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Acerca da epígrafe de vossa
primeiríssima missiva, referimo-nos à “inveja”, até gostaríamos de perguntar se
nos adulastes com o propósito de instigar os invejosos, mostrar-nos amor e
consideração, aos homens desdém, indiferença, raiva, ódio, ressentimento. Apreciais
sobremodo esses jogos sutis. São os momentos em que sentis o nada que vos habitais, precisando chamar atenção, ser
o centro de todos os olhares, e não conseguis realizar. A inveja existe apesar,
independente disso.
Estais
vós acaso percebendo que em minha primeira missiva, ao final, referi-me ao
final da vossa, o que fora a inspiração para aquelas reflexões que desenvolvi a
fim de que pudésseis perceber não só que havíamos lido toda a correspondência e
meditado sobre isso e aquilo, mas também
desejo o mergulho profundo.
Desejava
sair, uma voltinha no quarteirão, andar um pouco. Às quatro horas da manhã –
com precisão esse horário -, acordara com o constante latido de um cachorro.
Não era preciso saber de que residência vinha – não era necessário espremer os
miolos – para saber ser do vizinho da esquerda. Há um portão de ferro, de grade
e quem passa faz barulho ou apenas os passos chamam a atenção do irracional
animal, e a audição aguçadíssima como nós os humanos o sabemos; não entende que
os homens necessitam refazer as forças, ânimos, disposições para o novo dia,
trabalhos árduos por vida digna e honrada; precisam dormir. Levantam cedo. O
cão exerce sua função: latir quem passa, defender a segurança da família.
Há
quando late muito. Se o irmão do proprietário da casa aparecer na esquina, uns
oitenta metros da residência, o cão começa a latir. Continua. Quando ele entra
na casa, o cachorro sai correndo e fica latindo de longe. Sabe desses cachorros
que latem e se a pessoa mexer uma palha ele corre e começa a latir? O cachorro
tem medo do homem. Escurraçou-o de perto dele.
Devia
continuar a responder vossa missiva. Ao acordar, com o latido do cão, tive
dificuldades, ainda que breves, de reconhecer era real o latido, vinha de um
cão, e não de dentro de mim, a cobrança da responsabilidade que assumi em
responder-vos. Acordei pensando que a humanidade, vozes de todos os homens
reclamavam de meus compromissos.
Não
dormi mais. Esperei que a jornada da noite rumo ao dia terminasse, o cachorro
deixasse de latir. Pela manhã, Diana disse-me que dormira profundo, não ouvira
qualquer som. Ao sair para comprar pão e
leite na padaria, a vizinha da direita estava varrendo a calçada, e dizendo a
alguém que não dormira bem, o cão do vizinho havia latido muito durante a
noite, os vizinhos viajaram.
O
dia começou em nossa rua assim. As donas de casa comentando sobre a noite, não
dormiram, o cão do vizinho latiu a noite toda. Quem passar na rua e trocar um
dedo de prosa com algum proprietário de casa, com as donas, ouvirá sobre o
latido do cão. Felizmente, irão voltar de viagem à noite, poderemos dormir em
paz. “Noite perdida de sono, meu Deus!...”.
“Agora
compreendo o porquê de ter latido tanto”, a responsabilidade dele era maior.
Não havia ninguém em casa. Tinha de defender o patrimônio da família. A vizinha
havia dito que latira a noite inteira. Creio que latira aqui e ali, durante um
tempo, tomando fôlego, tirando uma soneca, voltando a latir, mas a partir das
quatro da manhã latira constante. Quem me poderia garantir que os latidos
compassados foram dados para que acordasse eu, e não o fazendo, depois de
algumas pausas e retornos, resolveu latir constante, aí me acordaria? Teria de
pensar a respeito da continuidade da missiva, e não se o cão tivera prévia
determinação de acordar-me com os latidos a fim de pensar o que responderia.
Isto
pela manhã. Embora andando pelas ruas, avenidas, alameda, o cão, e todos os
outros do mundo, não me saía da cabeça e, a fim de espairecer, esquecê-lo,
precisei o objetivo primordial, a intenção da missiva: desejo um sud-ário
tecido com fios de ouro solar, de risos crepusculares. O sol é a tensão mágica
do silêncio. Os risos são in-tensões espirituais da solidão.
