direção, havia alguém encostado no parapeito da janela na parte superior da Basílica, assistindo à celebração do último dia da Novena. Virei-me para trás. Uma grande multidão. Perguntei-me, rindo – o que ocasionou Diana chamar-me a atenção: naquele momento não era lugar para estar rindo a bandeiras soltas – se haveria no meu sepultamento tantas pessoas. Seria inusitado, um simples cidadão, individuo comum com um reconhecimento tão grande por parte da comunidade, das cidades vizinhas acompanharem o féretro. Era exagero: ali naquele largo da Basílica havia gente de todos os lugares do Brasil.
Verdade, o que estava se revelando em mim era a carência, o desejo de ser amado, reconhecido. Se não fora em minha vida? Desculpai-nos, mas aqui não é o lugar de tratar dessas coisas, posso dizer com sinceridade que me sinto carente. Naquele momento não tive vergonha de o ser, não me senti culpado, não me senti magoado com as negligências alheias. Não. A carência era-me tão familiar. O que importa a multidão no enterro? Nada. Estou morto. 

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