Após o intervalo entre aulas geminadas
– o primeiro tempo até às nove, o segundo começando às nove e quinze – de
Teoria do Conhecimento, sobre a carteira, encontrei um bilhete entre as páginas
de um livro que estava a ler, tratava-se de Sonho do Verbo Amar, que lia pela
quarta vez.
O bilhete
estava dobrado da forma convencional usada pelos alunos quando queriam
comunicar alguma ironia com as palavras do mestre. Fiquei surpreso apesar de
tudo, sem saber quem me escreveria, fazendo questão de colocá-lo no interior de
Sonho do Verbo Amar, já que outro havia, exatamente o em que o mestre se
inspirava para ministrar as suas sabedorias inúmeras; ademais, a surpresa se
fundamentava por não ter hábito de manter aquele gênero de comunicação das
ironias e cinismos com as idéias e pensamentos com qualquer de meus colegas.
Imaginara, em
princípio, que não eram ironias, cinismos, mas a expressão de alguma idéia que
despertara em alguém admiração e encanto e que devia ser comunicada a mim, da
qual não endossaria uma única linha, e por isso deixei o bilhete no livro, sem
o ler.
Recomeçada a
aula, olhava o mestre sentado sobre a mesa, gesticulando, olhando para algum lugar
da sala, de cima, e para ninguém em específico, imaginando eu o que teria um
dos colegas escrito no bilhete, colocado dentro de Sonho do Verbo Amar. Quem
sabe fosse uma colega que, às vezes, eu a flagrava com os olhos brilhando, um
sorriso matreiro e ávido de sentimentos que se anunciavam lívidos. Decidira não
permanecer em silêncio diante do que nascia no seu peito por mim.
Durante a aula,
algumas vezes abri o livro na página em que o bilhete jazia inerte. Brincando
com o papel, fazendo um barco, desdobrei-o inconscientemente e encontrei as
palavras escritas, a caligrafia era legível, apesar de muito feia. Lancei-lhe
uma olhada indiferente e fiquei preso a uma palavra, assustado e
estupidificado, enquanto meu coração se contraía ante o destino, que não
escolhera estabelecer, invadido por súbita perplexidade: “Enquanto isso, o
desejo de amor não vive de entregas e doações”.
A que se
referia a colega, dizendo assim? Referir-se-ia à leitura pela quarta vez? Lia e
não me dispunha a seguir os seus ensinamentos, suas lições de algo vivo vivido
no corpo e na alma? Referir-se-ia à angústia que me perpassava inteiro através
das palavras, mas que não me sentia disposto a entregar-me, não encontrava nada em que me pudesse apoiar
para nelas mergulhar?
O bilhete não
continha somente essas palavras. Iniciava-se assim, e a palavra que me causara
surpresa, que nela me sentia preso, era “enquanto”. Continuavam as palavras, as idéias, os
pensamentos, os desejos e sonhos que lhe habitavam as entrelinhas, saídos de um
coração sedento de realização, de alegria e felicidade: “Quem quiser amar de
verdade é necessário perder-se e encontrar-se, esvaziar seu coração de egoísmos
e interesses particulares. Deixe-se sobrevoar os campos de flores vivas que
colorem os caminhos até ao alvorecer de uma nova vida”.
Não mais
prestei atenção às palavras do mestre, os seus ensinamentos. Reli as linhas um
sem-número de vezes, e cada vez que as terminava, uma estranha angústia se
mostrava mais presente e forte.
Mergulhei em
profunda meditação. Ninguém mais sabia que os “sonhos do verbo amar”
habitavam-me senão eu próprio, quem lia a novela. Ninguém mais sabia que o
desejo era de neles penetrar-me senão eu. O autor escrevera em sua dedicatória
a mim: “Para quem ama e busca a sublimidade, só posso oferecer este livro,
escrito por mim, quando me senti adormecer nos braços do amor. Que você possa
descobrir as raízes da alegria e felicidade”.
Ah! como eu
desejava que alguém entrasse pela porta da sala, e de tanto querer me abraçar,
corresse no lugar de andar, me segurando, como acolhe um amigo o amigo que
acaba de retornar do abismo, e seguindo juntos pela trilha que chega às ruas da
cidade, falando de conquistas e encontros, de alegria e prazeres. Rodopiasse
enchendo a sala de risos, acendendo o fogo íntimo, qual a vela que deixara do
lado de fora da janela, no canto, trazendo-me o calor, vendo janelas e portas
sendo empurradas por uma luz e fizesse morada do meu lado.
Depois,
segurando minhas mãos, me levando para fora do frio do inverno que se iniciava
prepotente e arrogante, acompanhado de ventos. Indo em direção às montanhas de
margaridas, às flores da velósia, as
amarelinhas que tapetam toda a terra, levando-me às fontes de águas
puras, mostrando onde a vida acontece. Correndo comigo, brincando comigo, rindo
de meus hábitos e costumes de brincar com as palavras, dize-las ao contrário,
para enfatizar mais ainda a afirmativa que lhes habita, e eu outra vez
aceitando a fartura da vida, na beleza de um inverno. Eu querendo de novo
aprender a viver, achar minha razão, meu sentido, saber o que desaprendi. Eu
querendo acolher o vazio – só o vazio pode acolher o múltiplo.
Dissera-me o
autor que buscasse no vazio o múltiplo. Suas palavras enchiam-me a alma de
sentimentos inúmeros, vários, trazendo-me uma canção que ao abrir meus ouvidos
abrissem também uma porta, e essa me fizesse voltar à vida.
Por que a
ausência do abraço, que me fazia sonhar com alguém entrando na sala? A falta do
abraço não era tanto a ausência de alguém, era a ausência de mim próprio no que
estava vivendo... Não era uma solidão na carne, era na alma.
Qual o
verdadeiro sentido do abraço que me faltava? O verdadeiro sentido do abraço era
quando abraçasse a vida com o que ele me chamava. Era sentir que, enfim, estava
de alguma forma contribuindo para que a caravana da humanidade achasse o seu
caminho, encontrava a luz nas trevas...
Hoje,
terminando de ler mais uma vez Sonho do Verbo Amar, sei que a cada segundo de
luz que empresto ao mundo, mergulhado nos desejos, nos sonhos, perco algo de
mim, e, para quem ilumina passo a passo os caminhos, uma noite não é mais
noite, é menos uma noite.
Se me sentisse
inspirado a dizer algo ao autor que me doara com tanto carinho e amor a sua
obra, fruto de sua juventude, quando os sonhos se anunciam em borbotões, diria:
“O desejo de amor só vive de entregas, onde têm raízes a iluminação e a
consagração, cujos frutos são os sonhos que alimentamos e AFAGAMOS”. E se mais inspirado me sentisse, mostrar-lhe-ia
os caminhos percorridos até aqui, tomando não apenas a sua obra como objeto e
sujeito de contemplação, mas me servindo das palavras que escrevera alguém,
deixando em seu livro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário