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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

LABIRINTO DE PLANÍCIES SILENCIOSAS – IN MEMORIAM - Manoel Ferreira Neto.



As pessoas são-me caras, têm um grande significado em minha existência, estou sempre a dizer delas, fazer-lhes uma homenagem, mostrar-lhes profundo sentimento. É de mim esta atitude, a ação humana. Significa, também, unir-lhes a mim, estar unido a eles. Digo a todos sobre os outros, o que muitas vezes me afasta dos presentes, não os vivo com freqüência, não os existo inteiramente, no instante da presença, do diálogo. Aprendi, no entanto, a permear a presença e a ausência.
De Heli Ferreira da Silva, nunca escrevi uma só linha, jamais mencionei a quem quer que fosse o profundo sentimento por ele, o amor dediquei-lhe sempre, a extensa amizade alimentei por ele. É mesmo de causar espanto, chamar a atenção o fato de dedicar um amor tão grande, sentimento tão profundo, amizade tão extensa e não falar com ninguém, dizer dele a quem quer que seja. É verdade a morte aflora sentimentos conservados no fundo dalma. Damo-nos com uma profundidade enorme, aflora coisas até o instante jamais sabidas. Heli Ferreira esteve guardado durante muitos anos em mim, nem mesmo saindo para tomar fôlego. Morreu anteontem entre dez e onze horas da noite, e, hoje, estou aqui frente a este caderno, dedicando-lhe esta homenagem, falando dele, exteriorizando a dor sinto com esta enorme perda, aflorando a saudade deste grande amigo. Como este homem amava a sua existência!... Como este meu tio Heli era sincero nos seus sentimentos!... Se gostava de alguém, entregava-se todo e queria este alguém se sentisse querido. Se amava alguém doava-se por inteiro, chegando quase a sentir-lhe as dores. Jamais deixou de dizer e expressar será eu o seu sobrinho mais querido e amado. Não me lembra vez sequer tenha me ferido, feito sentir-me aborrecido e chateado. Não me lembra vez sequer tenha me chamado a atenção por uma arbitrariedade, por atitude gratuita. Ao contrário: ria de minhas criancices, gargalhava de meus erros. Não interferia em minhas coisas. Não intervinha em meus processos. Deixava-me livre. Expressava: a vida é sua, faça o que quiser dela, desde que seja em nome de seu amor por ela. A vida significava para ele amar tudo o que faz, amar a todos. Poder, luxo, situação financeira, nada disso tinha significado para ele. Morreu sem nada. Morreu como chegou ao mundo. Nunca reclamou de sua condição miserável. Nunca teve vergonha de sua pobreza, de ser o único dos irmãos que nada tinha.
Não me lembra vez única que tenha se queixado de angústia, tristeza, aborrecimento, nem ter reclamado de alguém lhe ter ferido, ter-lhe dito palavras de não, de ofensas, agressões. Aceitava tudo como expressão de tudo isso ser dos homens, precisavam eles de amor, carinho, compreensão. No mundo, tudo é efêmero e fugaz. Cumpre compreender e entender os homens. Nem mesmo sentindo as maiores dores, era incapaz de se interiorizar, voltar-se para dentro, trancafiando-se.  Era sempre alegre e “brincalhão”. Nos seus olhos estava inscrito com clareza: “Os homens têm muito o que aprender”. E ele como no fundo sabia o mistério deste mundo, procurou viver intensamente. No fundo, sofria com tanta podridão, tantos fingimentos, tantas mazelas, tantos defeitos e invejas. Não sabia fingir, ser arbitrário, ter despeito, inveja. E todos os seus irmãos, com exceção de uma irmã, são fingidos, arbitrários, vis, hipócritas, desejos de poder, rivalidades de poder econômico.  Um estranho no ninho, um estrangeiro. Nunca o amaram e, se gostaram dele, foi sentimento fingido, cumplicidade natal: saíram do mesmo útero. Este útero deu sua escapadela: gerou um homem. As crapulices lhe expulsaram do meio, o que lhe permitiu conservar-se inteiro. Um homem no meio dos crápulas não tem sobrevivência. A vida de um homem é sempre no mundo, às vezes não encontrando um teto ou um seio que lhe ampare e apóie.O útero esterilizou-se: não produz mais, não consegue mais nem a fantasia. A individualidade se torna singular. O mundo escancara suas portas: sempre das arbitrariedades. É viver em nome de um amor, de amar o que faz, seguir íntegro com todas as dificuldades. A individualidade não teve início no útero. A singularidade não teve mãe. O homem estará só. Seguira no mundo, sem mãe, sem família.
