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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

*IPSIS LITTERIS DE ERMAS SOLIDÔES - Manoel Ferreira Neto.



Faço-lhe notar, digníssimo leitor, – intenção primordial de aguçar-lhe inda mais a sensibilidade, senso de percepção, intuição, para o desenvolvimento das capacidades de descascar os pepinos ou destilar os ácidos críticos de nossa atualidade, virada de ponta cabeça no que tange a todos os costumes, hábitos, cultura, obras filosóficas e literárias; convido-lhe a não deixar pedra sobre pedra, já dizia Karl Marx: “unidos venceremos” – que os burros, principalmente os das carroças, declaram a quem os quer ouvir, dedicar-lhes pouco de atenção, conhecerem-lhes os problemas quotidianos, que ninguém os protege, ninguém lhes re-conhece os esforços e lutas contínuos em prol de levar e trazer fretes. Não é propriamente animal, levando em conta as características instintivas, mas a imagem quadrúpede do homem; é justamente isso que desejam mostrar aos seus iguais, semelhantes e próximos.
Pensando com a razão dos rabos, a de-monstração ipsis litteris é que nos cães, de raça ou simplesmente vira-latas esqueléticos e pulguentos, encontra-se a amizade, no cavalo, o orgulho, só no burro encontramos filosofia para a atualidade, filosofia imortal, eterna, em todos os âmbitos incólume, inconteste, a primeira vista, desde os pré-socráticos, que não é passível de dúvidas e des-confianças, a absoluta, e todos os séculos vindouros não terão tanta matéria para reflexão quanto o nosso. Não posso conter-me, leitor, e solto gargalhada estridente, isto porque me não havia atinado com esta verdade, gastei letras e papéis, isto sem contar a tinta, escrevendo isto e aquilo buscando o verso verdadeiro da vida e do mundo, e isto está evidente nos burros. Antes soltasse um espirro – um momento, antes de tomar da pena para traçar estas linhas, soltei dois espirros escandalosos, creio haver acordado o vizinho, não o sei. Não me furto ao prazer de tentar as últimas palavras da filosofia, a filosofia do burro.
O capeta que entenda a arte de agradar a gregos e troianos, a política – de minha parte, já dependurei as botas, coloquei ferradura atrás da porta, raminho de erva-pipi na orelha, não mais vou espremer os miolos para entendê-la; se fosse obter resultado satisfatório com as minhas re-flexões, continuaria tentando, uma hora iria entender vez por todas, saindo pelas ruas de nossa comunidade, explicando ao pé da letra o que é isto, a política. Mas não. Trabalho perdido. Nem mesmo os burros trabalham de graça, sabem que a ração vem deste trabalho.
Toda a gente que encontro nas esquinas, casas comerciais, repartições públicas, botequins, restaurantes, bares, barbeiros, diz o mesmo: o modo de obter câmaras plausíveis, razoáveis, é acabar com as eleições, à força de uns oitocentos e cinco votos, entra na cena política um asno, imbecil de galocha ou idiota de chapéu de coco  e galocha, aquela barriga de Pancho Villa fica vereador por quatro anos consecutivos
Mesmo sendo destes colecionadores de frases célebres, idéias imortais – se lhes perguntar um pouco além, o que, em verdade, a frase célebre diz ipsis litteris, o que significa, em que situação ou circunstância fora criada, quais são os fundamentos, o silêncio é a resposta, isto sem contar a respiração que fica ofegante, os olhos que giram para todos os lados -, ainda se é possível encontrar homens de fina inteligência, de sensibilidade sem precedentes, poucos, mas diz o adágio: “antes pouco do que nada”, não sei se endosso, às vezes o nada é mais conveniente do que a qualidade do pouco existente.
