Por mais vasculhe a consciência – tornou-se hábito irreversível de minha
parte -, não consigo encontrar único pecado que mereça remorso, seja motivo
para ajoelhar-me aos pés do padre, confessar-me, sem esconder a mínima
contrição. Não furtei, não menti, não caluniei, não blasfemei, não joguei pedra
na cruz, não cuspi nela, não ofendi pessoa nenhuma. Em toda a minha vida, se
dei três coices, foi o mais, isto mesmo antes de haver aprendido maneiras,
etiquetas, princípios da cidade e de saber o destino do verdadeiro jegue de
estirpe e laia, que é apanhar e calar. Alguém dissera que o homem nasce puro, a
sociedade é que corrompe. Digo, inspirado, e não apenas plagiando, que os
jegues nascem broncos, a sociedade dos homens educa.
Confesso que zurrei algumas vezes, parado à porta da Câmara, ouvindo os
discursos empolados; quantas palavras difíceis de mastigar, nem ração de
primeira qualidade custava tanto, quantas idéias esplendorosas, pena que
ineficazes a quem as dizia, não tinha inteligência para real-izá-las a rigor –
inteligível, discursos foram feitos para impressionar os ouvintes, fazerem-lhes
cair o queixo, esbugalhar os olhos, colocar um palmo de língua fora da boca,
ofegar, nunca para serem concretizados, para mudarem o destino do mundo. Quanto
a esses zurros, usei deles como linguagem, sem efusões de interesses,
ideologias, simples zurros. Ultimamente, depois de zurrar pelos quatro cantos
da cidade, assistindo de carroça todas as qualidades de manifestações da raça
humana – não há na face da terra outro ser mais ridículo e hipócrita! Santo
Deus de Misericórdia! Fosse eu Deus, passaria o resto da eternidade lamentando
haver criado o homem, sentindo-me alegre e satisfeito, real-izado mesmo por
haver criado os bichos, aves, todo o resto dos seres vivos, especialmente
jegues, burros, jumentos, mulas, asnos, minha criação suprema, diga de todos os
louvores e reverências -, é que percebi não adiantava zurrar, jamais serei
entendido, mas continuo zurrando por ser costume, hábito, mania velha, não com
a idéia de agravar a raça humana, mais fácil passar no buraco da agulha sem
encostar único pelo nas suas extremidades que agravar-lhes, fazer-lhes sentir
ridículos e idiotas com as prepotências da estirpe, com os orgulhos da laia,
com as falácias da língua...
Nunca dei com homem no chão. Jamais pisoteei ninguém. Lancei alguns bem
longe, mas por legítima defesa, meteram-se a engraçadinhos comigo, enfiando-me
a espora sem dó nem piedade: “vá enfiar a espora no raio que parta”. Não mais
quiseram montar-me, aprenderam a lição. O cavalo é que é trouxa, aceita como se
fosse a coisa mais natural. Por mais imbecis que aos olhos humanos somos nós os
jegues, posso garantir que trouxas não somos. Mesmo que exceções hajam, há muitas,
afianço que eu não sou, nenhum homem faz de mim gatos e sapatos, a res-posta é
dada a rigor. Ora essa!
Passando à ordem mais elevada das ações e atitudes, não encontro em mim
a menor lembrança de haver pensado na perturbação da paz pública, na revolta contra
os políticos canalhas, corruptos, safados, desonestos, aos militares
autoritários, ditadores. Fosse assim, entraria na Câmara e distribuiria coices
por todos os lados; o povo na rua outra coisa não diria senão que chovia
política das janelas. Além de ser a minha índole ad-versa a arruaças, a própria
reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos e
deveres do jegue, tais direitos não existem. Nenhum golpe de Estado foi dado em favor dele; nenhuma
coroa os abrigou. Presidente já afirmou preferir cheio de cavalo a cheiro de
povo. Cavalo já foi Senador em Roma. Quanto aos jegues, nada. Monarquia,
democracia, oligarquia, nenhuma forma ou sistema de governo, tiveram em conta
os interesses de minha espécie. Somos a ralé do reino animal. Qualquer que seja
o regímen, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela
teima, que é, em última instância, o meu único defeito, embora hoje tenha
ouvido um fazendeiro, aqui na Praça do Mercado Municipal, dizer ao Paulus
Contrim que seu jegue de estimação não tinha qualquer defeito, dez anos que o
tem, jamais em tempo algum teimou, empacou, sempre dócil, um verdadeiro jegue.