Heli Ferreira saiu de um útero, mas não teve mãe, não teve família. Só. E, apesar de não amado, estava sempre presente aos irmãos, queria sempre ajudar, devolver a paz e a amizade entre todos. Alguém disse no velório: “Ela está melhor que todos nós...” Sem dúvida, uma expressão de sensacionalismo, um lugar-comum que pretende significar um sentimento de perda, mas termina por serem palavras de superfície. Fisionomia alegre, contente, uma satisfação: “Amei, vivi, experimentei. Tudo o que há de importante. Era isso a minha existência. Terminou”. Dizia um adeus perene a todas as querelas, mazelas. Não foi amado por seus irmãos, nem mesmo será lembrado pela sua singularidade. Será: “Heli foi um louco”. A loucura tem tantos sentidos: os homens são conhecidos pelos crápulas como loucos. A loucura está em terem sido homens. “Heli foi um grande amigo”, disse uma pessoa exterior, “Não podia ver ninguém com problema. Vamos sentar. Vamos conversar”. Acredito nos sentimentos de pessoas exteriores. A família é sempre sensacionalista: diz frase de momento. Ejacula explicações.
Entro no velório. Olho ao redor. Digo a mim: “A cachorrada está reunida. Serão latidos sem impulsos de avanços, de mordidelas. A rivalidade dos latidos: “Vamos lá ver quem late mais alto”. Leio nas fisionomias: “Os loucos são muito próximos”, “Só podia ser de Heli de quem gosta”. Vontade de rir, gargalhar. Nada. Um muxoxo. Um dar de ombro silencioso.
Aproximo-me do caixão. Fico alguns instantes a olhar, sem querer aceitar este desenlace. Quem estava ao lado saiu: foi dar um passeiozinho, provavelmente um osso novo. Em pouco tempo, a sala quase fica vazia. Alguém chega: “Fala comigo, Heli. Não fique sério. Uma palavrinha apenas”. Aperta o seu queixo com o indicador: “Fala comigo. Não quer?!... Volto depois”. Sou observado. Sento-me. Uma série de lembranças, de recordações.
Em minha infância, ouvia falar de Heli Ferreira. Fora preso diversas vezes em casas de tolerância. Era alcoólatra. Chegava a beber aguardente com pimenta. Era completamente louco. Seus pais não tinha o menor amor por ele. Era preciso tomar juízo, ser homem de valor, cultivar os bons princípios, ter uma família e filhos, engendrar-se na sociedade. Heli Ferreira nada disso queria. Era livre: fazia o que bem queria, para a insatisfação de todos. Deserdou-se. Continuou sendo ele, vivendo por seu amor á vida, em harmonia com a sua liberdade, em sintonia com sua simplicidade e coração humano. Ninguém suportava mais as suas arbitrariedades. Foi expulso de casa. Não me lembra mais o motivo de sua expulsão. Se vou ao fundo de sua alma, sem querer saber de acontecimentos, não foram suas loucuras e personalidade contestadora e livre que o expulsaram de casa. Foi tão só por não ser amado por ninguém. Um homem jamais é aceite num ninho de hipocrisias e falsidades. Ademais, por ele conhecê-las tão bem, por não as aceitar. Nunca cidade interiorana, nos idos anos de ´30, onde toda uma tradição imperava, um convencionalismo fazia-se presente, os dogmas religiosos sustentavam as falcatruas, um homem como Heli Ferreira não podia ser aceite. A família encontrava-se justificada em tudo, apoiada em tudo. Filho de família pobre, quase miserável de todo. Os irmãos contestariam a pobreza, empreendo-se no jogo da luta pelo poder, luta essa em que tudo se torna válido, tudo é justificado. Quis Heli Ferreira conservar a sua gênese simples, a sua índole pobre. Talvez por intuir a luta pelo poder aniquila a essência humana. Mas isso é intelectual para ele. Quis apenas continuar sendo homem, conservar o seu coração e alma. Foi expulso. Foi namorado de uma de minhas tias, Maria da Conceição, com quem sempre morei. Esse namoro não poderia ir em frente, não haveria um sentimento capaz de sustentar-lhe. Minha tia era descendente de inglês: a presença da convenção é enorme. Aliás, Maria corria de Heli Ferreira. Tinha medo dele. Não de suas loucuras, mas de perder as suas convenções e tradições, entrar na existência, torná-la amor, ausência de preconceitos. Heli Ferreira não era aceite por ninguém. Quem ousa ser o que é, pautar a sua existência a partir de sua gênese simples e pobre, conservar o seu “eu”, embora as tempestades e ventos de holocausto, jamais pode ser aceite por aqueles que se engendram no mundo. A sua alegria era justificável: o mundo não conseguiu deteriorar o homem Heli Ferreira. Soube lutar por sua conservação, apesar de todos os sofrimentos e necessidades pessoais. Não sei bem se Maria foi antes ou depois de Geralda. Conheceu-a. Apaixonou-se. Amou-a por toda a vida. Não sei porque não se casaram. Casou-se ele com outra. Foram embora para São Paulo.
