Esse sorriso
noturno, do paradoxo saboreado, ironia amarga, distanciamento, inteligência
soberana - noturno, revela-se como uma cortina, que discretamente se abre sobre
luminosa infância, outro palco, melhor dizer picadeiro, onde brilha o amarelado
das luzes, onde se é feliz e ninguém está triste, angustiado, melancólico.
Servir aos
homens, aos indivíduos, à humanidade não apenas significa o próprio homem
desfrutar da felicidade, harmonia, paz, mas também auxiliar e contribuir com as
outras pessoas, seres humanos, a terem mais felicidade. A felicidade não é
fácil.
Quantas vezes o olhar implacável do artista se
detém, subitamente desarmado, numa criança suja ou papoula tola, no ápice
gelado de uma elucubração absolutamente cética, o pensamento se corporifica
como nó na garganta e transborda, liquefeito em lágrimas. A história de meu
corpo é de afetos represados. Sepulto
vivo, quem é a outrem dado, e quem ao outrem que há em si, sepulto, não poderei
Senhor, alguma vez, qualquer rumorejo de vento no arvoredo, brilho incerto
sobre o rio, acordar de repente o “sentimento-raiz”, recalcado, mas
formidavelmente vivo: “Quem me entalou estas lágrimas nos interstícios do
coração?!”
Do antiqüíssimo de mim, onde têm raiz todas as
rosas de maravilha, cujos odores são esperanças que amo, porque as sei fora de
relação com o que há na vida, uma vontade estranha, oculta, e deliberada de
verter lágrimas quentes e fáceis, talvez porque a alma é infinita e a vida,
finita.
A compaixão surge na existência contínua, cíclica,
com grandes fontes de alegria como a misericórdia, o que desejo é “iluminai a todos como tendes iluminado a
mim, e deito tranqüilo e sereno, sabendo que vós estais a meu lado a todo instante”.
Esta antiga
angústia que trago há milênios no coração, transbordou da taça em lágrimas,
imaginações férteis, desejos de mostrar o íntimo, mesmo com todas as
dificuldades, carências. E, no entanto, na lua que esplende no céu, no sol que
incide sobre o vale, um indício fala no limiar das origens.
Tudo quanto
se encontra fora de mim parece mais belo, e todos os homens mais perfeitos do
que eu. E isto é natural porque sinto demasiado as imperfeições e os outros
sempre sugerem possuir com precisão aquilo que me falta. Na beira da praia ou
no alto da colina, nada é mais gostoso do que passear de mãos dadas com os
idílios e quimeras, esperanças e fé.
É evidente que imaginei, criei, e por que não dizer que inventei todas
essas vossas palavras, bebi num cálice de verbo a oratória sem cor e sabor,
para matar a sede de censura e rejeição, realizar a paranóia que é só
minha – estais em silêncio apenas
ouvindo. Isto é também de um homem além das águas. Olhando-as, contemplando-as,
buscando entendê-las, tenho passado quarenta e três anos consecutivos
observando com perspicaz atenção, por uma frincha, a essas vossas palavras. Sou
quem as expressa, sou quem as inventou, pois é apenas isso que se tem de fazer
à beira de um rio olhando a água passar, inventar alguma coisa. Não é de se
espantar, assustar, não é de causar qualquer admiração que estas palavras hajam
sido decoradas e assumido forma literária.
Quando
contemplo, da janela da sala de televisão, o sol matutino rasgar a bruma sobre
a colina distante, iluminando a campina silenciosa no fundo do vale, e vejo o
riacho tranqüilo correndo para mim e serpenteando entre os salgueiros
desfolhados, essa natureza me parece insípida, fria, e inanimada como uma
estampa colorida, cores de todas as tonalidades.
O que eu era
outrora já não se lembra de quem sou...
Se um véu cobre a miopia de um homem e suas
futuras desgraças, o mesmo véu esconde dele alívios, e um suspiro que não havia
sido temido é encontrado como um consolo que se não esperava.
Quem, ontem,
fui já hoje em mim não vive.
Quando um
tempo mais frio e inclemente chegou, quando, sob o peso dos meus sofrimentos,
comecei a fundar numa condição mais penosa, foi sorte para mim que a mesma
pessoa, a cujas migalhas do café tinha acesso, permitiu-me dormir em uma grande
casa desocupada que lhe pertencia. Chamei-a des-ocupada, pois não havia ali
nenhuma mobília, exceto uma mesa e algumas cadeiras. Mas descobri, ao tomar
posse de minhas novas acomodações, que a casa já possuía um habitante, criança
pobre e sem amigos, aparentando dez anos de idade: mas ela parecia ter sido
atacada pela fome, e sofrimentos deste tipo fazem as crianças parecerem mais
velhas do que são. Ela mesma me contou que havia dormido e vivido sozinha
naquela casa durante algum tempo antes de minha chegada, e expressou grande
satisfação, alegria, contentamento, quando descobriu que seria sua companhia
nas horas de escuridão.
Luzes não
são suficientes para iluminar a longa área de mato e capim que se estende
adentro mistério entre árvores, galhos, esquecimentos, de alguém que, sentado
no meio-fio, a noite segue seu caminho, se há outra significação para o pouco
ou demais de olhos que desejam com que gestos ou modos de revelar o erro
abstrato da criação, e o silêncio perpassa momento difuso, profuso, completo de
viver tudo de todos os lados.
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