Pensei até que Paulus Contrim fosse querer comprá-lo para viajar pelas
redondezas em suas campanhas políticas. Quando não teimo, mordo o freio, dando
assim lindíssimo e esplendoroso exemplo de submissão e conformidade. Nunca
perguntei por sóis, por chuvas, por raios e trovões, por calor ou frio, é só
sentir o chicote na carne para sair, não em disparada, não faz meu gênero, em
passos comedidos, de preferência imitando os marchadores.
Bem, até o presente momento de minhas re-flexões, os males que não
pratiquei, nem ao menos passaram no meu instinto. Sou um jegue de brio. No
reino humano, é comum dizer que em todo canalha há um santo embutido, em todo
santo há um canalha enrustido, com a devida licença de mudança das palavras.
Não sou santo, não sou canalha, sou jegue, satisfeito e orgulhoso de minha
espécie.
Vejamos os bens que pratiquei no mundo desde que fui parido.
A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando o meu dono
depressa á casa da namorada, da amante. Não poucos devedores tirei conduzido
para bem longe de um credor inoportuno e intragável, correndo o risco de
quebrar alguma pata, devido à quantidade de buracos nalgumas ruas, não da
periferia da cidade, no centro mesmo – isto no passado, porque hoje as ruas
estão todas asfaltadas, impera a limpeza, a higiene, os vira-latas é que estão
sendo morrendo a roldão, de fome. Ensinei filosofia a muita gente, não a do ser
e do não-ser que já está mais do que surrada, tem cor de burro fugido,
filosofia séria, verdadeira, que consiste na gravidade do porte e não quietação
dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir
os amigos, sempre fui em auxílio dele, deixando que me desse tapas e punhadas
na cara.
Em regra, só devia ouvir carroceiro cantando músicas sertanejas, mas o
meu só canta músicas em Inglês, profundo conhecedor desse idioma; há algumas
baladas que realmente aprecio; há quando ele, rindo, com o cigarro no canto da
boca, diz: “Você gosta dessa música não é? Parece que até dança”. Perdi o
rebolado e tropecei em pedra. Mas nunca se meteu a dar-me ordens em inglês, em
português caipira mesmo, o único que entendo: “Vamo, jegue! Pé na estrada”,
“Seu jegue estúpido, anda logo”. Também se usasse de fina educação, seria
caçoado pelos transeuntes: “Por gentileza, Nullus, apresse-se! Os clientes
aguardam o frete com urgência”, fazendo-me promessas: “Se andar depressa,
prometo aquele feno viçoso!”, agradecendo-me: “Muitíssimo obrigado, Nullus!
Você nem parece ser jegue de tão atencioso que é!”.
Fosse-me dado um segundo de fala, não perderia tempo com picuinhas,
perguntaria de imediato ao homem: “Por que se não investigaria mais profundamente
o moral do jegue?”. Mesmo que a fala jamais me seja dada, pergunto a mim
próprio. Se fosse feita esta investigação com propriedade e categoria, com
efeito os homens iriam aprender muito com a nossa espécie, diria até que
refutariam o moral deles, assumindo o nosso, seriam felizes, alegres, joviais,
tranqüilos, até mesmo pacatos. Nenhum homem ainda caiu na real, a cara metade
deles somos nós: eles, inteligente, nós, puro instinto; eles orgulhos, nós,
conformados com o destino que nos foi dado desde tempos imemoriais, apanhar e
calar; eles gananciosos, nós não temos inveja, ciúme, despeito; nós não temos
tempo, eles só pensam no futuro, correm léguas do passado...
Os homens deviam conhecer os jegues pela valente decrepitude com que,
embora deitando a alma pela boca, puxamos as carroças e os ossos. Apanhamos, é
verdade, apanhamos de chicote, de ponta de pé, de ponta de rédea, de ponta de
ferro, mas é só quando as poucas forças não acodem aos desejos; os jegues
modernos, esses sim são de fato teimosos, resistem mais à pancadaria. Afinal,
são moços.
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