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terça-feira, 24 de novembro de 2015

ANTES MENOS.../ PERSPECTIVAS E SILÊNCIO Manoel Ferreira



Oh! doces horas de suave enleio! Oh! sereno enleio de olhares distantes!
Oh! distância de olhares serenos! Oh! enleio de serenos olhares distantes!
Oh! olhares en-si-[mesmados} de serenos enleios!
Horas de suave enleio – amor, fé, esperança...
Elevo a alma aos auspícios dos desejos mais profundos
Sonhando o encontro do espírito e a águia
Que sobrevoa os abismos e silvestres florestas.
Sereno enleio de olhares distantes – confiança, força, certeza de outras
Sendas da realidade e do irreal,
De florestas silvestres, de chapadões desertos e solo trincado,
 a serem per-corridas com determinação,
Insistência e persistência...

Antes menos... perspectivas e silêncio
Silêncio e imagens a tecerem
Da distância as linhas de encontros e desencontros
Amor nas mãos feitas concha,
Carinhos e ternuras no brilho dos olhos,
Meiguices nos lábios finos e cerrados
De palavras percucientes e sentidos abstratos,
De entre-linhas ávidas de outros horizontes
E uni-versos de poiésis e poesia,
De linhas transparentes e nítidas,
Construídas nas estruturas do desejo do belo,
A estética das vontades e volúpias,
                   - Olhares...
                   Con-templação...
Na metáfora da memória, na silepse da arte,
Nos eufemismos que envelam as morais
Tradicionais e retrógradas,
Envoltos no sudário dos engenhos e estratégias
Con-templação nas pupilas dilatadas,
Nas retinas as imagens cientes do inconsciente
De suas mensagens e realidades.

Já não vou à busca da essência – o que me importaria nesse instante, se me re-velasse em toda a sua pureza, sublimidade, onde nenhum diamante poderia cortar-lhes as dimensões sensíveis, como é de sua natureza fazê-lo e realizá-lo? Na pureza e na sublimidade a minha verdade maior estivesse não apenas inscrita, escrita, mas biblizada na minha contingência, quem me dera?! Ficaria boquiaberto de tantos êxtases e volúpias? As pupilas se dilatariam em conseqüência de a alma haver-se insuflado, empolado, aberto os seus cofres mais secretos, de as idéias e pensamentos haverem-se re-colhido na caverna do in-ec-sistente, de os instintos haverem-se a-colhido o que há de mistérios na carne e nos verbos que nela se trans-formaram, que con-jugaram instintos e sensações? Quiçá me sentisse pleno, sublime, na alma o frescor de uma manhã de in-verno, na beleza de seus panoramas no descampado,  no espírito o vôo da águia que desbrava o infinito, descortina o nada de todos os horizontes e uni-versos, dos urubus que sobrevoam o Quartel da Polícia Militar – ah, ah, ah!... não é piadinha, nem é sátira, já que só sobrevoam um lugar,  quando sabem de seu preferido alimento bem próximo, têm direito insofismável a ele, enfim a vida está em jogo, resido ao lado, observo-lhes de quando em vez, e me pergunto na maior de minhas sinceridades, honestidades e seriedades: “O que há de podre ali? Sei que na Ditadura Militar tudo era podre na Polícia, todos os valores e virtudes foram cerceados em nome de suas ideologias e interesses. Há coisas que nem os séculos e milênios conseguem trans-formar, dar-lhes novas imagens e realidades. Ao contrário, aumentam sem limites e fronteiras”. 
Talvez me sentisse no paraíso terrestre. Para que essa pureza iria valer-me? O que faria com ela?  O que me diria a essência? Noutros momentos tive essa necessidade, mergulhei-me por inteiro em minha intimidade, a luta fora em vão, as experiências e vivências eram ínfimas e miseráveis para esse empreendimento, e mesmo neste instante sinto que não houve quaisquer mudanças; agora, não tenho essa necessidade, esta manhã de ainda in-verno, em breve se re-velará a primavera, é outra em minha vida, e quero desfrutá-la calma e serenamente. Tudo o que me satisfaz e contenta, extasia-me, é degustar as emoções que me perpassam todas as dimensões sensíveis, pensar estou sendo outro, sentir a outridade em mim dentro.
