Vira-lata. O último
boêmio.
Será? Seria necessário
sobre isto pensar, refletir quanto à profundidade da boêmia do vira-lata, o que
ela traz aos homens de mensagem, cuja espiritualidade contribua para as
transformações íntimas, para as mudanças de condutas e posturas éticas e
morais, mostrando-lhes seus valores, virtudes essenciais. Pelas ruas, alamedas,
becos e avenidas, vai ele derrubando as latas, revirando o lixo em busca de
comida, de saciar sua fome, por anos, décadas.
Todo esse apego do
homem ao cachorro, seja vira-lata, seja de raça, é porque o cachorro considera
o seu dono o primeiro homem do mundo, o homem o considera o seu único amigo
leal e fiel, uma amizade abstrata, pois que só o homem confessa-lhe suas dores
e sofrimentos, angústias e tristezas, o cachorro ouve, não sei é se compreende,
entende - ao seu modo fá-lo, mas qual seria -, seria preciso ser cachorro para
sabê-lo.
Mas para uma criança,
criatura tão necessitada de todos, amor, carinho, ternura, dedicação,
solidariedade, sentir-se protegida, amparada, tão frágil e sozinha, um cachorro
é um teste de amor desinteressado da parte dela... é ter uma outra criatura que
dependa – afinal! – dos seus cuidados.
Antes de mais nada, um
cachorro serve para a gente falar sozinho sobre os medos, dúvidas, sonhos e
utopias, alegrias e felicidades, sentimentos que tememos não ser compreendidos
e entendidos, respeitados e considerados, sirvam de base para censuras e risos,
desconfianças tantas que desembocam em afastamento, preconceitos,
discriminações. Que o digam os errantes vagabundos de estrada, miseráveis das
ruas, avenidas, nas calçadas, minhocões das metrópoles e megalópoles, a quem
pode faltar tudo na vida, menos um cachorro. Há quem diga que quanto mais forem
a miséria e pobreza mais se encontram filhos e cachorros, galinhas; até onde
pude comprovar isto é verdade inconteste.
E os velhinhos que
ficam sem família, esquecidos em asilos, sem a presença do cachorro para
dizerem da solidão, da ingratidão dos familiares, amigos, filhos.
E as crianças de
apartamento que jamais tiveram um cachorro!
Cachorro... O amigo do
homem, dizem... Tive na infância dois cachorros, Bolinha, de pelo branco como a
neve, Museu, de pelo preto como as penas do urubu, mas não me lembra se com
eles conversava, se lhes dizia de mim, confessava-lhes tudo. Cuidava bem deles,
alimentava-os, dava-lhes banho, fazia questão de limpar suas casinhas. Bolinha
fugiu. Museu morreu de raiva. Por sempre serem amarrados, não faziam festa
quando saía, voltava para casa, viajar, após alguns dias retornar. Latiam
euforicamente, só isto. Mas o meu papagaio assim que batia o portão, entrando
em casa, depois de alguns minutos fora, dias de viagem, gritava a plenos
pulmões: “Pretinho, filhodaputa...”, assim o ensinei.
Para mim, o papagaio
era mais importante do que o cachorro, falava o que lhe era ensinado, mas usava
palavras, a palavra para mim sempre foi o mais importante na vida – a “fala” do
papagaio emocionava-me, só ele tinha o
dom da “fala, os outros, animais, aves eram destituídos dela. Meu amigo
era o papagaio, fiel e leal.
Ao contrário de meus
dois cachorros que viviam presos na corrente, meu papagaio era livre, vivia nas
árvores do quintal de minha residência,
retornava ao seu poleiro, quando sentia
fome, no crepúsculo para dormir. Pela manhã, antes de começar suas aventuras
pelas árvores, gritava a plenos pulmões: “Pretinho... Tudo bem, meu amor...
Como vai, querido?” Dava-lhe eu a sua
refeição matutina, goiaba, mamão, manga... Voava... Começava o seu dia.
Neste mundo de tantos
espantos, admirações, cheio das mágicas de Deus, das arbitrariedades e
gratuidades dos homens, das violências e desrespeitos da estirpe e raça, o que
existe de mais sobrenatural, de mais transcendente é o silêncio do cachorro e a
tagarelice do papagaio.
Pergunto-me, leitor
amigo, quem considera minhas letras questionamentos acerca da vida, desejos de
completude e sublimidade, por que o uivar dos lobos, o latir dos cães, a fala
dos papagaios, os trovões, os raios constituem o pano de fundo para as cenas de
horror? Pois quando o medo é muito, faz-se um silêncio na alma. E nada mais
existe.
Cada dia é preciso
escrever sobre uma coisa nova – mas novidades, as últimas, só as há nas
vitrines de butiques, nas lojas de shoppings, nos catálogos de acessórios
domésticos, nos menus de restaurantes, nos belíssimos e caros anúncios de
medicamentos caros.
Estas é que importam,
fascinam, estesiam, extasiam, dão água na boca.
Passado sem
presente... Futuro sem presente, passado... Presente sem futuro. Papagaio sem
palavras, cachorros sem latidos.
Eis a vida, eis o
mundo. Alguma coisa em mim mudou, não sei de que se trata, sei que agora posso
dormir o sono dos justos, aqueles justos que dizem: “A vida... É preciso
compreendê-la...”.
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