Ouvia falar deste homem. Achava bem interessante a sua história. Era diferente de todos os que eu conhecia. Ademais, era algo novo para mim. Estava sendo criado no seio de família tradicional. Não tinha acesso ao mundo. Só conhecia estes homens através do cinema ou da literatura. Heli Ferreira era real. Não foi por isso que comecei a amá-lo tanto. Parece-me, hoje, uma intersubjetividade: não somos iguais – a cultura dispersou o meu “eu”, encaminhou-me para um outro de mim -, mas nossas visões do mundo permanecem inalteráveis. Mais simplesmente: havia um homem igual a mim no mundo: sabia amar, ansiava por um mundo diferente. Se não houvéssemos sido parentes, tio e sobrinho, não ficaríamos sem conhecer um ao outro, teríamos sido grandes amigos. Outra coisa: não fui expulso de minha família, fui rejeitado. A família de Heli Ferreira foi o mundo. A minha seria outra: e nesta outra iria encaminhar-me para a cultura, tornar-me intelectual. Creio eu, mesmo não possuindo esta capacidade de escrever, hoje escreveria ao menos uma linha para ele: “Heli foi meu amigo. Gostei dele. Perdi alguém muito querido.” Tenho capacidade de escrever, faço-lhe esta homenagem. E, assim, jamais irá desaparecer de minha memória.
Olho o seu rosto. Não há uma mudança sequer. Não há o mínimo vestígio de dor, angústia, tristeza, desconsolo. A mesma alegria, como se houvesse tido os maiores prazeres no mundo, não houvesse passado por nenhuma dificuldade na existência. O mesmo semblante contemplativo, como se houvesse desfrutado só de bem-estar e tranqüilidade. Mas quem me autoriza dizer que não foi feliz, contente, alegre, tranqüilo? No fundo de sua alma, sei bem que o foi. Fez tudo em nome de seu amor pela existência. Conservou-se inteiro e íntegro. Não há sequer resquício de quem se perdeu nos deslumbramentos da carne. Não parece um morto. Procuro ouvir-lhe a voz, mas não é possível a mim. Parece-me estar imenso arraigado à contingência, a linguagem não pode separar-se de mim. Heli Ferreira já não mais necessita de palavras, de explicações, de justificativas. Sou eu mesmo quem não necessita mais de sua voz, de suas explicações: no mundo, estivemos juntos o suficiente para que se instalasse em minha alma. Nada mais nos separa. É só sentir a sua ausência. Empreender-me no mundo. “Manoel, a vida é para ser aproveitada e sentida. Não temos outra”, dissera-me num de nossos encontros.
Não suporto mais tanta angústia. Cruzo os braços em cima do caixão. Choro. A princípio, um choro contido e comedido. Jamais chorei em velório. Ninguém jamais me viu chorar. Os parentes todos estão presentes. Presenciarão o meu choro. “Todos os homens têm o seu momento. Agora é a sua vez. Não iria ficar imune”. Desvencilho-me. Choro mesmo. A mão direita a sua testa. Um alisar afetuoso e carinhoso. São apenas sentimentos: muitas vezes, um choro num velório é apenas a indagação da própria morte, uma simulação de dor. Não. Meu choro não é de indagação de minha morte, uma simulação de dor. Amei este homem. Apesar de a dor da perda ser a base de meu choro, sinto calma no âmago de mim, como se ele estivesse dizendo para não chorar, a morte sua não irá nos separar.
Dizem que a alma de um falecido fica a deambular por entre os presentes. Não sei desta veracidade: o que demonstra isto? Talvez seja um cientificismo. Mas sinto a sua presença. Um choro vai mostrando o seu distanciamento: a dor é muita, não há mais lágrimas. Não. A dor é muita. Para de chorar. Assuo o nariz no lenço. Permaneço alisando a sua testa. Uma de suas irmãs aproxima-se: “Não é bom ficar alisando a testa. Vai ferir. A pele vai ficando muito fina”. Finjo não ter ouvido. Repete com quase as mesmas palavras. O sabe sobe. “Faço o que eu bem quiser”. Sua outra irmã interfere: “Deixa ele. Não se meta”. Saem todos de perto. Continuo alisando a sua testa.
Chega a Curvelo, após longos anos de ausência. Diz logo querer conhecer a mim. “Quero conhecer o Manoelzinho”. Somos apresentados um ao outro. Antes de conhecermos uma pessoa, ouvindo comentários a seu respeito, formamos uma imagem. Formei de Heli Ferreira. Um amigo: desfocava suas atenções só para mim, compreender-me-ia, não me faria censuras. Um homem bom. Não me enganei. Assusto-me como fui tão fundo neste homem. Assusta-me ter-lhe conhecido tanto. É bem difícil dizer que ele é, quem ele era. Uma alegria enorme por estar me conhecendo. Uma grande satisfação por estar realizando o seu desejo: conhecer o sobrinho tanto esperou fazê-lo. Não mais me afasto dele. Sigo todos os seus passos. Onde está, estou eu junto. Conta-me a história de sua vida. Um verdadeiro contador de histórias. Sotaque paulistano. Em São Paulo, como dizia, era chamado de “mineiro” ou “mineirinho”. Em Minas Gerais, em sua terra-natal, junto com os irmãos, é chamado de “Paulista”. Os bons princípios mineiros: tradição, convenção, hospitalidade, amor, solidariedade nunca são esquecidos seja em qual Estado for. O paulistano é conhecido por seu materialismo, indiferença, frieza e calculismo.