Confesso estar vivendo sob inúmeras pressões nos últimos tempos, sensível que sou estão mesmo exercendo fortes influências no emocional e psíquico, estou ressentindo bem profundo o que tem acontecido, mas não me entrego a elas, tenho a catarse nas mãos a todo momento, podendo utilizar-me dela quando me aprouver, vomito, vomito, vomito, sigo em frente – se vomitasse na cara dos responsáveis por meus sentimentos de não, só lhes mostraria o poder de meu estômago de virar-se às avessas. E agora não estou a vomitar, re-flito sobre os ventos de minha ec-sistência, emoções que me perpassam todas as dimensões sensíveis, as que se me a-nunciam do mais profundo de meu espírito e ser, mas as das pressões sofridas estão nas suas além-linhas, não são puras, cristalinas, mas são verdadeiras. Ao longo da vida, aprendi a ser sincero comigo, isto, obviamente, ajuda-me a distinguir, não com clareza e transparência, discernir o trigo do joio dentro de mim, con-templo o que me trans-cende, busco trazer-lhe à realidade, assim sou capaz de superar os problemas, de suprassumir os valores e virtudes, sentimentos e emoções, silêncio e sublimidade que me habitam o ser.  
Aroma incerto no vento, canto erguido algures dentre as terras lavradas, dentre os pastos de capim seco, luz que sobe de além da montanha, um raio de sol irisando a poeira suspensa na metafísica das misérias e pobrezas, no abstrato das fomes e sedes seculares, no solipsismo das angústias e tragédias fugazes e eternas, são a súbita re-velação de uma realidade perdida, de um tempo perdido, e jamais reencontrados ou referenciados, porque são só apelos, vozes inaudíveis, derradeira origem do mundo original, profundeza sem fundo, abertura ao vazio, limite do ilimitado índice que está para lá de todos os índices, de todas as cláusulas e parágrafos ilícitos, de todas as constituições ilícitas e jurídicas, se a-nuncia em mim pela pura suspensão, um ouvido atento e nenhum rumor, um olhar incerto que procura o que não há, o que não ec-siste nem algures, um recuo brusco para além de tudo o que é referenciável, representável, um questionamento que não duvida de sua razão, uma cegueira trans-lúcida de uns olhos opacos e abertos, uma interrogação que não interroga, um encantamento de nada, um ad-vertência, aviso de nada. Ouço-os de novo a esses cânticos anônimos que sobem das regas algures, em parte alguma, como voz da própria terra, como sussurros e murmúrios de suas cavernas, buracos e grutas, como lamúrias de suas próprias entranhas rasas e profundas, eu as revejo a essas luas enormes na ascensão majestosa de uma noite quente de Verão, eu os sinto ainda a esses aromas no vento e que aspiro ainda de narinas dilatadas para que a sua realidade entre em mim e seja real, que os possa sentir e deliciar-me com eles. E um trêmulo a-núncio fala nas origens do meu ser, de minha obra, de meus desejos e vontades de realizá-los com perfeição e apreço, no que os trans-cende e assoma no ilimitado de mim. Voz obscura de uma alegria obscura, vértice de um encontro comigo, ó realidade perdida, imagem desvanecida no horizonte dos horizontes, voz submersa a todas as vozes, e que fala ainda quando elas se calam e eu ouço sem ouvir, e se a-nuncia quando tudo se esgotou, e bate obliquamente como pancada leve no ombro, e que se abre além da hora mais longínqua como uma varanda, e que irradia ainda de impossível para além de todos os possíveis, e que recusa todas as razões para ser e é ainda, e que inicia a minha vida onde ainda não há início, memória de um tempo antes do tempo, de um começo antes de seu verdadeiro início na origem dos segundos e milésimos deles, do lugar do meu nascimento verdadeiro, sede e princípio de divindade que ainda não se corroeu. Eis porque a minha saudade a re-conhece a essa origem absoluta que não é sequer “memória do céu”, porque o próprio céu é já uma explicação desta voz mais antiga do que ele, é já uma concretização, ainda que para lá do mundo, de um apelo que vem de além do mundo, de além de todas as possibilidades de sua ec-sistência, do aquém de todas as alternativas de minha historicidade e historial-idade.      