Podeis
não acreditar, disse-o em voz alta, óbvio, em primeira instância, para que não
me esquecesse do que estava dizendo, era necessário que memorizasse, chegando a
casa iria anotar ou continuar a escritura da resposta; em segunda, fiquei sem
entender como que os latidos do cão, os momentos em que me senti envolvido com
a situação, foram despertar isso do sud-ário tecido. Não creio que tenha
relação – não me conheço para que possa
estabelecer essa relação, digo no mundo das “letras”. Não tenho experiências e
vivências com a escrita, a continuidade que contribui para o desenvolvimento
dos sentidos, espírito.
Em
nossa viagem aos mistérios, ouvimos a luz secreta de uma sabedoria que tem
intensidade. Não possuo o direito dos apátridas, vagabundos, irresponsáveis, de
afastar-me das delicadezas e complicações e rir-me de tudo isso? Sim, esse
direito me é concedido e não passo de um louco, em querer procurar aqui uma
espécie de pátria, lar, pagando por tudo isso, um alto preço, em sofrimentos e
contrariedades. Contudo, submeto-me, sofro, sofro até com prazer, chegando a
sentir felicidade íntima. Amar dessa forma é tolo e difícil, é complicado e
exaustivo, mas é encantador. Enternecedora é a tristeza desse amor, tristeza de
uma beleza sombria; também o são minha loucura e meu desespero; belas são as
noites à espera do sono; belo e delicioso é tudo isso: o traço de sofrimento
dos lábios de Diana, o tom apagado e afetuoso de sua voz quando fala de seu
amor e da sua preocupação.
Esse
traço de sofrimento, tornando-se constante no rosto jovem de Diana, cujas
linhas julgo encantadoras e importantes para serem copiadas; sinto que também
me torno diferente; fico mais velho; não mais inteligente, porém mais
experiente, não mais feliz, contudo mais amadurecido e enriquecido na
alma.
Diana
queria sair, irmos às barraquinhas, fazer compras, almoçaríamos nalgum
restaurante. Após feitas as compras, demoramos um pouco, Diana quando entra
numa loja o tempo que gasta para escolher é bem maior que o de fazer as
mercadorias. Não tenho paciência. Encontramos com Sérgio Penteado, dentista,
que nos disse o Rotary Club estava servindo almoço aos romeiros de São Geraldo.
Ele próprio estava ajudando. Disse-lhe eu que iríamos almoçar lá. De perto da Camig até à Rua do Correio Velho
é simplesmente um pulo, pode-se passar pelo beco do açougue do Vandinho, corta
um caminho ainda que pequeno.
Encontrei-me
com alguns conhecidos curvelanos no almoço oferecido aos romeiros no Rotary
Clube. A comida estava simplesmente uma delícia, difícil tal qualidade em
festas. Indo embora, disse às serventes que havia apreciado bastante a comida.
Uma delas já me conhecia, mas não me lembrei, o que me deixara sem graça por me
ter chamado pelo nome, dito que as outras não haviam me reconhecido.
Expliquei-lhe não ser negligência, não havia percebido. Não me desculpasse.
Compreendia.
Ao
iniciar a noite, sai para dar voltinha no quarteirão. Andava de cabeça baixa, a
rua deserta. Olhei ao redor para me certificar de que ninguém passava, e era
real, o único transeunte às oito e meia da noite era eu. Desci a avenida que a
rua da residência de minha família corta, indo para as imediações de um esgoto,
área grande de terreno baldio, apesar de a rua ser asfaltada. Sentei-me no
meio-fio, acendendo um cigarro. Nada de baldio no terreno das almas: eis aqui
uma verdade que professo, para professar é preciso conhecer as almas – melhor
dizendo, é preciso saber de seus
mistérios e só Deus podendo desvendá-los.
Há
quando aprecio sair de casa, ir para um lugar distante, ninguém me conhece, não
há ninguém vendo, pondo-me a conversar comigo, dizer-me as coisas na “lata”,
chamar-me aos verbos. Nesses momentos, costumo dizer coisas interessantes,
espirituosas. Jamais tomei nota disso. Olhei alguém que passava sozinha na
avenida, estava com pressa, andava de cabeça baixa. Em dias de festa, é
necessário ter certas cautelas. Parecia com medo. Era uma mulher, podia ter uns
vinte e cinco, vinte e seis anos. Olhei-a rapidamente, o suficiente para não
ser mais vista.