Esperavam todos os seus irmãos Heli Ferreira se voltasse para a busca do poder, o interesse pelo econômico. Uma alma como a sua jamais o faria. O “mineiro” não era paulista. O paulista não achava instalação em Minas. Não fazia parte de lugar algum. Não foi maculado pelas exigências. O seu mundo era a sua alma, simplicidade, origem pobre. Pautou a sua existência. Jamais se afastou destas três coisas fundamentais, as que iriam cada vez mais tornar-lhe homem.
Andamos por todos os lados juntos. Fomos para a “roça” de Antônio de Amparo. Se olhava para ele profundamente, sentia algo só hoje consigo compreender: amava a natureza, o seu silêncio. Uma das manifestações deste seu amor é que adorava passarinhos. O de sua preferência era o “chapinha”. Em sua volta a São Paulo, levou várias espécies. O canto dos pássaros era a sua manifestação de constante alegria, de amor, de no fundo ser homem tranqüilo e calmo. Jamais foi esfomeado de materialidades.
Tornei-me seu amigo inseparável. Era amigo em todos os sentidos. Sempre me senti como se nós dois houvéssemos de ser amigos, tínhamos de conviver juntos no mesmo século, não houvéssemos sido parentes, seríamos amigos. Fomos parentes, mas os laços de amizade obscureceram o parentesco, anularam a familiaridade. Amigos. Foi expulso de sua família: pertencia ao mundo. Fui rejeitado pela família: pertenço ao mundo. Assim, qualquer laço de familiaridade é extinto. E assim pudemos ser amigos inseparáveis. E, hoje, sinto que Heli Ferreira estivesse apenas esperando o momento de eu me encontrar, de achar a minha tranqüilidade e calma, de estar preparado para o mundo... Esperava isto para ir embora. O único sobrinho a quem amou como a um filho. O único homem a que desejei sempre o melhor. Lembra-me de chamar-lhe tio Heli. Disse-me: “Chame de Heli. Não sou como os outros”. Chamava-lhe Heli. Não somos apenas parentes. Somos amigos. Mesmo hoje não o vejo como um tio. Vejo-lhe como amigo: amigo de trinta e um anos. O único que esteve ao meu lado, junto comigo por toda a minha existência. Uma criança tem seus coleguinhas, que, às vezes, tornam-se amigos pela vida a fora. Mais das vezes, separam-se. O homem fica á procura de um amigo inseparável. Com todas as impossibilidades, casa-se à procura da companheira inseparável. Encontra alguns amigos, muitos descartáveis, são apenas frutos de momentos e circunstâncias. Tive um amigo desde o meu nascimento. O adulto encontrou outros amigos inseparáveis. O que é a vida!?... O meu primeiro amigo. O primeiro que morre. Minha avó era minha amiga, mas era da família: era minha avó[2]. Que dor dilacerante!...
Foi embora para São Paulo. Foi difícil a sua ausência. Se bem me lembra, foi quase um mês de convivência diária e quotidiana. Meu desejo era ir embora para São Paulo junto com ele. Prometeu-me levar um dia em sua casa para passear. Iria gostar muito. Chorei no instante da partida. E sabia que esse pouco tempo de convivência jamais iria desaparecer. Sempre grandes amigos.
Em 1975, quando abandonei o curso de contabilidade por um mês, Heli Ferreira foi um dos que chegou perto de mim e disse: “Meu filho, não pare de estudar. Termine este curso. Sem estudo, ninguém é coisa alguma”. Voltei. Hoje, posso dizer: “Voltei ao curso de contabilidade porque Heli me pediu”. Queria apenas seguir o magistério. Fazia também o Normal neste mesmo ano. E ainda este ano, na noite de 24 para 25 de dezembro, estive preso. Saí da cadeia ao meio dia. Era o dia de minha formatura no curso de contabilidade. Heli me disse: “Meu filho, esqueça que foi preso. Isso acontece. Faça por onde jamais seja preso de novo”. Não o fui mais.
Em 1973, sua mãe morreu. Veio para o seu enterro. Chorou muito, mas não perdeu suas esperanças. Conversamos muito. Contava-me histórias.
Lembra-me agora de umas palavras de minha mãe, no concernente a mim: “Vasco agora está vendo Manoelzinho de outra forma”. Foram ditas ano passado, quando após quinze anos, procurei aproximar-me dele, de toda família[3]. Heli dizia, e era um de seus desejos houvesse a reconciliação entre mim e o Vasco: “Ele é seu pai. Queira ou não. Faça as pazes com ele”. Dizia apenas. Não insistia. Convivi com a família apenas três meses. Com o Vasco, não levou dois. Não sei se Heli veio a saber disso. Se soube, deve ter ficado muito satisfeito. Contava-me Heli Ferreira que tomou conta do Vasco na sua infância. Eu criei meu irmão Giuliano até a idade de três anos. Hoje, tomo conta dele, participando de seus estudos, querendo a sua realização. É o único irmão a quem amo. Jamais tive uma briga com ele. Nunca me afastei.
Não faz três anos, Heli ficou desesperado. Seu filho, Tôto, como é chamado, envolveu-se na marginalidade, roubo, droga... Heli procurou seus dois irmãos advogados, a fim de tirar o seu filho da prisão. Nada fizeram. Nem sei como o Tôto foi libertado.