Já não viso o além. Como é belo o mundo, para quem o olha, ingênua e simplesmente, sem nada procurar nele, sem nada desejar dele, sem saber o que o habita ou não. Como são esplendorosos os astros e a lua, os arroios e as ribeiras, as florestas e os abismos, o porco e a anta, a flor e o bem-te-vi, o sol e as estrelas! É prazeroso e ameno passear pelo mundo, perambular pela cidade, na sombra de por baixo das árvores, no sol escaldante, atravessando as ruas e avenidas do mundo, imaginariamente, de Curvelo, contingentemente, de modo, estilo e linguagem suaves, como quem acabasse de despertar e se abrisse a tudo quanto o rodeasse, a tudo que se lhe a-nuncia de espiritual e sensível, além da contingência, sem a menor hesitação, sorrindo de tranqüilidade, apenas curtindo a natureza,  e mesmo os inúmeros terrenos baldios espalhados por toda a cidade, apenas sentindo as sensações de prazer por estar vivo, por ser vida, por sonhar com a esplendidade das esperanças e fé mística de meu povo. 
Diferente é o sol que incide seus raios por cima de minha cabeça; diferente o nascer do sol de mim, ele é a manifestação sensível da natureza e da divindade sua, e eu, que sou as vivências e experiências do passado, do presente, do futuro que me virá a partir de minha consciência dos desejos e vontades do ser, e mesmo de meus enganos, mentiras e dissimulações de minha natureza; diferente o “pôr do sol” a cada dia, o panorama físico é disso testemunho real; diferentes são as estrelas que deslizam e caem no per-curso da madrugada, e para quem observa com atenção isso sente sua vida em todos os momentos em que havia a desolação de todas as dúvidas e medos do futuro e do presente; diferente, a neblina da manhã, após a chuva da madrugada; diferente o calor do verão, após as duas da tarde, do in-verno, após as cinco da tarde; diferentes as noites de inverno, primavera, verão, outono, é só observar o céu entupigaitado de estrelas e as fases da lua; diferentes, os diálogos de quem ama e tem consciência de seu amor, de seus desejos de divindades das emoções e conflitos avessos, de quem odeia e é inconsciente de seus valores; diferente, a água da cisterna e do regato; diferente o gosto do maxixe e da jurubeba; diferente, o aroma da manga e do pequi, da banana e goiaba; diferente o sabor da palavra amiga, solidária e compassiva, da palavra que só tem interesses em persuadir e convencer disto e daquilo.  Breves se tornam os dias; efêmeras as noites. Cada hora voa, impelida pelo trabalho contínuo, pela busca do pão de cada dia, pelos desejos da verdade, pela esperança da fé. Passam vazias estações. A flor segue trans-colorindo a tela vácua do horizonte, sem saber que ingratos olhos distorcidos na distância são labaredas extintas, avesso riso, in-verso amor.
De todas essas diferenças que acabo de elencá-las, devendo confessar que num mergulho a que me ad-mira muito, não pensava que fosse capaz dele, seguindo o ritmo e a musicalidade das a-nunciações do espírito, das nuanças de dores e sofrimentos, comungados às emoções e sentimentos que me povoam, aos questionamentos e dúvidas, aos problemas e conflitos, traumas e fracassos, frustrações e tragédias quotidianas e diárias, a mais importante é a de mim ontem, antes de todas as pressões, hoje, consciente delas e como estou con-vivendo com elas, os caminhos que estou traçando para suprassumi-las e superá-las, serão novas experiências e vivências, serão outras sendas de minha alma a serem degustadas e amadas pela sabedoria que me proporcionaram, pelo que me incentivaram na longa jornada através da vida e de seus problemas a serem vivenciados com dignidade e orgulho.  
Já não aspiro a eternidade. Como é mágica a vida que caminha em direção à morte, sem nada questionar, sem nada desejar, sem sonhos e utopias, só problemas, dúvidas, desconfianças, medos e inseguranças, pressões, discriminações, preconceitos, só a certeza de que não haverá mudanças, transformações, só a ciência do fim e do esquecimento, nem mesmo a querência da redenção e ressurreição, do paraíso celestial e do inferno. É maravilhoso o quotidiano de levantar cedo, trabalhar o dia inteiro, ser desrespeitado, negligenciado, roubado, sofrer assédios morais, assassinado hediondamente, não ter o que comer, não ter o que beber, deitar, dormir, sonhar ou não, fazer amor com a esposa, companheira ou servir-se de outros meios para o prazer e o gozo; é dignificante não desejar valores eternos e imortais, não dar a mínima atenção para as virtudes, para a verdade.

