Então um silêncio, longo, enorme,
estende-se pela sala de estar. Ouço-o nítido, metálico, vem do lado de lá das
arribas, vem do lado de cá do subsolo. Aos confins da eternidade, ao vazio do
horizonte... Detesto as recordações, não tenho passado, não o desejo. Rompi com
os ajustes de minérios. Tenho diante de mim o original de que não sou senão a
criação; a essência encarnada de tudo o que me falta: esta faculdade de sentir
prazer com a consciência, de impor-me à sorte e de não ceder a mui poucas
metamorfoses. As letras tornar-se-ão o verbo encarnado. O ardente aspirar pelo
reino do espírito em eterno conflito com os mistérios das águas em mim, com a
inocência da natureza, igualmente sagrada e fascinante.
A lenta decomposição da felicidade que
me anestesia para me fazer enganar que o tempo passa em vão e que ando em
passos lentos, um mergulho em mim com uma lentidão precisa e segura, um nada
irreal, de escafandro. Não é verdade que não exista amor feliz. O que acontece é
que a felicidade dá tempo ao tempo e a agonia busca solidão de arriba.
Por limites, as águas apartam da morte
olhos perspicazes, não perturbados pela angústia. Muitas vezes. Muita vez
quando a luz se apaga sobre a minha insônia, pergunto-me - fazia-o mais
assiduamente - com os ossos entre(dedos): de onde vem esta indiferença? De onde
me vem este mal-estar que não me permite estar em lugar algum? Deixa-me quieto
a perguntar. Quieto e confortável em presença de alguém? Costumava acordar no
meio do sono, respondendo a perguntas não me lembrava haver feito - sabe que,
ás vezes, digo algo e não sei o que digo, minutos após, - ao menos
articulado.
Talvez seja infame, mas é o único modo
de orientar na forma como experimento a realidade. Afigura-se-me serem a subjetividade,
a sensibilidade humana. Todos os caminhos levam a elas. Busco o ritmo de árias
antigas. Ainda em sustenido pânico, vejo: aquilo pelo qual me sinto desde
sempre fascinado não é a morte propriamente, é a beleza, a beleza que busco
permitir-me sentir. Ao invés de evitá-la e fugir, re-visto-me de calma, vejo o
que até então só me permiti furtivamente: eu, na minha perigosa integridade,
afogueado e lúcido. Estou alegre e agradecido de sentir ainda em meu coração,
de voltar a olhar a própria vida com olhos in-flexíveis e res-plandescentes, em
que volto a re-conhecer na casualidade um destino e nas ruínas de minha vida
fragmentos espirituais, à luz do passado que no seu crepúsculo ainda irradia um
doce resplendor, o homem cheio de fé e de alegria, sempre ao encalço do grande
e do eterno, nunca me contentando com o rosto muito bem delineado e modelado,
no qual não faltamnem o célebre fogo do olhar nem os passos de solitário com
uma rápida sombra de amabilidade e cortesia, detalhes que devem exigir a sagrada
chama de minha juventude há tanto tempo extinta. Só me recorda o seu jeito
demasiado imperfeito - aprendo nos minutos a dialética do interior, envolvida
na relíquia do sentido e do silêncio.
A fim de que me não entristeça,
interrompo-me. Intenciono ser, isentar-me, ir ficar no espírito, ser ele,
entregando-me inteiro. Nenhuma satisfação me parece pertencer. Sou tão feliz, e
de tal modo mergulhado no sereno sentimento da minha própria existência, que me
esqueceu a minha arte. Sendo o único a gozá-la, faço-o tão somente por orgulho
e picardia. O desejo de amor in-terpenetra á lembrança do labirinto cujo
estranho e patético rumor chega através do êxtase. Talvez com a linha do sol
crocheteie imagens de um re-nascer de espectros. As palavras, os modos, as atitudes,
a voz dócil e meiga, o corpo são uma saudade plena e absoluta da vertigem do
despertar.
As letras suspensas no tempo vão
imprimindo no espaço imaginário do papel a lingüística do momento, a
estilística da intuição e percepção de um desejo de expressão, linguagem da
esperança e do silêncio. Nos ermos da fantasia somente ilusões e sonhos
componho. Emitem, no roçagar da pena, o ruído com grande energia e esfrego as
mãos como se estivesse meditando, e quando me pergunto se expresso a verdade
que me a-colhe no re-colher da idéia, respondo: "Ora, fique quieto e se
deixa levar".
O porto, onde minhalma, enfim, repousa,
con-templa o mar. Toda forma não assume senão por ínfimos momentos o mesmo
ser.A lucidez das imagens traz-me este silêncio cheio de palavras. Por
insistência, um quadro surge diante dos olhos, de início de maneira hesitante e
aos pedaços, lembranças possuem a qualidade de vivacidade plástica, que é um
tipo "visual".
Memória do futuro e destino do passado
possam parecer contraditórias e arbitrárias, e na verdade o são e os seus
conceitos e significados se chocam e se contradizem (comumente a memória diz
respeito ao passado e às coisas ausentes, mas vivas, ou melhor - mortas, porque
acontecidas, a matéria do destino é sempre o futuro e as coisas latentes,
lívidas, ainda por acontecerem), só recorrendo a uma arbitrária e contraditória
aproximação, a um símile ou metáfora.
Termina um corpo. É preciso entrar nele
para extrair um diamante. Tocar os seios. Para isto, penetrar na luz. Deixar
passar sobre a cama a sombra estarracada. Qual seria a reação da carne? A
resistência dos ossos? Olhos. Sono dribla retinas. Não posso aperceber-me de
que é o seio esquerdo. A idéia do suplício certo. Se o que dorme despertasse.
Sangue do braço direito que corre em fio. Sensação de enjôo. Arestas respiram
dimensões. O TEMPO mole no quarto A distância esmoe cigarros amassados no
cinzeiro.
Só - as horas. Longas em cúpula.
Expandem-se além da cidade. Embriaguês frisa de loucura o vôo que me podia
lançar da janela.
Com-templar a fonte originária de águas
límpidas é viver a plenitude da vida na sabedoria da experiência, é dizer sem
explicar, é ultrapassar o absoluto provisório desta vida.
O ruído do vento que agita as galhas e
folhas, os fios da rede de eletricidade, a emoção não tem fim... O desejo de
amor só vive de entrega, onde têm raízes a iluminação e a consagração, cujos
frutos são os sonhos que alimentamos e AFAGAMOS, e quem ao outrem que en-vela e
re-vela, não poderá Senhor, alguma vez, desalgemar de mim as mãos rápidas de
gestos, deixando-me-ser aos olhos e ouvidos atentos e á minha nítida
simplicidade de alma? Sei que quando acontece de dizer a alguém de meu amor, do
que estou a sentir, con-templando a vontade do frescor que emana do solo a cada
passo que dou no campo, em relação com a natureza, uma nuvem passa os dedos por
cima da luz e corre um sibilo de vento vago de longe na tarde, de entre as
serras, às vezes calma, ás vezes tranqüila. O que vejo das coisas são as
coisas. Os pingos de chuva que molham as flores e o solo não são senão os
pingos de chuva. A brasa que queima o fumo do cigarro não é senão a brasa.
Sendo por isso que lhes chamo de pingos de chuva e brasa. É difícil dizer a
alguém do amor que sinto: levanto uma taça às águas da fonte, e bebo o vinho sem
ouvir nada com os lábios.
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