Faço-lhe notar, digníssimo leitor, – intenção primordial de aguçar-lhe
inda mais a sensibilidade, senso de percepção, intuição, para o desenvolvimento
das capacidades de descascar os pepinos ou destilar os ácidos críticos de nossa
atualidade, virada de ponta cabeça no que tange a todos os costumes, hábitos,
cultura, obras filosóficas e literárias; convido-lhe a não deixar pedra sobre
pedra, já dizia Karl Marx: “unidos venceremos” – que os burros, principalmente
os das carroças, declaram a quem os quer ouvir, dedicar-lhes pouco de atenção,
conhecerem-lhes os problemas quotidianos, que ninguém os protege, ninguém lhes
re-conhece os esforços e lutas contínuos em prol de levar e trazer fretes. Não
é propriamente animal, levando em conta as características instintivas, mas a imagem
quadrúpede do homem; é justamente isso que desejam mostrar aos seus iguais,
semelhantes e próximos.
Pensando com a razão dos rabos, a de-monstração ipsis litteris é que nos
cães, de raça ou simplesmente vira-latas esqueléticos e pulguentos, encontra-se
a amizade, no cavalo, o orgulho, só no burro encontramos filosofia para a
atualidade, filosofia imortal, eterna, em todos os âmbitos incólume,
inconteste, a primeira vista, desde os pré-socráticos, que não é passível de
dúvidas e des-confianças, a absoluta, e todos os séculos vindouros não terão
tanta matéria para reflexão quanto o nosso. Não posso conter-me, leitor, e
solto gargalhada estridente, isto porque me não havia atinado com esta verdade,
gastei letras e papéis, isto sem contar a tinta, escrevendo isto e aquilo
buscando o verso verdadeiro da vida e do mundo, e isto está evidente nos
burros. Antes soltasse um espirro – um momento, antes de tomar da pena para
traçar estas linhas, soltei dois espirros escandalosos, creio haver acordado o
vizinho, não o sei. Não me furto ao prazer de tentar as últimas palavras da
filosofia, a filosofia do burro.
O capeta que entenda a arte de agradar a gregos e troianos, a política –
de minha parte, já dependurei as botas, coloquei ferradura atrás da porta, raminho
de erva-pipi na orelha, não mais vou espremer os miolos para entendê-la; se
fosse obter resultado satisfatório com as minhas re-flexões, continuaria
tentando, uma hora iria entender vez por todas, saindo pelas ruas de nossa
comunidade, explicando ao pé da letra o que é isto, a política. Mas não.
Trabalho perdido. Nem mesmo os burros trabalham de graça, sabem que a ração vem
deste trabalho.
Toda a gente que encontro nas esquinas, casas comerciais, repartições
públicas, botequins, restaurantes, bares, barbeiros, diz o mesmo: o modo de
obter câmaras plausíveis, razoáveis, é acabar com as eleições, à força de uns
oitocentos e cinco votos, entra na cena política um asno, imbecil de galocha ou
idiota de chapéu de coco e galocha,
aquela barriga de Pancho Villa fica vereador por quatro anos consecutivos
Mesmo sendo destes colecionadores de frases célebres, idéias imortais –
se lhes perguntar um pouco além, o que, em verdade, a frase célebre diz ipsis
litteris, o que significa, em que situação ou circunstância fora criada, quais
são os fundamentos, o silêncio é a resposta, isto sem contar a respiração que
fica ofegante, os olhos que giram para todos os lados -, ainda se é possível
encontrar homens de fina inteligência, de sensibilidade sem precedentes, poucos,
mas diz o adágio: “antes pouco do que nada”, não sei se endosso, às vezes o
nada é mais conveniente do que a qualidade do pouco existente.