Já não vou à busca da essência;
já não viso o além;
já não aspiro a eternidade;
antes menos... perspectivas e silêncios
são as querências, são as fábulas
e lendas de outroras e recentes verdades;
são os folk-lores das ad-jacências
culturais e artísticas;
são as mentiras e omissões
da experiência e vivência da vigília.

A noite é só tocaia; um descuido é perdição. Cachorro late-mordendo, cobra dá bote e se esconde, jegue coiceia e refuga, filhosdaputa rezam o terço  a Deus e ajoelham diante de Mefistófeles,  sapo coaxa e dá pulinhos no brejo: “Viver é muito perigoso”. Este instante é uma tristeza dupla, uma angústia múltipla, camuflada em silêncio: momento de coisas finalizadas como se cada corpo, desfeito em poeiras metafísicas e solipsistas, tornado em cinzas homéricas e antigas, repousasse no sono da de-composição, na esperança de só pó misturado à terra. A vida não tem fundo, não tem cancelas o chapadão, as porteiras do sertão foram todas derribadas, encontram-se escancaradas a deus-dará, o menino da porteira já não mais está aqui para re-criá-las, subir nelas e abri-las para o boiadeiro tocar a sua boiada pela estrada de Ouro Fino. Perdura como a bolha que a boca sopra e o fragmento explode. Neste segundo, todo uni-verso em movimento é de nula sign-ificação. Este tempo metamorfoseado em lenços brancos expira cheirando recordações, exalando memórias que não se apagaram, na pronúncia rouca da palavra, na inutilidade do corpo na distância, no nada dos instintos no que é próximo e presente.  
Sou desfiladeiro onde a palavra se perpetua, sou abismo onde o sentido se trans-figura, sou caverna onde o meu ser trans-cende e se metamorfoseia em desejos e vontades da realidade, do real e da verdade. Retida em minhas paredes, a voz resvala em ecos. Cultivo o silêncio, a interna amplitude da fala num diálogo oculto, num monólogo omisso. Falo na linguagem dos que me amam, não dos que me odeiam, sentem invejas, ciúmes e despeitos, têm os seus direitos inalienáveis e insofismáveis.  A palavra teço-a com o amor, apreço e acuidade do tecelão, entrelaçando fios no tear. Bordo a palavra, idéia a idéia, linha a linha, sentido a sentido, ritmo a ritmo, alinhavando a musicalidade que precede todas as minhas razões di-versas, ad-versas e in-versas. Arquiteto os sentimentos e emoções, a cada movimento de desenhar o símbolo, finalizando o enredo, arrematando a estrutura nas entre-linhas de seu in-terdito silêncio.  A palavra e o escritor germinam na mesma cova e, juntos, vão no mesmo passo, porque um no outro se completa, um no outro se comunga, um no outro se adere – que tese se mostra a partir dessa comunhão? Ou que antítese é a idéia transparente?  Disse-o antes: já não vou à busca da essência, já não viso o além, já não aspiro à eternidade, menos ainda agora que desfruto outras sensações e sentimentos no íntimo, não os sei, não os compreendo, não os entendo. Nada mais me diz qualquer respeito ou sentido.  Se dissesse, antes menos respeito eu teria, preferiria a negligência absoluta ou deitar-me no travesseiro do nada e dormir o sono do abismático solipsismo.    
Sobem aos céus os clamores dos homens, lastimam a triste sorte, o enfadonho destino. Alguma coisa se rompe na região secreta onde se ocultam os gemidos, as lamúrias. Algo como dardo ferroando o alvo. Alguma coisa mancha, grudando, maculando e emergindo no amargo da saliva; num esmorecimento, algo sangra. Arde como a carne repartida do próprio corpo... A carne guarda o cerne de alguma vida ou mesmo de alguma reencarnação. Um compromisso. Uma responsabilidade.
