Contemplo
o fogo, as nuvens, o aspecto nublado do dia, ocasionado por uma chuva que
acontecera por volta das onze horas até às três da madruga, e por ser um região
alta, cercada de serras, o frio está intenso.
E quando surgem presságios – não é incomum, se o
for, nada me desautoriza, haver presságios inúmeros num instante de
contemplação do fogo que me invade interiormente, e só disponho da habilidade e
inteligência, misturadas às engenhosidades e, se ouso dizer, à intimidade com
as palavras. Converso sozinho, e com estas mesmas palavras, enquanto, encostado
ao parapeito de minha sacada, olhando a NOITE que se desponta viva e escura e
misteriosa, revelando quem sabe os segredos mais profundos que a alma me
habitam, e me sinto ademais jubiloso e orgulhoso de tudo o que me sucede, algo
divino, mágico, e para não acabar com isso é que me contento com a
contemplação.
As vozes que em mim soam, e em minha alma
abandono-me a elas sem perguntar se isso convém ou não. Daqui a algum tempo,
ininteligível, imperceptível a olhos nus, que me escapam inerente à
vontade, conseguirei me perder, entrar
na escala burguesa e fossilizar-me – entrar na escala burguesa outra coisa não
significa senão sentir prazeres imensos, um alívio no peito, enfim, e o que
mais se deseja nestes espíritos, a melancolia e a nostalgia, nada há de mais
esplendoroso para eles.
Muito diverso é quando minha veneração pelo frio,
pela rua solitário, nela não reconhecendo uma viva alma que a atravesse, e meu
carinho são alheios a todo hábito e correspondem a uma pura inclinação pessoal,
uma tendência para a alegria e o prazer sem nada que os sustente, aliás,
havendo razões para que os desaprove e censure, quando de todo o coração sou
homem sobremodo interiorizado, em mim guardo dentro os sentimentos mais
esquisitos e divinos, não ousando revelar, se o fizesse, com certeza, não
ouviria de ninguém senão risadas as mais sarcásticas e irônicas, um perfeito
visionário, um otário de grande estirpe, um idiota, por achar lindo e
maravilhoso não sentir melancolia e nostalgia em noite de inverno intenso.
Cada um dos pensamentos que me afastam ou volta-se
contra meu próprio coração, como uma seta envenenada, e cada um dos gestos que
revelo acerta-me de volta no rosto.
Naquele que acredita seguir uma moral superior, uma
ética humanística, surgem as idéias de “traição” e de “ingratidão” como
censuras e estigmas vergonhosos, e o coração, assustado, foge temeroso para
refugiar-se nos interstícios, nos abismo e desertos vales das virtudes, sem
resignar-se a crer que também essa ruptura com o que sucede a todos numa noite
de inverno, se estão ou não recostados ao parapeito da sacada de cassa ou
simplesmente trancafiado num quarto, e presentes os medos e dúvidas atrozes,
há-de ser consumada e o laço rompido.
Sabe o bom Deus como nascem tais palavras, como as
deixo serem pronunciadas, a espontaneidade, a hesitação, até mesmo a volúpia
com que sou tomado por longos tempos, desde horas e segundos imemoriais.
Digo-as sem más intenções e sem ter a mínima idéia da tragédia que podem
causar, dos íntimos desfacelados e desesperados que podem advir devido a estas
palavras.
Em verdade, sinto que digo algo cujo alcance
ignoro, cedo a uma ocorrência insignificante, um tanto jocosa, talvez um tanto
viperina, e essa ocorrência se transforma em destino, muda-se em fatalidade
inexorável.
Enfim, o que ocorre e residir num lugar onde tudo
cheira a velhice, a antiquices, a coisas que são impossíveis de retornar, e um
odor fétido por todas as ruas e becos, devido aos casarões velhos, as casas
antigas, e os rostos resplandecerem as primitivas ações e reações. Nada há que
possa identificar melhor a fatalidade. Condenado a viver no passado, sem a
mínima possibilidade de algo presente, de algo que esteja acontecendo agora, ou
seja próprio de agora.
Mas, para mim, isso porque nutro e alimento
sentimentos ainda com um quê de pureza e inocência pela cidade, por sua
arquitetura construída no fundo do abismo, tudo isso é mais curioso e
interessante do que realmente vital; soa-me a erudição, à laboriosa
investigação sob as ruínas de mundos passados, e de repente, sinto grande
repugnância por toda essa atitude espiritual por que sou tomado numa noite de
inverno intenso, por haver chovido durante a madrugada passada, e por todo o
dia fizera frio intenso, contra o culto de mitologias e esse mosaico de velhos
hábitos e costumes, de costumes e de religiosidades existentes na comunidade.
Pela manhã, acordara com uma fome sem fronteiras,
ocasionada por não haver jantado, não haver sentido qualquer desejo de
preencher o vazio do estômago com alimentos, e decidira fazer uma farofa de
ovos. Acendi o fogo, coloquei óleo, cortei as cebolas, e pedi à senhora da
pimenta pequena e redondinha que recebera de agrado de uma de suas
clientes. Não é pimenta que arde muito
se esmagada com os dentes do garfo, espalhada na comida, mas se mastigada arde
um bocado. Digo-o por haver ousado
mastigar uma, e a conseqüência fora tomar água até ao final da comida.
Por volta do meio dia e meio, a senhora chegara
para o almoço, e de novo perguntei se ela podia arrumar-me mais de suas
pimentas. Disse-me não ficasse a comer pimenta toda a hora, isso faz um mal sem
limites para o fígado.
Comentara então que se a pimenta fosse esmagada e
espalhada na comida não ardia, mas se mastigada resplandecia. Estava mesmo mui
bién inspirado, pimenta resplandecer é realmente muitíssimo inusitado, até
revelação artística muito original, coisa que ninguém ousara dizer, dizia eu
que a pimenta resplandece no mais íntimo de nosso espírito com a sua
ardência.
Estava com um espírito muitíssimo manifesto de
crítica aos poetas e artistas, os que são capazes dessas transgressões
violentas para despertarem nos homens as fantasias e sonhos os mais impossíveis
e excêntricos, e se eles mergulham profundo são mesmo capazes de sentir a
ardência que resplandece no espírito as mais divinas sensações de prazer e gozo
com as coisas simples e venenosas existentes no mundo.
Minha atitude, aceitando em silêncio o absurdo de
dizer que a pimenta resplandecia no espírito, se mastigada sozinha e não
amassada com os dentes do garfo, renunciando a ter raz~eo e reconhecendo minhas
palavras serem manifestação do insólito e do imbecil, muito mais que aquilo que
se tem costume dizer: quando cachorro encontra a porta da igreja aberta, entra
até no fundo à busca de um osso, mesmo que esteja em fase de transformação em
cinza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário