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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

IDÉIAS ÍNTIMAS DE CRIATURA - Manoel Ferreira Neto



Por mais vasculhe a consciência – tornou-se hábito irreversível de minha parte -, não consigo encontrar único pecado que mereça remorso, seja motivo para ajoelhar-me aos pés do padre, confessar-me, sem esconder a mínima contrição. Não furtei, não menti, não caluniei, não blasfemei, não joguei pedra na cruz, não cuspi nela, não ofendi pessoa nenhuma. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isto mesmo antes de haver aprendido maneiras, etiquetas, princípios da cidade e de saber o destino do verdadeiro jegue de estirpe e laia, que é apanhar e calar. Alguém dissera que o homem nasce puro, a sociedade é que corrompe. Digo, inspirado, e não apenas plagiando, que os jegues nascem broncos, a sociedade dos homens educa.
Confesso que zurrei algumas vezes, parado à porta da Câmara, ouvindo os discursos empolados; quantas palavras difíceis de mastigar, nem ração de primeira qualidade custava tanto, quantas idéias esplendorosas, pena que ineficazes a quem as dizia, não tinha inteligência para real-izá-las a rigor – inteligível, discursos foram feitos para impressionar os ouvintes, fazerem-lhes cair o queixo, esbugalhar os olhos, colocar um palmo de língua fora da boca, ofegar, nunca para serem concretizados, para mudarem o destino do mundo. Quanto a esses zurros, usei deles como linguagem, sem efusões de interesses, ideologias, simples zurros. Ultimamente, depois de zurrar pelos quatro cantos da cidade, assistindo de carroça todas as qualidades de manifestações da raça humana – não há na face da terra outro ser mais ridículo e hipócrita! Santo Deus de Misericórdia! Fosse eu Deus, passaria o resto da eternidade lamentando haver criado o homem, sentindo-me alegre e satisfeito, real-izado mesmo por haver criado os bichos, aves, todo o resto dos seres vivos, especialmente jegues, burros, jumentos, mulas, asnos, minha criação suprema, diga de todos os louvores e reverências -, é que percebi não adiantava zurrar, jamais serei entendido, mas continuo zurrando por ser costume, hábito, mania velha, não com a idéia de agravar a raça humana, mais fácil passar no buraco da agulha sem encostar único pelo nas suas extremidades que agravar-lhes, fazer-lhes sentir ridículos e idiotas com as prepotências da estirpe, com os orgulhos da laia, com as falácias da língua...
Nunca dei com homem no chão. Jamais pisoteei ninguém. Lancei alguns bem longe, mas por legítima defesa, meteram-se a engraçadinhos comigo, enfiando-me a espora sem dó nem piedade: “vá enfiar a espora no raio que parta”. Não mais quiseram montar-me, aprenderam a lição. O cavalo é que é trouxa, aceita como se fosse a coisa mais natural. Por mais imbecis que aos olhos humanos somos nós os jegues, posso garantir que trouxas não somos. Mesmo que exceções hajam, há muitas, afianço que eu não sou, nenhum homem faz de mim gatos e sapatos, a res-posta é dada a rigor. Ora essa!
Passando à ordem mais elevada das ações e atitudes, não encontro em mim a menor lembrança de haver pensado na perturbação da paz pública, na revolta contra os políticos canalhas, corruptos, safados, desonestos, aos militares autoritários, ditadores. Fosse assim, entraria na Câmara e distribuiria coices por todos os lados; o povo na rua outra coisa não diria senão que chovia política das janelas. Além de ser a minha índole ad-versa a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos e deveres do jegue, tais direitos não existem. Nenhum golpe  de Estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os abrigou. Presidente já afirmou preferir cheio de cavalo a cheiro de povo. Cavalo já foi Senador em Roma. Quanto aos jegues, nada. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma ou sistema de governo, tiveram em conta os interesses de minha espécie. Somos a ralé do reino animal. Qualquer que seja o regímen, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima, que é, em última instância, o meu único defeito, embora hoje tenha ouvido um fazendeiro, aqui na Praça do Mercado Municipal, dizer ao Paulus Contrim que seu jegue de estimação não tinha qualquer defeito, dez anos que o tem, jamais em tempo algum teimou, empacou, sempre dócil, um verdadeiro jegue. Pensei até que Paulus Contrim fosse querer comprá-lo para viajar pelas redondezas em suas campanhas políticas. Quando não teimo, mordo o freio, dando assim lindíssimo e esplendoroso exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis, por chuvas, por raios e trovões, por calor ou frio, é só sentir o chicote na carne para sair, não em disparada, não faz meu gênero, em passos comedidos, de preferência imitando os marchadores.
Bem, até o presente momento de minhas re-flexões, os males que não pratiquei, nem ao menos passaram no meu instinto. Sou um jegue de brio. No reino humano, é comum dizer que em todo canalha há um santo embutido, em todo santo há um canalha enrustido, com a devida licença de mudança das palavras. Não sou santo, não sou canalha, sou jegue, satisfeito e orgulhoso de minha espécie.
Vejamos os bens que pratiquei no mundo desde que fui parido.
A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando o meu dono depressa á casa da namorada, da amante. Não poucos devedores tirei conduzido para bem longe de um credor inoportuno e intragável, correndo o risco de quebrar alguma pata, devido à quantidade de buracos nalgumas ruas, não da periferia da cidade, no centro mesmo – isto no passado, porque hoje as ruas estão todas asfaltadas, impera a limpeza, a higiene, os vira-latas é que estão sendo morrendo a roldão, de fome. Ensinei filosofia a muita gente, não a do ser e do não-ser que já está mais do que surrada, tem cor de burro fugido, filosofia séria, verdadeira, que consiste na gravidade do porte e não quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, sempre fui em auxílio dele, deixando que me desse tapas e punhadas na cara.
Em regra, só devia ouvir carroceiro cantando músicas sertanejas, mas o meu só canta músicas em Inglês, profundo conhecedor desse idioma; há algumas baladas que realmente aprecio; há quando ele, rindo, com o cigarro no canto da boca, diz: “Você gosta dessa música não é? Parece que até dança”. Perdi o rebolado e tropecei em pedra. Mas nunca se meteu a dar-me ordens em inglês, em português caipira mesmo, o único que entendo: “Vamo, jegue! Pé na estrada”, “Seu jegue estúpido, anda logo”. Também se usasse de fina educação, seria caçoado pelos transeuntes: “Por gentileza, Nullus, apresse-se! Os clientes aguardam o frete com urgência”, fazendo-me promessas: “Se andar depressa, prometo aquele feno viçoso!”, agradecendo-me: “Muitíssimo obrigado, Nullus! Você nem parece ser jegue de tão atencioso que é!”.
Fosse-me dado um segundo de fala, não perderia tempo com picuinhas, perguntaria de imediato ao homem: “Por que se não investigaria mais profundamente o moral do jegue?”. Mesmo que a fala jamais me seja dada, pergunto a mim próprio. Se fosse feita esta investigação com propriedade e categoria, com efeito os homens iriam aprender muito com a nossa espécie, diria até que refutariam o moral deles, assumindo o nosso, seriam felizes, alegres, joviais, tranqüilos, até mesmo pacatos. Nenhum homem ainda caiu na real, a cara metade deles somos nós: eles, inteligente, nós, puro instinto; eles orgulhos, nós, conformados com o destino que nos foi dado desde tempos imemoriais, apanhar e calar; eles gananciosos, nós não temos inveja, ciúme, despeito; nós não temos tempo, eles só pensam no futuro, correm léguas do passado...
Os homens deviam conhecer os jegues pela valente decrepitude com que, embora deitando a alma pela boca, puxamos as carroças e os ossos. Apanhamos, é verdade, apanhamos de chicote, de ponta de pé, de ponta de rédea, de ponta de ferro, mas é só quando as poucas forças não acodem aos desejos; os jegues modernos, esses sim são de fato teimosos, resistem mais à pancadaria. Afinal, são moços.










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