O que justifica este choro? Por que todos estes sentimentos? Seus irmãos nunca gostaram dele. Nada fizeram por ele. Como pode haver tanto sentimento fingido, tanta hipocrisia!... Ana Pedra sim, esta gostava muito dele. É a única que não está chorando. Tenho vontade de lhes dizer: “Por que choram? Heli nunca significou nada para vocês”[4]
Seu irmão Enock morreu de câncer. Não viveu muito, mas deu algum trabalho para os irmãos. Quatro meses. Heli adoeceu faz quis dias. Morreu. Nada por ele fizeram em vida. Não queria dar trabalho para ninguém.
Após a morte de sua mãe, ficou sabendo que a Geralda estava viúva. Era a sua oportunidade de se reaproximar, tentar resgatar aquele grande amor, recuperar a vida havia sonhado ao lado dela, sentir a felicidade sempre desejou.  Havia adquirido a sua maduricidade com muitos sofrimentos e desgostos, era muito experiente, conseguiu formar em si mesmo um homem estabelecido em sua realidade. Amou-a sempre, mas na juventude tinha os seus arroubos sentimentos, ilusões pairavam em seu coração e mente. Aquele amor necessitava de experiências de ambas as partes. Reclamava por ausência de ilusões, de fantasias. Reivindicava uma alma que houvesse resistido a todas as experiências, a todas as angústias, dores, sofrimentos. Este amor reivindicava o amor maduro. Ambos adquiriram o que era necessário para o convívio. Não foram as suas atitudes, a recusa de todos em aceitar este enlace, a censuras familiares o que impediu este enlace. O amor deles não estava inscrito na sociedade dos homens. Estava registrado no coração humano: neste não há princípios, normas, valores jurídicos e religiosos. Não tem limites: o ilimite transcende as antípodas do universo. Reaproximou-se, a fim de sentir se o tempo, este que tudo transforma e transmuda, não havia modificado este amor, se não tornou apenas cinzas. Continuou inscrito na alma de cada um. Sofreu mudanças e transformações suficientes para o amadurecimento, o real. A sua gênese permanecia intacta, lá no mais fundo âmago, e só quem ama no ardor e calor é capaz de reconhecer a sua gênese, gênese esta nada é capaz de extinguir. Amor o mundo uniu e nem o diabo é capaz de separar. De sua primeira mulher, jamais gostou. Amou os filhos como só ele sabia amar: diferentemente, no ardor de seu humanismo, sem reclamar nada para si, sem a terrível possessão e censura, sem a preocupação de lhes instalar no mundo, ausente de qualquer exigência. Não mereceram o pai que tiveram. Desajustaram-se por haverem se inscrito no mundo, entraram na roda-viva das falcatruas e interesses, de uma sociedade há muito no fundo do abismo. Heli Ferreira permaneceu intacto. Jamais foi feliz ao lado de sua primeira mulher. Talvez tenha se casado apenas para suportar um pouco as dores da solidão, sentir-se um pouco responsável, ter um lar e teto onde esconder e deitar a sua cabeça tão repleta dos sofrimentos e angústias. Mas este amor pela Geralda reclamava mesmo por uma experiência conjugal anterior. Sentiu nada haver sido extinto. Amavam-se. Voltou a São Paulo apenas para apanhar os seus pertences, receber o seu salário. Abandonou a mulher e os filhos. Veio morar com a Geralda. Atitude esta que recebeu a crítica de todos. Inclusive eu lhe disse: “Você é um irresponsável, Heli. Largar a sua família para morar com outra mulher. E os seus deveres com os filhos. Não admito esta sua atitude”. “Você me dizendo isto, meu filho! Nem acredito”. Foram as suas palavras. Em verdade, penso mesmo o pai deve se responsabilizar pelos filhos, dar-lhes educação e amor, instruir-lhes para o mundo. Se houve filhos, a responsabilidade deve estar sempre presente. Em termos de Heli Ferreira, estava eu apenas repetindo palavras da família. Concordei com a atitude dele: se não gostava de sua mulher, se o seu amor era por outra, nada justificava continuar ao lado de que não amava. Não  estava censurando: foi o modo que encontrei para criticar os meus pais que me abandonaram[5].
Duas horas da tarde, saio de perto do caixão. Aproximo-me de sua irmã, a que me defendeu: “Quero que me perdoe pelas minhas palavras”. “Eu não disse nada”. “Sei disso. Defendeu-me. Inveja é um problema muito sério”. Procurei dar dois sentidos ao termo “inveja”. Jamais faria por ela o que estava fazendo por Heli, nunca a amei e gostei dela. E ela também não está mais em posse de suas faculdades mentais. Foi internada duas vezes na “pinel”, por problema de desajuste emocional e alcoolismo crônico. A sua irmã olhou-me bem, compreendendo o que estava eu a significar. “Não precisa se desculpar. Compreendo”. “Estou chegando de viagem. Vou a casa tomar banho, almoçar”. “Você vai voltar? Fique mais com o Heli”. “Volto. É só o tempo de tomar banho e almoçar”. Fui saindo.
