Pareço-me indiferente aos sentimentos que inspiro –
não haveria modo de não sê-lo, pois que as dúvidas sobre esta fala são
traidoras. Se não indiferentes, não seriam dúvidas, mas distúrbio de
personalidade – palavras dizem algo, sou diferente delas. Sendo indiferente aos
sentimentos que inspiro, obedeço ao lema não menos que a dis-posição do
espírito. Sei a fundo a retórica da paixão, não a emprego sem parcimônia.
Nada dissimulo, não revelo os desígnios. Deixo
transparecer no rosto o que sinto no coração. Poder-se-ia dizer seja espírito
compulsivo, não negligencio. O senão está justamente que me aproveitei dele com
sapiência, sublimei-o. Mas jogo cartas na mesa sem previsão. Expansivo e
discreto, possuo estes contrastes aparentes, não sendo mais que harmonias de
caráter.
Aquele nome tem uma história.
Ter uma história significa entrar no terreno do
convencional. Ainda que o Moisés de Michelangelo seja a maior expressão da
arte, será sempre convencional, mediante a relevância de sua história.
A obra moderna não! Sua vida não tem nenhuma
convenção. É original em cada momento de seu desdobrar-se. Mesmo quando se
repete.
Sem esta trágica repetição não nos reconhecemos, e a
identidade se perdia dia após dia, deixando em seu lugar rastro de disparates e
de esquecimento. o eudentismo se perde nas encruzilhadas do tempo e o eu já não
é mais igual a ele mesmo.
O nome aberrante e assustador para expressar este
estado mental é loucura e sua variante mais próxima, vida!
Identificar estes momentos é se tornar como Fausto.
Mas a obra de arte moderna já não guarda nenhuma preocupação, e suas teorias
começam a convencer em definitivo.
Haveria quem não pensasse, se me estivesse ouvindo,
uma consciência assim não daria o troco, o retorno não seria depressão, momento
de fazer inventário, saber o porto a que me destino. Defeitos nascem de
qualidades. Sou crédulo à força de ser confiante, ríspido com tudo o que me
parece fútil. Tenho a imaginação quimérica, às vezes – a inteligência austera,
mas compenso estes defeitos, se o são, por qualidades sedutoras e raras.
Os olhos estranhos buscam esconder o segredo. Afianço
nada dissimular, não sabia de que segredo se tratar, visto neste monólogo a
distância entre as palavras e sentimentos serem consideráveis. Acho-me perfeito
demais. Que razão haveria para esconder-me dos olhos dos outros? Não revelar
algo não tardaria a ser público? Pode ser que me engane, mas creio haver
imaginação criativa.
Olho, digamo-lo assim, por baixo das pálpebras.
A carruagem desenfreada não regressa, segue destino,
os passageiros tentam se salvar abraçados às orações, ditas no silêncio. Talvez
alguma voz tenha cantado canções de saudade de um mundo perdido, distante,
sonhado. Será que essa voz há quinhentos anos gritou palavras para dominar a
voz chorosa de um ente querido, que estava numa negra violentada, enquanto a
vossa estáveis num invasor escravo do desejo? Há tantos mistérios nessa voz
desconhecida, presente em cada instante, em cada sentimento.
No deserto da história, não são camelos a puxar a
carruagem, e sim cavalos. No deserto e solidão dos homens, há o que puxar o
desejo de sentido e significado, os camelos.
Sempre houve carruagem de sonhos, provisões de
palavras, armazéns de mensagens e idéias, que, deixados para trás, e nas sendas
perdidas tentados resgatar, para fazer a ligação do que se faz e o que se fará,
aliás, isto é o que definirá a existência, dito logo no intróito sendo a
bússola de orientação do camelo que fui, no deserto, ou do cavalo que continuo
sendo, no silêncio, que é o deserto do deserto.
O que resta? Resta esperar; enfim, a carruagem
continua sendo puxada pelos cavalos, as imagens dos rios e águas em movimento a
se anunciarem na passagem, na travessia. Esperar até que o “a-se-viver” se
anuncie. Não se é referido ao adiamento da vida. Quer dizer manter-me alerta e,
em verdade, no interior do já vivido, experienciado, em direção ao não-vivido,
não experienciado, que ainda se guarda e se encobre no já vivido.
Desejo que todos vêem a carruagem desenfreada, as
pessoas olhando a paisagem, cenário, passando rápidos, segurando ás palavras de
salvação. Sirvo-me delas. Há quem possa entendê-las, a que vieram, o objetivo a
que se propõem? Serem inteligíveis á luz da linguagem e estilo, fácil, mas
acolhidas, isto a quem interessa, ou que utilidade possam ter? Há quem não
possa compreender e entender o que essa carruagem significa, qual o sentido
dela em sua vida, se é que lhe atribui algum, para ele ou ela a carruagem apenas
passou naquele momento.
A carruagem desenfreada segue destino, tudo mais é
imagem efêmera. Passarem carruagem e imagem de olhos em olhos deixam apenas
vagas sensações de vida. Essas vagas sensações, ao contrário do que se pensa ou
imagina, isto é, já que são as únicas que posso sentir, não me resta
alternativa, são as mais eficazes e eficientes para o desenvolvimento da
contemplação, são as luzes do subsolo.
Quando era criança, gostava de imaginar viagens
interplanetárias, laboratórios, mil invenções. Havia a fantasia, o desenho
animado, o gato, o cão. O tempo passava, o tempo passando – passado. Penso
novos versos: o menino perdido procura seu perdido mundo passado e mais se
perde no presente; presente passando – passado.
