Instante
de desejo e vontade da verdade, da redenção que as Palavras e o íntimo, esta
contemplação do espírito e das atitudes, possam iluminar-me na percepção de que existe muito a ser
revelado, manifestado, confessado, um símbolo e representação do sonho da
harmonia entre a Vida e as palavras, entre a vontade do sublime e da graça,
cheia de sonhos e necessidade de paz e felicidade. Ah, esta vocação do sublime
tomou-me por inteiro, e lembro-me de que senti um frio e um vento mínimo
perpassar-me a coluna vertebral e os olhos senti faiscarem, creio que desejei
que fossem desde então habitar o que percebera e intuíra verdadeiro e pleno de
compaixão e misericórdia.
Bato à porta, a
porta abre-se, entro-me e sento-me. Uma luz oblíqua, indireta, fragmenta-se nos
cálices de champagne sobre a mesa, em estilhaços de vidro que brilham
ofuscadamente. A um canto bebo num
cálice delicado, esforço-me por alinhar as mãos finas com... O cálice tinha um
pé fino como um estilete.
Sem o desejar,
sem o almejar, sou quem quebra os limites, as esperanças, os vários
ancoradouros que, com esmerada paciência e entrega, tinha estabelecido no
decorrer da infância, da adolescência, através das orações que aprendia com a
mamãe, histórias recontadas da Bíblia. Não creio que seja inútil preparar-me
para a morte, como se ela pudesse acontecer neste exato momento, neste instante
em que busco a pequena choupana de paredes azuis que criara no espírito, sendo
ela o símbolo da espiritualidade que deseja renovar-se a todo momento. Mesmo
que minha vida se prolongue por muitos anos, não creio esteja maduro o
suficiente para enfrentar a travessia serena da passagem. Isto acontece com os seres que despertaram para a
Vossa Graça e Misericórdia.
De que me falais? O que me dizeis? Tudo tem de
ser absolutamente criado. Sou triste,
desolado, desesperançado, tenho um dó enorme de mim. É um dó tortuoso, cheio de
truques e ciladas. Parte de mim para Vós, para os vossos olhos sem sono, sem
fundo, sem margens, dá a volta através deles por todo o passado sem horizontes
e regressa depois a mim.
Medito,
Senhora, sobre o processo da morte de modo a aprofundar o conhecimento do
espírito. Sim, devo bem refletir sobre o sentido da velhice, refletir sobre o
sentido da morte, pois, do mesmo modo que o sentido das provações e
dificuldades, são eles que vão mostrar-me o significado. Tornar-me-ei mais
forte, mais corajoso, mais determinado a mudar, o bendito fruto do ventre.
Renascer é inevitável. Renascer como um
homem, um ser humano é um privilégio. É o único estado que permite realizar o
despertar de nossos pecados e culpas. O raio almíscar e gelatinoso de nada,
esvoaçante nas dobras de uma cortina adocicada: um vôo, um alçar vôo no tudo,
no nada, na imensidão de uma brisa serena e simples, em sua pequena asa
esvoaçante. Uma bailarina passando no fundo azul e dilacerante de asas e gritos
e sussurros, de uma leve brisa de nada e de silêncio. Um gemido na noite do
nada e do absoluto. Uma pausa. O eco. O eterno profundo.
O que se
ergue, desabrocha, floresce e dá frutos, sorrindo ao Sol e ao universo é a
semente que virou árvore. Mas somente pode triunfar porque o húmus, rico e
fecundo, lhe deu generosamente os nutrientes. Triunfa a águia porque abre
caminho para frente.
Algo é
mexido em profundidade, como se uma mão entrasse terra adentro, em mim, a mover
sentimentos que preferia nas gavetas. O olhar compadecido diante de uma janela,
cujo vidro não reflete minha imagem, alguém de pé, empurrando com a mão
esquerda a cortina. Assim parado, querendo não estar. Assim em silêncio,
querendo ouvir uma voz... Com todas as lâmpadas da casa acesas e ainda assim
faltando luz.
O
tempo é de salvação. De não estar sozinho. Tempo de sentir o Vosso aconchego.
De mudar e escutar Vossa voz, capaz de deter o avanço do mal na existência, de
interromper os processos de destruição da vida. Ela é uma festa, nela os
convidados estão felizes e riem do prazer e da satisfação que sentem, não é
para chorar, é para ser feliz, sentir a vocação da felicidade e da paz. Haverá sempre alguém que estende sua mão, uma
voz que responderá com carinho, socorrendo nas solidões e carências.
É próprio do espírito sentir e
experimentar dentro de si, como ressonância, todos os seres e o Ser. Lamento
sobremodo nada poder dizer-Vos, Senhora, de mais rejubilante, porque o amor que
age, comparado com o amor contemplativo, é algo de cruel e de atemorizante. O
amor contemplativo tem sede de realização imediata e de atenção geral. Chega-se
ao ponto de dar sua vida, com a condição de que isso não dure muito tempo, e
que tudo se acabe rapidamente, como no picadeiro, sob os olhares e os elogios.
O amor atuante é o trabalho e o domínio de si, e para alguns toda uma ciência.
Até mesmo o deserto adquire um sentido?
Sobrecarregá-lo de musicalidade, de ternura. É um lugar consagrado por todas as
dores do mundo. Mas o que o coração necessita e reclama em certos momentos, ao
invés disso, são justamente lugares destituídos de poesia.
Sou
chamado a existir, a participar da vida, muito além dos desencantos, dos
desencontros, leva-la a beber da água da graça. Alimenta-la do seio da paz e
não permitir nunca dores a coloquem em dúvida. Tendo sido confiada a nós pelo
Senhor, ela é, acima de tudo, um bem que requer muito esmero. O ensejo que deve
vestir a vida não pode esquecer que apesar de tantas marcas de espinhos, sua tiara deverá ter sempre as
mais belas flores do campo.
Se não erguesse os dedos, fizesse um
gesto, estrangularia toda a verdade de existir. Diria: “O jarro quebrado,
quadro desbotado, pobre trinco...” Possível fosse uma nota de violão,
constituindo qualquer som, não necessariamente música para mostrar o barulho
final destas palavras. Creio que seria capaz de revelar o como as coisas
tremelam.
Flor de desejos e rosas de sonhos... A
casa, pouco recuada, de frente para a rua. A pintura azul está queimada de sol,
e a parede, em conseqüência da chuva e do sol, bem estragada. Há lugares
escavoucados. Entre a grade e casa, jardim, grama. Quase todas as espécies de
rosas estão ali plantadas.
A vida acontece no quarto. Desenho céus
tristes nas paredes frias. E lá fora, inda que seja verão, juro ouvir chuva. O
inverno parece nunca ir embora. Falta-me uma estrela que me leve ao coração
generoso da vida, onde abraço os dias, em adoração e inocência, além das
paredes e das vozes que me querem prisioneiro em cadeias. Jogo ao chão as
letras, as rudes muralhas. Apontam-me o verdadeiro céu. Seguro a mão e com elas
caminho pelo jardim. Sempre, além da aparente chuva, aguarda-me o sol... As flores vestiram suas melhores cores. Os
soldados pararam de atirar por um instante. O vento esqueceu as folhas. Ouço o ritmar de um passo de alguém usando
sandálias. O mundo silencioso indaga-se sobre o que me falariam os homens, o
que de Vós ouviria...
Manoel
Ferreira
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