Atravessando a Praça do Antigo Fórum, dei com uma dessas criaturas,
encontrei-me com alguém; pessoa, aliás, que o céu, vez ou outra, de século em
século, milênio em milênio, costuma enviar, solidário e complacente que é, para
esclarecer os homens. Se, para mim, na atualidade burros e homens se igualam,
não se é possível mais discernir, distinguir, quem é quem na história, o leitor
pode estar pensando haver encontrado com uma criatura é eufemismo, em verdade,
refiro-me ao burro. Em quarenta e seis anos que perambulo, ando por este lugar,
houve tempo em que fazia o footing nesta praça, quando deixou de ser Praça do
Fórum e passou a ser Praça Hermano Balzac, encontrei-me com burro
atravessando-a de lado para outro, carroceiro, cortando caminho, passando por
ela. Para evitar tais digressões, completei, dizendo haver encontrado alguém, homem,
cidadão, indivíduo, dos poucos que ainda são inteligentes, cultos, sabem
esclarecer o que é isto, o homem.
Disse-me que Pascal era sonhador, talvez o maior sonhador de todos os
tempos, desde os primórdios da humanidade, não um dos grandes, mas o maior de
todos os sonhadores. Não sou nada apreciador de in-vertidas, mas estive por lhe
dizer com todas as letras em riste que Pascoal era o recepcionista do Hotel
Cinco Horizontes, aliás um grosseirão qualificado. Disse de outro modo, pois
que tal atitude com homem de fato e direito inteligente, culto, intelectual, é
mostrar ignorância de minha parte, tinha de ouvi-lo com o critério, assimilar-lhe
a fala, re-colhê-la, a-colhê-la com dignidade, era lição: “Há-de perdoar-me,
Honório Bandeira, a pergunta talvez até descabida, mas é para que me posicione:
acaso, está se referindo ao recepcionista do Hotel Cinco Horizontes? Este é que
me veio a mente”. Homero Bandeira não deu a mínima para a pergunta,
conhecendo-me há tantos anos, conhece-me bem os trocadilhos, cinismos e
galhofas advindos deles. Continuou dizendo ser Pascal o maior sonhador da
humanidade, porque o que achava extravagante, paradoxal, nonsense, é que é
natural, naturalíssimo, se assim abarcava o que estava pensando e sentindo: verdade
aqui, erro além, subvertendo a ordem, in-vertendo os princípios, erro além,
verdade aqui. Aí, é que atinei com estar
se referindo ao filósofo Pascal. O que teria perdido, se não desse atenção ao
distinto amigo Homero Bandeira, ouvir-lhe-ia os pensamentos e idéias de ser
sonhador, quem sabe não viesse eu a superar Pascal, tornando-me o maior dos
maiores, a maior cultura crítica do município – melhor ainda: patrimônio
crítico de nossa comunidade, não tenho quaisquer pretensões de chegar ao Brasil,
ao mundo, sendo nessa comunidade já me dou por real-izado na vida.
- Sabia por que Incitatus foi empossado por César como Senador de Roma?
- Por ser branco... – arrisquei uma res-posta à queima-roupa.
- Alvura não é mérito para ser Senador. Veja, por exemplo, os colarinhos
brancos de nossa câmara dos vereadores. Só os colarinhos são brancos, as mãos
estão mais que sujas, a alma imunda.
- Cuidado com o que está dizendo, Homero Bandeira, alguém ouve e vai lá
e diz para todos eles que você está difamando a conduta e posturas deles. Não
se deve dizer tais verdades em praça pública, nunca se sabe quais serão as
conseqüências.
- Não se importe com isso. Já que não sabe a razão de Incitatus haver
sido empossado Senador de Roma, dir-lhe-ei agora, convidando-lhe a refletir e
meditar até o fim de seus preciosos dias: Incitatus foi empossado por ser
orgulhoso de sua raça, como todos os cavalos o são. Roma estava precisando de
muito orgulho, as coisas de lá, especialmente na política, estavam um
verdadeiro “Deus nos acuda!”
- E os burros são a imagem quadrúpede do homem. Talvez fosse o caso de
investir na candidatura de um para ocupar cadeira na câmara, de preferência giratória?
- Cale-se, Gregório Soares, ou ponha-se fora. Não estou para aturar
cérebros fracos, miolos carcomidos pelo tempo. Se não é uma finesse das mais
esplendorosas interromper alguém para dizer uma verdade apenas sua, nem os
insetos endossam, quanto mais uma asneira dessa. Colocar um burro na câmara. As
coisas aqui então pretas, mas ainda não chegaram a tanto despautério.