Voltei. Continuei sentado ao seu lado. Uma senhora aproximou-se: “Seu pai?!...” Disse não com a cabeça. “Tio...” Disse sim com a cabeça. “Tento lembrar de quem você é filho”. Nada digo. Insiste: “De quem você é filho”. Balanço a cabeça em sinal de mão. Saiu. Talvez tenha procurado saber de alguém, contando o que se sucedeu. Talvez tenha ficado sabendo, não gosto de ouvir dizer, nem de falar. A inimizade entre nós está mais do que selada e registrada no cartório da eternidade. Estive no enterro de sua mãe, mas nada senti. Estive no enterro de Enock. Foi-me indiferente. E não estarei mais noutro enterro desta família. Só amei ao Heli. Só ele existiu para mim. Outros chegaram e me cumprimentaram. Senti a veracidade de todos os cumprimentos.
Em 1979, fui fazer-lhe uma visita em Cordisburgo. Tratou-me de modo hospitaleiro e gentil. Nunca me senti tão bem. Apresentou-me a todos os seus amigos. Era querido por todos. Sempre muito alegre e “brincalhão”. Não perdeu a sua característica de contador de histórias. Doeu muito ver-lhe morando em uma casa tão pobre. Mas sabia estar ali a felicidade. E todos os seus irmãos moram muito bem: em casas luxuosas. Heli nunca teve vergonha disso. Interessava-lhe a felicidade. Doeu muito lhe haver dito acerca de sua família. Era um muito querido por mim. Voltei para Belo Horizonte. Estava triste. Ele vendia pipocas em porta de barraquinhas, festas juninas, nas praças, para ter um pouco com que sobreviver. Giuliano me disse: “Muitas vezes eu levantei e fui em seu carrinho comer pipoca fria. E ele ficava todo satisfeito. Não tem outro tio igual a ele”. “Concordo, Giuliano...”. No fundo, Giuliano queria dizer: “Do mesmo modo que você gosta de Heli, eu gosto de você”. Muitas vezes quis voltar em sua casa, mas nunca aconteceu. Lá no âmago de minha alma, sentia a sua ausência, lembrava-me sempre dele. Faz uns seis meses, encontrei-me com ele na avenida D. Pedro II, em Curvelo. “Tudo bem, Heli?...” “Tudo bom. Você não quis mais aparecer lá em casa. Vá lá um dia. A Geralda gosta muito de você. Não sou igual a seus outros tios. Sou diferente”. “Sei disso, Heli... Você nunca foi igual a ninguém... Sabe o quanto gosto de você!...” “Vá lá em casa”. “Surgindo uma oportunidade, irei sim”. Despedimo-nos. Não mais me encontrei com ele. Faz uns dois meses pensei em ir a casa dele, a fim de dizer-lhe estou muito bem, acho-me um pouco  encontrado em mim. Iria ficar imensamente satisfeito com isso. Queria também lhe contar os meus conflitos com uma namorada. Queria pedir-lhe conselhos. Só ele poderia me dizer o que fazer. E não fui. Não sei se ele soube por alguém dos meus conflitos emocionais. Talvez houvesse intuído. Acredito sabia: o amor constrói a comunicação entre as almas. Queria tanto lhe dizer: “Estou bem agora, Heli...”. Não haverá mais oportunidade. Ficamos separados mais de nove anos. O que nos terá separado? O remorso de lhe haver censurado? A cultura que tanto me afastou da simplicidade? Por eu não querer me revelar para os familiares? – mostrar o meu amor por ele significava mostrar quem eu sou: um homem que ama a existência, faz tudo em nome deste amor; se ama alguém, ama mesmo. No fundo, sou um coração bem simples. Será que o nosso encontro seria apenas até o final de minha adolescência? A partir daí, eu seguiria os meus próprios caminhos? Será que toda a nossa amizade teria de haver uma separação para se tornar eterna? E por que logo agora no final de meu trigésimo aniversário? Nada é capaz de uma explicação peremptória. Todas as justificativas são passíveis de questionamento. Algo parece fundamentar: estou-me desfazendo de todos os meus símbolos, as coisas parecem tomar caráter real: continua apenas o amor. É tempo de repensar a minha realidade. É tempo de repensar o amor. Heli Ferreira foi um símbolo, um ícone. O amor superou o símbolo. O homem tornou-se uma presença-ausente. E esta jamais se extingue. As suas marcas prevalecerão como uma realidade em mim: são realidades. O difícil é estar frente a frente comigo mesmo. E a dor de uma perda é sempre o corpo na natureza solitária. Esta perda nem mesmo os milênios, caso me fosse possível a eternidade, iriam conseguir extirpar. A sua presença estende-se lentamente pelo infinito como uma névoa sonora. Sei-o bem, no instante em que estou imortalizando este grande homem, através deste escrito, procuro desvencilhar-me da dor que me percorre por inteiro, busco transcender-me o bastante para entender e sentir o âmago deste homem. A dor permanecerá, sofrendo apenas as metamorfoses do tempo, tornando este amor cada vez mais maduro, real, sem o grande sofrimento da perda. Tornando real, gerando os seus frutos, realizando-me, será a minha vez de partir. Tenho ainda muitas estradas a percorrer. Na Literatura, estou imortalizando este homem, mostrando a todos quem ele foi. Não tenho preocupações em escrever literatura. Descrevo um homem. Lanço o amor que tanto nos uniu[6].