O caminho da chuva é o labirinto escuro do interior da terra; vertical travessia de ventos e cores para a fragmentação do solo. Loucas miragens, roucas linguagens.  Sombra branda e definitiva, eternizando no sugar das raízes ou no filtrar das pedras, no mesclado de poeira e areia. Entre uma e outra chuva, todas as águas numa fundição de gotas. Recordo-me das gotas da última chuva deslizando suavemente no vidro da janela de minha alcova, quando sentia bem profundo a longa viagem que empreenderia em busca de todos os sonhos e quimeras que alimentei pela vida, afora as ilusões e sorrelfas que elucubrei nos instantes de solidão e desolação perenes.
Ando em busca da estrela que brilha na madrugada. Caminho pisando campos e planto em cada canto que passo a verde esperança da flor. Apanho o cristal que germina nos múltiplos úteros do chão. As mãos unidas em concha colhem água em qualquer fonte e afagam o broto que nasce desta fixa floração.  Ando para a luz, levando o fardo camuflado: velada canção de versos e estrofes perenes, de sonhos de ritmo e musicalidade, de tragédia e enredo. Esforço-me para não ruir seco e falido, para não cair duro e fedendo, para não ficar de pé, esquecido de que já morri, como o é a modernidade, como o será a pós-modernidade. Escuto o cantar do galo, o cão ganindo no escuro, pio de pássaro nas moitas. Descubro no boi berrando, no relincho dos cavalos, no grunhir dos porcos, no entrelaçamento dos vermes de todas as laias e estirpes, num lobo uivando na serra, no sapo coaxando à beira do brejo um som recente – animalesco pré-(s)-sentimento – neste tempo que varia como vento mudando o rumo, quando a chuva se anuncia, a seca continua, continua o tremer do asfalto, se olhado de cima para baixo, vice-versa, na distância plana e superfície reta. Felizmente nenhuma voz humana ouço – ouço a minha e agradeço aos céus o privilégio de distinguir as suas nuanças de dor e sofrimento -,  é hora do sono, sonhos e pesadelos di-versos. Vou à busca da estrela que brilha na madrugada. Sem vacilar, vou cantando buscar um facho de sol – um clarão de liberdade – para re-partir num sorriso no dia que vem raiando, e que será outro na outridade dos tempos e de minha ec-sistência póstuma e póstera. 
Fraca possibilidade esboça-se e desaparece, roendo minhas entranhas, re-vezando mordaça e escuridão, em que tateio o trajeto igual sombra que em sombra finda. Rastejo e sangro, arrasto correntes, mas sigo. Seguir a estrada da vida – por mais que essa imagem seja lugar-comum e dos mais ridículos – é isso: estar consciente e aberto a todas as coisas que se a-nunciarão e re-velarão, estar com desejo alucinante e efervescente de vivenciá-las a todas, experimentar-lhes o sabor, ser o outro de meu eu, e sabendo que em breve tempo tudo se desmoronará e será preciso viver e enfrentar outros problemas e conflitos. As correntes de hoje serão as liberdades da alma e do espírito de amanhã; o sangue que jorra a deus-dará de hoje será as esperanças de silêncio, sublimidade, completude e eternidade de amanhã.  
Já não tenho querências da imortalidade.  Deixar um dia tudo acontecer, deixar ser, e saber: o que acontece é bom, o que é é. Também a coragem deve um dia distender-se e à beira das cobertas de seda, sobre si mesma dobrar-se. As altas chamas da alma tremulam, vozes estrugem, confusas canções jorram dos cristais e das luzes; e finalmente dos ritmos amadurecidos brotam os passos ritmados, brota a dança. A hora sussurrante se escoa no sonho da noite. Ando às tontas que nem sombra combalida, meu coração está sem pai nem mãe, sem jeito, e na boca o verbo é um beco sem saída. Minha palavra estéril, meu gesto vão, minhas atitudes vazias e inúteis, meus medos acumulados na noite, minhas angústias memorizadas na luz brilhante das estrelas e lua – infinda taciturna solidão. De repente, chega num relâmpago, luz que cega e marca feito açoite reverberando golpes no meu âmago.