O que hei-de fazer? Não me importa o objeto que me
inspira estas letras: estarem elas mesmas registradas neste tablóide, um artigo
escrito, mais um dentre outros que foram se apresentando dentro de sonhos
anteriores a quaisquer outros, e hoje são sonhos a partir de outros que foram
sendo realizados.
Quem sabe a vida seja isto mesmo, imagens dentro de
outras imagens. O sucesso delas, serem apreciadas, serem sementes de conquistas
futuras, de algo que súbito despertou a sede, e tudo o mais são buscar de a
saciar com a água, por mais que o acaso as teça e devolva, saem iguais no
tempo, quem sabe ao in-verso de in-vernos que me habitam, e nas circunstâncias,
o in-vernos de in-versas ilusões; assim a história, assim o resto.
Eis como, com as metáforas, símbolos, imagens, as
castas de luzes cristalinas me habitam, o estilo de dentro em mim retratá-las.
Bem, já o sabeis: esquizofrenia, neurose temos todos,
uns mais, outros menos. Embora isso, posso garantir-vos não poder considerar a
ferro e fogo a questão do castelo de cristal que estou empreendido em
construir, realizar, pois que é com esforço, dedicação, renúncias que busco
fazer, isto é, entra a vida inteira no empreendimento, na construção, e quando
terminar irei nele morar. E daí, só que ele é uma imagem, metáfora da vida: o
castelo de cristal aqui significa a Vida, a busca dela.
Perguntar-me-ia em primeira instância, até para ser
diplomata e estratégico, o que devo fazer, se se me meteu na cachola que não se
vive somente para isto ou aquilo e que, se se vive, é num palácio que é preciso
ser instalado? Essa é a minha vontade, isto é meu desejo, instalar este
palácio.
Quem seria capaz de me arrancar esta vontade, podem
tentar anulá-la a partir da perseguição, preconceito, marginalização,
interesses mesquinhos e medíocres, invejas, podem obscurecê-la com máscaras e
véus, rótulos e patentes? Nada pode arrancar-me esta vontade senão quando
alguém perspicaz e inteligente tiver a ousadia de modificar os meus desejos.
Pois bem, direi com todas as palavras e letras legíveis: “modificai-os, apresentai-me,
senhores, outro fim, oferecei-me novas utopias e sonhos, novos ideais”.
Se vós mais mostrais, desde que reconheça eu serem
realmente utopias e sonhos, ideais, não terei nada a dizer, a contradizer,
seguindo-as por onde forem, tentando realizá-los com sinceridade, mas se não os
reconhecer como tais, direi sim sobre a tentativa de trapacear com interesses
próprios (aliás, qual a trapaça que não seja em benefício próprio; há
redundância de sentido, não me importa). Tereis de abaixar a cabeça, se fordes
realmente sincera, não apenas um gesto gratuito, mas a vida.
Enquanto espero que me apresentais, ofereçais de
coração e espírito, recuso-me a tomar um chiqueiro por um palácio de cristal.
Isto até por bom senso: o chiqueiro é chiqueiro, palácio de cristal é palácio
de cristal, a menos que esteja afastado de minhas faculdades mentais, seja
insano, não distinguindo ambos. Posso afiançar-vos que o chiqueiro não é o meu
habitat, não nasci para me locomover num espaço cercado de madeira ou cimento
no meio da merda, da sujeira, do odor fétido entra dia e sai dia; posso
afiançar-vos que não, digo com toda a sapiência que se me anunciou não faz um
segundo, essa não é apenas a minha “verdade”, e a de todos nós, de toda gente,
de vós. Não nascemos para viver no chiqueiro.
Uma palavrinha acerca de uma espécie de doidos – creio
possais legar-me -, porque seria um grande mal não os pôr igualmente em cena
quando honram tanto o meu palácio de cristal. Quero referir-me aos ricos que,
vendo chegar o fim dos seus dias, providenciam grandiosos preparativos para uma
passagem magnífica ao túmulo. É com grande prazer que se observa como esses
moribundos se aplicam seriamente ás suas pompas fúnebres. Estabelecem, artigo
por artigo, quantos círios e quantas velas devem arder nos seus funerais,
quantas pessoas vestidas de luto, quantos músicos, quantos carpidores devem
acompanhar o féretro, quem iria ler o discurso sobre ele próprio, o epitáfio
que constaria na lápide de mármore, como se, depois de mortos, ainda pudesse
conservar alguma consciência para gozar o espetáculo, ou soubesse ao certo que
os mortos costumam ficar envergonhados quando os seus cadáveres não são
sepultados com a magnificência exigida por seu próprio estado. Finalmente,
parece que esses ricos consideram a morte como um cargo de edil, que os obrigue
a ordenar festas populares e banquetes.
Rides. Podeis rir a mais não poderdes com esses
dizeres acima, com essas palavras, uma imagem, sim, mas imagem que mergulha nos
liames da metáfora e do desejo de poesia, e assim re-costando a cabeça no peito
aconchegante. Nossa... Se lerdes vezes sem conta esse dia de minha missiva a
vós, até esse momento, e passásseis a meditar o que estou dizendo em verdade,
não creio que a insônia se tornasse constante, uma continuidade sem limites,
mas algumas noites seriam gastas apenas para imaginar a profundidade dessas
palavras que acima vos disse, num tom, digamos desde logo, espontâneo e
simples, mas de repente, relendo o parágrafo, desde o início, percebi, intui
quais poderiam ser os ângulos de análise, tomando em conta a psique humana e as
suas sendas perdidas - claro, não percepção de algo simples, legível sem muitas
dificuldades.
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