- Pense bem, distinto amigo: se você der ao rato o seu queijo de todos
os dias, não vai precisar roubar, mesmo que já o tenha feito, os bichos também
mudam de posturas e condutas. Bem, não vou completar a minha idéia, sou
demasiado precavido com as palavras, idéias, sentimentos e pensamentos. Você
sabe muito bem a que me refiro; fora você mesmo quem me contara o que sucedera
num plenário a que estivera presente. Na atualidade, não há quem isto negue,
somos a imagem bípede do burro, mas ainda não descemos tão baixo assim, isto é,
sermos ratos jumentados.
- Vá para o diabo, que o ature! – irritação mais que ininteligível, o
vereador e ele tornaram-se unha e carne. Toquei-lhe o ponto fraco: quem poderia
imaginar que homem tão inteligente, considerado uma das inteligências incomuns
de nossa comunidade, tornar-se amigo de tão juramentado traste – Quando quiser
saber as coisas, ouça calado, não é necessário abaixar as orelhas, entendeu?
Ora essa! Burro na câmara dos vereadores. O que a nossa comunidade vai pensar
de tão absurdo disparate, não existem mais autoridades competentes em nosso
município. Conheço alguns, mais ou menos uns oito, de lídima integridade
política. Somos homens, temos direito de escorregar na casca da banana.
- Mudando de assunto, deixemos os burros, cavalos, ratos para outra
ocasião mais propícia! Você vai assistir ao cometa passar hoje? Vai aparecer
nesta terra nossa, aqui nenhum Judas perdeu suas botas, às duas horas da
madrugada, e de onde se vê melhor é do morro do Neca Ferreira, à esquerda da
rua Lúcio Ferreira. Tem um grande rabo luminoso – quando atinei com o dito,
tive vontade de cortar-me a língua, estou ficando com idéia fixa de burro, rabo
luminoso; por increça que parível, há carroceiros que untam os rabos de seus
burros, jegues, mulas – Vá, meu amigo, vá assistir à passagem do cometa, quando
houver outro por aqui passando, já não estará no mundo, nenhum de nós desta
geração. Quem não entende das coisas, não se mete nelas. Não entendo de
política, políticos.
Vindo da barbearia do Mundecão, passando pela rua Serafim Magela,
pensava justamente em Homero Bandeira, queria perguntar-lhe uma coisa que vinha
me infernizando a vida. A vontade de fazê-lo foi tão forte e presente que me
encontrei com ele no meio da Praça do Antigo Fórum. Não era para saber se
Pascal era o maior sonhador da humanidade. Gostaria de saber dele se havia em
nosso município uma Sociedade Protetora dos Burros.
Fiz a pergunta:
- Homero, acaso você sabe se aqui existe alguma Sociedade Protetora dos Burros?
– pasmou-se, estupidificou-se, embestou-se mesmo. Ficara branco de todo, os
olhos brilharam mais do que o comum, seus olhos sempre foram ensimesmados,
frios, diria serem a metáfora das trevas de todos os séculos.
- Sim... Existe esta sociedade, creio que fundada em 1998 – Mas o que
tem você a ver com isso? – chamava-me de burro porque não entendi o porquê de
Pascal haver sido o maior filósofo sonhador de todos os tempos, o que, aliás,
não explicou. Não dei atenção à insinuação, se acaso estava eu necessitado de
ser protegido.
Chamei-lhe para nos sentar ao banco, na esquina do “leque”,
explicar-lhe-ia com esmero o motivo de pergunta tão sem sentido à primeira
vista. Expliquei-lhe ser uma Sociedade Protetora dos Burros uma das sociedades
a mim mais sim-páticas, era necessário proteger os burros, ser a imagem
quadrúpede do homem em nossa modernidade, atualidade, é um patrimônio histórico
dos mais relevantes, as gerações futuras vão se sentir orgulhosas de período de
nossa história tão rico, chegar à conclusão que os burros são a imagem
quadrúpede do homem não é coisa que aconteça tão facilmente, conforme os meus
parcos conhecimentos não houve em toda a história dos homens tal conclusão, nem
Pascal atinara com isso.
Fiquei contente, confesso que a minha alegria ultrapassou todos os
limites e fronteiras, felicidade jamais sentida em todos os anos de minha vida.