Um amante apaixonado não vive mais em si mesmo, mas na pessoa que se apoderou do seu coração, sentimentos e emoções, idéias e pensamentos, desejos e esperanças, fé e confianças, e quanto mais sai de si mesmo para trans-fundir-se no objeto de seu amor, tanto mais sente redobrar-se o seu prazer, dividido, a mente nas nuvens, os pés pisando a terra. Não teremos igualmente razão de qualificar com o nome de furor o próprio estado de uma alma devota que arde de desejo por alcançar a perfeição, a eternidade, e que não procura senão sair do seu corpo pelo desprezo dos sentidos? Lentamente, desabrocha e amadurece no meu espírito a percepção, o conhecimento do que na verdade significa sabedoria e deve ser a meta das minhas buscas prolongadas, conjugar verbos perfeitos e imperfeitos, tecer sentidos nas palavras menos que perfeitas, menos que eternas, menos que compreensíveis, inteligíveis. Nada é senão predisposição da alma, a faculdade, a arte secreta de conceber, a cada instante, em plena vida, a idéia da unidade, de sentir a unidade, de encher dela os pulmões. Pouco a pouco, essa certeza cresce em mim e meu reflexo aparece no rosto velho e todavia infantil, revelando harmonia, ciência da eterna perfeição do cosmo, sorriso, unidade.
Homem novo recria-se-me na transparência do meu ser. Sinto-o leve e lúcido, instantâneo e incandescente, chamejante e ciente, por entre as cinzas que o fogo deixou. Frente à noite que submergiu os homens e as coisas, frente à anulação da vida transacionável e plausível, na recuperação deste início do mundo, o homem primordial que em mim sobe tem a face atônita de uma primeira interrogação. E não é isso uma imagem, uma figuração com que procure, contra um hábito endurecido, abrir os olhos a um modo de ver, a um sentido de intuir, perceber as verdades e as ilusões delas. 
Voz aberta ao insondável, eis que, porém, reconheço agora que se abre apenas ao insondável de mim. Regresso a mim, ao meu corpo distinto e classificável onde todo o milagre aconteceu. E pergunto-me, suspenso, como foi possível, como é que uma breve semente abriu assim até essa Voz, até ao silêncio donde essa Voz  se re-velou, donde essa Voz falo, donde essa voz gritou a todos os ventos os seus medos e esperanças. Frente ao grande sono dos homens que o esqueceram, na atenção inexorável ao sem limite de mim, a minha vigília arde como um fogo assassino. Lume breve na minha intimidade, na brevidade de um pequeno ser, eu, anônimo e avulso, ocasional e frágil – eu. E todavia, esse lume vibra de vigor, brilha único e intenso contra o assalto da noite, contra o salto do sono ao sonho, contra a travessia do sono à vigília.
Trago em mim a força monstruosa de interrogar, mais força que a força de uma pergunta. Porque a pergunta é uma interrogação segunda ou acidental e a resposta, a espera para que a vida continue a sua jornada sem limites em busca do “Ser”, em busca de suas águas límpidas e cristalinas.  

Já não vou à busca da essência;
Esplendido paraíso, a memória,
De  onde brota, súbito, o pecado,
De onde surge, de repente, as lamúrias
E arrependimentos.
Anoitece de novo a mesma história,
A mesma sucessão de vazios e nonadas,
Adeus de adão ao éden tão con-templado,
Sonhado, desejado, querido.
Já não viso o além;
O desespero entre quatro paredes,
Os desejos con-vertidos em prantos,
As vontades derretidas em lágrimas,
O demônio a saciar as sedes
De outrora antes do dilúvio,
De ontem depois da rosa de Hiroshima,
É em vão a intercessão dos santos.
Já não aspiro a eternidade;
O que a idéia pensa e o peito sente
É como areia ao léu da viração,
Maré baixa que vira de repente
Bravias éguas soltas num tufão.
Já não tenho querências da imortalidade.


A noite é calma, um bulício remoto agita a palma da vasta  mangueira, do outro lado da rua. Tem pérolas o rio, a noite, lumes, a mata, sombras, o sertão, perfumes. Em toda a fronte há luzes esplendorosas e mágicas, em todo o céu estrelas, em todo o campo flores. A águia da liberdade, no imenso itinerário, voa às cordilheiras grandes. Quebraram-se as cadeias, é livre a terra inteira. A humanidade marcha com a Bíblia por bandeira. Quero empunhar a lira, quero dedilhar-lhe uma melodia. O canto da agonia arrojo à terra, aos céus, e ao vácuo povoado de tua sombra, ó Pai Eterno!

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