Há um problema a ser resolvido. A maioria dos parentes e da opinião que é necessário esperar os filhos que moram em São Paulo. O médico já avisou o cadáver começará a ter odores fétidos. Um embalsamento é bem expressivo. Ninguém quer tirar esta quantia de seu bolso. Por mim, deveria enterrar, sem esperar os filhos. Ninguém jamais escreveu uma só linha para ele, jamais procurou saber notícias suas. Por que esperar? Apenas por um princípio familiar? Não tem sentido. Alguém me pergunta: “O que você acha? Deveria ou não?”. Digo: “Não. Não imponho o que sinto e penso. Caso o faça, irão todos se voltar contra mim[7] . Ademais, penso eu todos já conhecerem o meu pensamento: a família é uma desgraça”. Estaria, para todos, sendo coerente com o meu pensamento. E não é por coerência. É por não querer sentir o odor fétido de seu cadáver. Foi homem de grande importância para mim – difícil sentir o odor fétido de alguém a quem amo, a quem nunca deixarei de amar. A quem iria conseguir convencer? A ninguém. Fomos muito unidos e todos têm inveja. Não aceitariam a minha intervenção por picardia, por reumatismos sociais e religiosos. Os primeiros indícios de odor fétido começam. Mas todos querem, pela última vez, dar o castigo a Heli por não ter imbricado nos bons princípios sociais, ter sido homem de coração puro, de alma ingênua e inocente, por haver amado a existência acima de tudo. “Escolheu a miséria. O corpo deverá começar a sua deterioração. A miséria está posta”. Por mais de uma vez, penso comigo: “Até nesse momento tem confusão com Heli Ferreira. As opiniões se dividem. Até nesse momento é rejeitado. Ninguém ficou ao seu lado por hora seguida”. Uma de suas irmãs, a que me defendeu: “Por mim, seria enterrado. Não posso dizer nada. Ponho um esparadrapo na boca. O que você acha?”. “Deveria enterrar. Será que ele iria gostar disso? Creio que não”. “Não iria gostar...”
Hora da missa. Saio. Fico andando no passeio de um lado para outro. Espero o final da missa. Não chegando pessoas. Todos me cumprimentam. Márcia, minha irmã, chega com o seu marido. Cumprimenta-me. Entra. A missa termina. Entro. Márcia chora muito. Passo o braço em seu pescoço. Acaricio a sua testa. Nada digo.
Cinco horas. O caixão será levado para o necrotério do cemitério. Não será enterrado, enquanto os filhos não chegarem. Aproximo-me. O canalha vai buscar a tampa do caixão. Olho o rosto de Heli pela última vez. Em minha alma, digo-lhe: “Adeus, Heli Ferreira. Até à eternidade. Perdoe-me por haver me afastado todos esses anos. Mas nunca me esqueci de você. Sempre o amei”. Ajudo a apertar os parafusos. Tomo de uma alça com a mão esquerda. A direita aperta os olhos. Muito pesado. Pessoas vão revezando comigo. Sou eu o único quem mais carrega o seu caixão. E sempre com a mão esquerda.
Chego ao cemitério. Colocamos o caixão sobre a pedra do necrotério. Saio. Vou até a sepultura da família. Encontro-me com Giuliano. “De quem são aqueles ossos no saco plástico”. “De Enock...” “Já...”. Giuliano olha-me como a me interrogar: “Perdeu a noção de tempo? Nada respondo. Não me lembro quando ele morreu. Por haver só ossos, pedaços de roupa, cabelo e meia deve haver mais de cinco anos”
Saio. Fico a deambular pelo cemitério. Aproximo-me de Giuliano: “Onde você deixou as minhas malas, Giuliano”. “Na cara de Yara...” “Nossa... Logo lá... Poderia  ir lá comigo. Apanha minhas malas, Não entraria em casa dela”. “Prometo a você levo em sua casa até sete e meia. Tenho palavra”. “Sei disso...” Decido não ficar mais. Entro no necrotério. Aproximo-me do caixão. Com a mão direita aperto o seu braço esquerdo como quem diz: “Vejo você mais tarde”. Viro as costas. Vou saindo. Giuliano se encontra na porta, conversando com Tuca. Digo: “Até mais, Giuliano...”. Saio do cemitério.
Decido passar em casa em Yara, a fim de apanhar as minhas malas. Por todo caminho, penso comigo mesmo: “O meu primeiro amigo!... Acabo de perder um homem a quem sempre amei. Por não haver me aproximado de ninguém, por haver ficado sempre ficado ao seu lado, serei comentado por todos. Sem dúvida, um modo de lhes dizer: “Só amei a ele e amo. Vocês nunca tiveram o mínimo valor para mim. Nunca senti nada por vocês.. O único amigo dele fui eu. E o único que não se afastou do caixão desde o instante em que chegou de viagem”. (...) Chego a casa de Yara. Bato palmas. O seu marido aparece. “Giuliano deixou as minhas malas aqui”. “Vou buscar. Entre, Manoel”. “Muito obrigado...”. Busca as malas. Entrega-mas. “Obrigado...”. “É cedo ainda. Vamos entrar”. Boa noite...” Vou embora.