Atravessando a Praça do Antigo Fórum, dei com uma dessas criaturas, encontrei-me com alguém; pessoa, aliás, que o céu, vez ou outra, de século em século, milênio em milênio, costuma enviar, solidário e complacente que é, para esclarecer os homens. Se, para mim, na atualidade burros e homens se igualam, não se é possível mais discernir, distinguir, quem é quem na história, o leitor pode estar pensando haver encontrado com uma criatura é eufemismo, em verdade, refiro-me ao burro. Em quarenta e seis anos que perambulo, ando por este lugar, houve tempo em que fazia o footing nesta praça, quando deixou de ser Praça do Fórum e passou a ser Praça Hermano Balzac, encontrei-me com burro atravessando-a de lado para outro, carroceiro, cortando caminho, passando por ela. Para evitar tais digressões, completei, dizendo haver encontrado alguém, homem, cidadão, indivíduo, dos poucos que ainda são inteligentes, cultos, sabem esclarecer o que é isto, o homem.
Disse-me que Pascal era sonhador, talvez o maior sonhador de todos os tempos, desde os primórdios da humanidade, não um dos grandes, mas o maior de todos os sonhadores. Não sou nada apreciador de in-vertidas, mas estive por lhe dizer com todas as letras em riste que Pascoal era o recepcionista do Hotel Cinco Horizontes, aliás um grosseirão qualificado. Disse de outro modo, pois que tal atitude com homem de fato e direito inteligente, culto, intelectual, é mostrar ignorância de minha parte, tinha de ouvi-lo com o critério, assimilar-lhe a fala, re-colhê-la, a-colhê-la com dignidade, era lição: “Há-de perdoar-me, Honório Bandeira, a pergunta talvez até descabida, mas é para que me posicione: acaso, está se referindo ao recepcionista do Hotel Cinco Horizontes? Este é que me veio a mente”. Homero Bandeira não deu a mínima para a pergunta, conhecendo-me há tantos anos, conhece-me bem os trocadilhos, cinismos e galhofas advindos deles. Continuou dizendo ser Pascal o maior sonhador da humanidade, porque o que achava extravagante, paradoxal, nonsense, é que é natural, naturalíssimo, se assim abarcava o que estava pensando e sentindo: verdade aqui, erro além, subvertendo a ordem, in-vertendo os princípios, erro além, verdade aqui.  Aí, é que atinei com estar se referindo ao filósofo Pascal. O que teria perdido, se não desse atenção ao distinto amigo Homero Bandeira, ouvir-lhe-ia os pensamentos e idéias de ser sonhador, quem sabe não viesse eu a superar Pascal, tornando-me o maior dos maiores, a maior cultura crítica do município – melhor ainda: patrimônio crítico de nossa comunidade, não tenho quaisquer pretensões de chegar ao Brasil, ao mundo, sendo nessa comunidade já me dou por real-izado na vida.
- Sabia por que Incitatus foi empossado por César como Senador de Roma?
- Por ser branco... – arrisquei uma res-posta à queima-roupa.
- Alvura não é mérito para ser Senador. Veja, por exemplo, os colarinhos brancos de nossa câmara dos vereadores. Só os colarinhos são brancos, as mãos estão mais que sujas, a alma imunda.
- Cuidado com o que está dizendo, Homero Bandeira, alguém ouve e vai lá e diz para todos eles que você está difamando a conduta e posturas deles. Não se deve dizer tais verdades em praça pública, nunca se sabe quais serão as conseqüências.
- Não se importe com isso. Já que não sabe a razão de Incitatus haver sido empossado Senador de Roma, dir-lhe-ei agora, convidando-lhe a refletir e meditar até o fim de seus preciosos dias: Incitatus foi empossado por ser orgulhoso de sua raça, como todos os cavalos o são. Roma estava precisando de muito orgulho, as coisas de lá, especialmente na política, estavam um verdadeiro “Deus nos acuda!”
- E os burros são a imagem quadrúpede do homem. Talvez fosse o caso de investir na candidatura de um para ocupar  cadeira na câmara, de preferência giratória?
- Cale-se, Gregório Soares, ou ponha-se fora. Não estou para aturar cérebros fracos, miolos carcomidos pelo tempo. Se não é uma finesse das mais esplendorosas interromper alguém para dizer uma verdade apenas sua, nem os insetos endossam, quanto mais uma asneira dessa. Colocar um burro na câmara. As coisas aqui então pretas, mas ainda não chegaram a tanto despautério.