- Se em distritos nossos, que foram nossos, já fundaram essa Sociedade
Protetora dos Jumentos, ficaria inteligível de todo, se em nosso município,
onde há o maior número de burros, vêem-se burros por todos os cantos,
felizmente que as carrocinhas levaram todos os vira-latas. Por que não teríamos
nós uma Sociedade Protetora dos Burros?
- Está lá com as suas razões. Como eu estive na cerimônia de abertura
das portas, não me atinei com isso. Pensei na época ser um tremendo disparate.
Por que não fundar uma Sociedade Solidária aos Velhos e Senis. Prova,
de-monstração, sei lá mais o quê, sentimentos finos, justos, elevados, supremos
e divinos.
- “O homem estende a caridade aos brutos”, como tão bem escreve o maior
patrimônio crítico brasileiro, Machado de Assis – olhou-me curioso, a
fisionomia circunspecta.
- Por que me olha assim, Homero Bandeira?
- Jamais ouvi falar neste homem! – fui eu quem ficou estupidificado,
embestado. Homem de tão fina inteligência não conhecer Machado de Assis, nunca
haver ouvido falar nele, é inconcebível. Mas, pensei comigo mesmo, é daqueles
que só lêem um autor, sabem as obras de cor e salteado.
- Não importa, foi apenas um tempinho para ativar o fôlego – disse-lhe
isto porque iria entrar no mérito da questão, dir-lhe-ia o que perpassava a
minha mente – Homero Bandeira, perguntei-lhe sobre tal sociedade, porque não há
muito, bem recentemente, soube de fontes fidedignas que existem na câmara nada
menos de três projetos ou planos para a extinção dos ratos, papéis importantes
estão sendo roídos por eles, leis que foram sancionadas, devidamente assinadas
por todos os vereadores e presidente, precisaram ser re-feitas, o que está
dando de rato lá não está no gibi. Dizem as más línguas que é devido a um
esgoto que arrebentou no fundo da prefeitura, está a céu aberto, de lá saíram
todos os ratos, o único lugar que encontraram para se protegerem fora no prédio
-– só um correu para a prefeitura e se escondeu na sala da consultoria jurídica
-, e dinheiro está faltando para
consertar o esgoto. Não há quem passe nas imediações que não tampe as narinas
com os dedos, a catinga está pior que Paris no século XVIII.
Homero não sabia da invasão dos ratos na câmara. Não quis meter a sua
alma no inferno, asseverando este fato que de todo desconhecia.
- Não sabia disso. Saberia eu o que se passa no Jataí?
- Óbvio que não, pois que não conhece esse nosso distrito.
- Pois é. Além do mais, distinto amigo, o conhecimento dos homens é
limitado. Já deve levantar as mãos postas aos céus e aos infernos pelo pouco
que se conhece.
- Se a Sociedade Protetora dos Burros não os protege, deixa que os seus
donos os espanquem quase até à morte pela teimosia, empacamento, os membros
apenas se empolam e comem churrasco lá no Espaço Livre, verdadeiros banquetes
regados a vinhos franceses. O que vai proteger os nossos burros? Temo, amigo,
devido à violência dos carroceiros, a extinção da espécie. Os séculos vindouros
não terão quaisquer oportunidades de conhecer a imagem quadrúpede do homem.
- Amigo, não há outros animais? A vaca, o boi não são animais? O
cabrito, os bodes não são animais? O próprio cavalo de Tróia, apesar de haver
sido feito de madeira, como levava guerreiros na barriga, podemos considerá-lo
bicho. A Sociedade não há de proteger somente os burros em detrimento dos
outros animais; ela existe só por existir, empregar algumas pessoas que estavam
urgentemente necessitadas do arroz, feijão e bife.
- Homem, vá ver o cometa; não se esqueça, morro do Neca Ferreira, à
esquina da rua Lúcio Ferreira.
- Às duas horas da manhã, não é isso?
- Sim.
- Irei com todo o prazer. E você também vai comparecer, pois não?
- Infelizmente não. Ainda sou da geração que olha para a terra, os
homens, os bichos, os insetos, e não para o céu de madrugada.
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