Tomo banho, janto. Saio. Decido ir até a casa de Giuliano. Encontro-lhe chorando: “Por que está chorando?” “Nada”. “Ninguém chora por nada. É pelo Heli?”. “É...” Uma resposta ambígua: é por Heli, mas também por me ter visto ao lado dele. Tem medo de me perder. Sou o irmão a quem sempre amou. Certa vez, quando lhe perguntei: “E se eu morrer, o que irá fazer?” “Sumo no mundo”. Ficamos conversando a respeito de Heli. Despeço-me, dizendo-lhe: “Procure dormir direito, Giuliano...”. “Você também...”.  




[1] Jamais pensei fosse algum dia publicar este texto escrito em homenagem ao tio Heli Ferreira por ocasião de seu falecimento, ficaria na agenda. Vinte e dois anos exatamente. Após escrito, não o li integralmente, apenas algumas partes. Publicar um texto após tantos anos de sua concepção é, em verdade, responsabilidade enorme. Corre-se o risco de não respeitar a sua linguagem e estilo, transformá-lo no estilo e linguagem da atualidade. Contudo, publico-o na íntegra apenas tirando algumas “gordurinhas”. O leitor, através dele, vai observar muitas diferenças, uma delas é a divisão de palavras, ainda não havia despertado para isto. O interesse não é este de mostrá-las: sim o de prestar esta homenagem ao tio mais querido e amado. Aquando li o texto do amigo Marcos Antônio Alvarenga, o epitáfio que escrevera para o seu amigo Saulo, li algumas passagens deste para Heli Ferreira. Poderia até publicá-lo mais tarde, mas era necessário revisar. Deixei de lado esta idéia. Decido, agora, sem fazer revisão sistemática.  
[2] Não me refiro aqui a Alda Simões, mãe de Heli Ferreira, a quem jamais chamei de vovó, por quem nunca tive o menor sentimento; refiro-me a vovó Alzira Winders de Almeida, a quem sempre amei e por quem fui criado até a idade de oito anos, juntamente com Dinha, Maria Amélia, Maria Laurentina, Maria da Conceição.
[3] Só mesmo me aproximei de tia Safia, a outra tia por quem sempre tive sentimentos reais e afetivos
[4] No dia do enterro de Tuca, minha mãe biológica, sentado numa sepultura ao lado da que nela seria enterrada, vi o Vasco chorando, tive vontade de lhe dizer: “Deixe de ser hipócrita, Vasco!... Você bateu nela a vida inteira, agora vem chorar aqui. Imbecil”. Não o fiz, contudo. Não me envolvo com os canalhas, não me dirijo a eles. Tanto no velório dela, quanto no enterro, não derramei única lágrima, ela era minha mãe biológica, Dinha era minha verdadeira mãe. Também não me aproximei de nenhum dos sobrinhos, com exceção de Ricardo, dos irmãos. Por que faria isto? Nunca tive relações com ninguém deles. A hipocrisia não tem qualquer acolhida na minha alma.
[5] Há três linhas finais deste parágrafo que omito; já sujei e muito estas páginas declinando o nome do canalha.
[6] Em junho de 2007, quando tive o meu enfarto – Heli Ferreira morreu de enfarto aos cinqüenta e nove anos -, disse a Marize, minha mulher, no táxi que me levava ao hospital: “Estou me lembrando de meu tio Heli Ferreira. Ele morreu quando eu iria completar trinta e um anos. Estou tendo um enfarto quando estão faltando poucos dias para completar cinqüenta e um anos”
[7] Dinha morreu de câncer no estômago, aos 06 abril de 1996, Sábado de Aleluia. Nesta época residia em Belo Horizonte com a primeira mulher e o primogênito Sacha Lucien, estando ela grávida do segundo, Kayros Christian.  Morávamos na periferia da cidade. Amanda Almeida telefonou várias vezes para o curso onde lecionava Inglês. Não souberam informar onde morava. No outro dia, por volta do meio-dia, saí com a mulher e filho para um passeio, ligando para o compadre Paulo César, quem me informou de sua morte, havia já sido enterrada. Não pude vê-la – Deus sabe o que faz, visse-a, não conseguiria superar as dores de sua perda. No velório de Tuca, tirei algumas fotografias dela no esquife. Os irmãos se revoltaram comigo: todos queriam guardar a memória dela viva, eu tirava foto dela morta. Até um cretino e imbecil que não é da família, um amigo, veio dizer-me que estava errado, era falta de respeito à sua memória. Disse-lhe com todas as letras: “Fique no seu lugar. Você não é da família. Para mim, você não é nada”. Ao contrário de Rane Ferreira quem me dissera com todas as letras: “você tem direito disso”. 

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