Pensei
no que dissera de no terreno das almas nada de baldio. Por quê? Porque há os
mistérios, é preciso sabê-los, conhecê-los. Isso tomando em consideração o
dito. E se não fosse essa a razão? Poderia ser outra. Não pude responder a essa
questão. Não estava habituado a prestar atenção no que digo em meus momentos de
reflexão nalgum lugar da cidade.
Certa
manhã, acordei ao romper do dia e fiquei deitado na cama, cismando; rodeavam-me
imagens desconexas de um sonho. Sonhara com minha mãe e com um amigo de
colégio, cognominado Maninho, filho de Dona Nhanhá, uma vizinha nossa, morava
frente à nossa casa, do outro lado da linha do trem de ferro, sendo que estas
duas figuras pudera identificar claramente. Ao conseguir livrar-me da trama dos
sonhos, notei uma claridade estranha, uma espécie de luminosidade muito
singular que penetrava pela fenda da janela. Vi então que o parapeito, o
telhado da cocheira, a entrada do pátio e toda a paisagem que se estendia do
outro lado cintilava, com um tom castanho alvacento, cobertos com a primeira
neve do inverno.
O
contraste entre o alvoroço do meu coração e aquele mundo hibernal, tranqüilo e
oferente, deixou-me surpreendido: como, de que maneira plácida, enternecedora e
piedosa o campo e a floresta, a colina e a charneca se abandonavam ao sol,
vento, chuva, seca, neve; de que maneira bela e suavemente sofredora, o bordo e
o freixo suportavam o fardo do inverno! Não se conseguiria ser igual a eles,
não se poderia aprender nada com eles? Pensativo, dirigi-me ao pátio, onde
patinei na neve, senti-me com as mãos, fui ao jardim e olhei para a cerca
pesada de neve e os galhos das roseiras vergados sob o alvo lastro.
-
É
hora de refletir um pouco – disse-me em voz baixa. Poderia conversar comigo,
ninguém passaria, ouvir-me-ia. Desde a eternidade até à eternidade isso de
alguém vir alguém conversando sozinho é motivo de riso, preconceito,
discriminação. Pensei em certas mudanças ocorridas, coisas que não esperava,
por exemplo, alhear-me das situações e circunstâncias, as pessoas serem elas,
seres humanos, estar sozinho mesmo, não me importar com olhares de esguelha.
Nada dizia em voz alta, os pensamentos perpassavam-me.
Lembrou-me
uma homilia de um redentorista em que ele dizia a “memória” para os
redentoristas é para ser agradecida, é uma “graça” de Deus – não simples
lembrança, recordação, a memória real, o que me chamou a atenção por não saber
disso.
Perguntou
o padre aos fiéis se se lembravam o que fizeram logo após se levantarem. O que
pensaram? O que sentiram? Que sentimentos tiveram? O que comeram no café da
manhã, na hora do almoço, do lanche vespertino? Qual era o sabor dos
alimentos? Será que guardavam apenas
angústias, depressões, medos, amarguras, ódios e raivas. A celebração fora
campal – era a festa de São Geraldo. Havíamos a esposa, eu ido assistir à
festa, acompanharmos a procissão. Chegamos a Curvelo no sábado pela manhã.
Olhei
para uma direção, havia alguém encostado no parapeito da janela na parte
superior da Basílica, assistindo à celebração do último dia da Novena. Virei-me
para trás. Uma grande multidão. Perguntei-me, rindo – o que ocasionou Diana
chamar-me a atenção: naquele momento não era lugar para estar rindo a bandeiras
soltas – se haveria no meu sepultamento tantas pessoas. Seria inusitado, um
simples cidadão, individuo comum com um reconhecimento tão grande por parte da
comunidade, das cidades vizinhas acompanharem o féretro. Era exagero: ali
naquele largo da Basílica havia gente de todos os lugares do Brasil.
Verdade, o que estava se revelando em mim era a carência, o
desejo de ser amado, reconhecido. Se não fora em minha vida? Desculpai-nos, mas
aqui não é o lugar de tratar dessas coisas, posso dizer com sinceridade que me
sinto carente. Naquele momento não tive vergonha de o ser, não me senti
culpado, não me senti magoado com as negligências alheias. Não. A carência
era-me tão familiar. O que importa a multidão no enterro? Nada. Estou morto.
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