Denise
Ávila e Manoel Ferreira
Epígrafe
"...esbarrado
na calçada, bêbado regurgitado volatiliza palavras sóbrias, depois de
escorregar num gole e se deglutir..." (Denise Ávila)
Em
instantes de plena alucinação, aspirando as poeiras metafísicas das estradas do
nada, pergunto-me entre o sorriso ensandecido e as lágrimas sensaboronas do
prazer e volúpia o que seria da pinga se não fossem os pinguços. Espremo os
miolos, reviro os olhos, trago a fumaça re-versa de nicotinas e alcatrão, dou
saltos escalafobéticos, tudo isso à busca de uma resposta que não seja apenas
razoável, plausível, mas que abarque todas as verdades, não mais haja qualquer
outra até a consumação dos tempos. E só encontro uma que me parece até feliz,
julgo-me satisfeito, sinto-me um gênio de cabelos desgrenhados, capote.
"Não fossem os pinguços, a pinga ficaria na prateleira do botequim para a
con-templação das almas penadas". Con-templo as palavras, a idéia e a mensagem
na frase, re-versando-as de todos os modos e estilos, caio-me na gargalhada,
pois que nada mais ridículo que esta res-posta, se ninguém bebe cachaça, se se
quiser, pinga, por que alguém iria gastar tempo em fabricá-la?
Na
pingudice de todas as horas, nada de me perguntar o que seria da pinga não
fossem os pinguços ou o que seriam dos pinguços não fosse a pinga... Nem me
lembra que sou pinguço, para me embebedar, encher o rabo todo, tenho de tomar
todas e mais algumas de gorjeta, gorjeta que escorre pelo queixo, molha a
camisa, os olhos reviram-se, chamo urubu de meu louro, dou nó em pingo dágua,
isso para não dizer que me esbarrando na calçada, catando cavaco, atolando a
cara na merda dos cavalos puxadores de carroça, arrasto-me no terreno baldio
sem cerca de arame farpado, encosto-me no muro, e começo aquela velha ladainha
que me acompanha desde o primeiro pileque homérico: "Vou com Deus e Nossa
Senhora pelos mata-burros de estradas, o capeta atrás tocando viola, a cachaça
minha de todos os dias soma os noves fora do nada de mim, o nada dos noves fora
de mim que nasceu sem razão, prolonguei no mundo com a boca escancarada, um
bafo de escorraçar todas as criaturas, esperando a morte que até agora não
chegou...", ouvindo os velhos aposentados parados, olhando-me de olhos
arregalados, assustados da silva e silveiras, como pode alguém beber tanto,
viver de pinga e nada mais, dizendo palavras que ninguém disse desde que a vida
começou a existir no mundo - na verdade, na verdade, o homem nasceu mesmo sem
razão, passa toda a vida sonhando, fantasiando uma verdade que nunca chega,
felicidade que nunca houve, alegria então que nunca mostrou a sua cara, são
todos os homens idiotas, imbecis, conversa pra boi dormir antes de o coveiro
abrir a valeta de sete palmos, antes da morte, antes de o caixão descer,
amigos, parentes e conhecidos derramarem todas as lágrimas de crocodilo, antes
de pás de terra ser jogada por cima, e nada mais, nem mesmo existiu no mundo, a
morte leva até a vida que foi um dia...
Louco,
doido, varrido, esquizofrênico, psicopata, esquizóide, escorregando no último
gole que o capeta deixou atrás, errando uma nota de sua viola, desafinando todo
o coro de diabos que lhe seguia pela tarde de pálido crepúsculo, me deglutindo
no clímax e êxtase do álcool, sentando-me na cadeira do Olimpo qual Zeus que
ria a bandeiras soltas de todos os normais e sóbrios que acreditavam na
redenção dos pecados, nos prazeres e felicidades do amor, na vida eterna...
E
vou seguindo bêbado, regurgitado, volatizando palavras sóbrias pelos becos sem
saída, no céu noturno estrelas e lua brilhando, inspirando amados e amantes a
declinarem os versos mais lindos, em nome do amor, amém nós tudo...
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