- Pense bem, distinto amigo: se você der ao rato o seu queijo de todos os dias, não vai precisar roubar, mesmo que já o tenha feito, os bichos também mudam de posturas e condutas. Bem, não vou completar a minha idéia, sou demasiado precavido com as palavras, idéias, sentimentos e pensamentos. Você sabe muito bem a que me refiro; fora você mesmo quem me contara o que sucedera num plenário a que estivera presente. Na atualidade, não há quem isto negue, somos a imagem bípede do burro, mas ainda não descemos tão baixo assim, isto é, sermos ratos jumentados.
- Vá para o diabo, que o ature! – irritação mais que ininteligível, o vereador e ele tornaram-se unha e carne. Toquei-lhe o ponto fraco: quem poderia imaginar que homem tão inteligente, considerado uma das inteligências incomuns de nossa comunidade, tornar-se amigo de tão juramentado traste – Quando quiser saber as coisas, ouça calado, não é necessário abaixar as orelhas, entendeu? Ora essa! Burro na câmara dos vereadores. O que a nossa comunidade vai pensar de tão absurdo disparate, não existem mais autoridades competentes em nosso município. Conheço alguns, mais ou menos uns oito, de lídima integridade política. Somos homens, temos direito de escorregar na casca da banana.
- Mudando de assunto, deixemos os burros, cavalos, ratos para outra ocasião mais propícia! Você vai assistir ao cometa passar hoje? Vai aparecer nesta terra nossa, aqui nenhum Judas perdeu suas botas, às duas horas da madrugada, e de onde se vê melhor é do morro do Neca Ferreira, à esquerda da rua Lúcio Ferreira. Tem um grande rabo luminoso – quando atinei com o dito, tive vontade de cortar-me a língua, estou ficando com idéia fixa de burro, rabo luminoso; por increça que parível, há carroceiros que untam os rabos de seus burros, jegues, mulas – Vá, meu amigo, vá assistir à passagem do cometa, quando houver outro por aqui passando, já não estará no mundo, nenhum de nós desta geração. Quem não entende das coisas, não se mete nelas. Não entendo de política, políticos.
Vindo da barbearia do Mundecão, passando pela rua Serafim Magela, pensava justamente em Homero Bandeira, queria perguntar-lhe uma coisa que vinha me infernizando a vida. A vontade de fazê-lo foi tão forte e presente que me encontrei com ele no meio da Praça do Antigo Fórum. Não era para saber se Pascal era o maior sonhador da humanidade. Gostaria de saber dele se havia em nosso município uma Sociedade Protetora dos Burros.
Fiz a pergunta:
- Homero, acaso você sabe se aqui existe alguma Sociedade Protetora dos Burros? – pasmou-se, estupidificou-se, embestou-se mesmo. Ficara branco de todo, os olhos brilharam mais do que o comum, seus olhos sempre foram ensimesmados, frios, diria serem a metáfora das trevas de todos os séculos.
- Sim... Existe esta sociedade, creio que fundada em 1998 – Mas o que tem você a ver com isso? – chamava-me de burro porque não entendi o porquê de Pascal haver sido o maior filósofo sonhador de todos os tempos, o que, aliás, não explicou. Não dei atenção à insinuação, se acaso estava eu necessitado de ser protegido.
Chamei-lhe para nos sentar ao banco, na esquina do “leque”, explicar-lhe-ia com esmero o motivo de pergunta tão sem sentido à primeira vista. Expliquei-lhe ser uma Sociedade Protetora dos Burros uma das sociedades a mim mais sim-páticas, era necessário proteger os burros, ser a imagem quadrúpede do homem em nossa modernidade, atualidade, é um patrimônio histórico dos mais relevantes, as gerações futuras vão se sentir orgulhosas de período de nossa história tão rico, chegar à conclusão que os burros são a imagem quadrúpede do homem não é coisa que aconteça tão facilmente, conforme os meus parcos conhecimentos não houve em toda a história dos homens tal conclusão, nem Pascal atinara com  isso.
Fiquei contente, confesso que a minha alegria ultrapassou todos os limites e fronteiras, felicidade jamais sentida em todos os anos de minha vida.
- Se em distritos nossos, que foram nossos, já fundaram essa Sociedade Protetora dos Jumentos, ficaria inteligível de todo, se em nosso município, onde há o maior número de burros, vêem-se burros por todos os cantos, felizmente que as carrocinhas levaram todos os vira-latas. Por que não teríamos nós uma Sociedade Protetora dos Burros?
- Está lá com as suas razões. Como eu estive na cerimônia de abertura das portas, não me atinei com isso. Pensei na época ser um tremendo disparate. Por que não fundar uma Sociedade Solidária aos Velhos e Senis. Prova, de-monstração, sei lá mais o quê, sentimentos finos, justos, elevados, supremos e divinos.
- “O homem estende a caridade aos brutos”, como tão bem escreve o maior patrimônio crítico brasileiro, Machado de Assis – olhou-me curioso, a fisionomia circunspecta.
- Por que me olha assim, Homero Bandeira?
- Jamais ouvi falar neste homem! – fui eu quem ficou estupidificado, embestado. Homem de tão fina inteligência não conhecer Machado de Assis, nunca haver ouvido falar nele, é inconcebível. Mas, pensei comigo mesmo, é daqueles que só lêem um autor, sabem as obras de cor e salteado.
- Não importa, foi apenas um tempinho para ativar o fôlego – disse-lhe isto porque iria entrar no mérito da questão, dir-lhe-ia o que perpassava a minha mente – Homero Bandeira, perguntei-lhe sobre tal sociedade, porque não há muito, bem recentemente, soube de fontes fidedignas que existem na câmara nada menos de três projetos ou planos para a extinção dos ratos, papéis importantes estão sendo roídos por eles, leis que foram sancionadas, devidamente assinadas por todos os vereadores e presidente, precisaram ser re-feitas, o que está dando de rato lá não está no gibi. Dizem as más línguas que é devido a um esgoto que arrebentou no fundo da prefeitura, está a céu aberto, de lá saíram todos os ratos, o único lugar que encontraram para se protegerem fora no prédio -– só um correu para a prefeitura e se escondeu na sala da consultoria jurídica -,  e dinheiro está faltando para consertar o esgoto. Não há quem passe nas imediações que não tampe as narinas com os dedos, a catinga está pior que Paris no século XVIII.
Homero não sabia da invasão dos ratos na câmara. Não quis meter a sua alma no inferno, asseverando este fato que de todo desconhecia.
- Não sabia disso. Saberia eu o que se passa no Jataí?
- Óbvio que não, pois que não conhece esse nosso distrito.
- Pois é. Além do mais, distinto amigo, o conhecimento dos homens é limitado. Já deve levantar as mãos postas aos céus e aos infernos pelo pouco que se conhece.
- Se a Sociedade Protetora dos Burros não os protege, deixa que os seus donos os espanquem quase até à morte pela teimosia, empacamento, os membros apenas se empolam e comem churrasco lá no Espaço Livre, verdadeiros banquetes regados a vinhos franceses. O que vai proteger os nossos burros? Temo, amigo, devido à violência dos carroceiros, a extinção da espécie. Os séculos vindouros não terão quaisquer oportunidades de conhecer a imagem quadrúpede do homem.
- Amigo, não há outros animais? A vaca, o boi não são animais? O cabrito, os bodes não são animais? O próprio cavalo de Tróia, apesar de haver sido feito de madeira, como levava guerreiros na barriga, podemos considerá-lo bicho. A Sociedade não há de proteger somente os burros em detrimento dos outros animais; ela existe só por existir, empregar algumas pessoas que estavam urgentemente necessitadas do arroz, feijão e bife.
- Homem, vá ver o cometa; não se esqueça, morro do Neca Ferreira, à esquina da rua Lúcio Ferreira.
- Às duas horas da manhã, não é isso?
- Sim.
- Irei com todo o prazer. E você também vai comparecer, pois não?
- Infelizmente não. Ainda sou da geração que olha para a terra, os homens, os bichos, os insetos, e não para o céu de madrugada.  

  

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