SÓTÃO
Denise Ávila
escalo
degrau por degrau
tropeçando em meio
a penumbra
altura sempre
me assusta
mas compensas
com plenitude
pois fico sem atitude
quando paro
em frente a janela
e extasiado de euforia
mergulho através dela
me alçando num
voo livre
com asas que
não teria
pra me trazer
alegria se não
olhasse
"Degrau por degrau/tropeçando em meio/a
penumbra... - É esse itinerário que desejo tentar re-traçar, passo a passo.
Primeiro a ascensão... Denise Ávila é uma lírica: por uma sorte muito
particular, essa mulher honesta e boa, de inteligência precisa e imparcial, que
pensa mais nos outros do que em si mesma, fala de si, diga o que disser, sem
mesmo suspeitá-lo. Subindo, degrau por degrau, a escada do sótão, o desejo está
estabelecido, resta real-izá-lo, real-izá-lo conforme a vontade da alma,
conforme o sonho do espírito, a liberdade, ela quer ser livre, ela quer alçar
voo à liberdade. Tropeça em meio à penumbra, o desejo da janela aberta a cada
instante in-tensifica, a cada instante cresce, está ansiosa, o sótão lhe
a-nunciou a vida, a conquista de seu espaço em direção ao horizonte, aos
uni-versos à luz de que sentirá o espírito da liberdade, alçando o seu voo.
Tropeça em meio à penumbra, porque o sótão é lugar de tristeza, solidão,
angústia, medo do inexplicável, do inolvidável, do inaudito, do desconhecido,
depois da escada, superado o último degrau, a janela aberta se re-velará, a
visão da janela aberta, a catarse, a alegria, o encontro do eu, a felicidade, a
cor-agem do voo, entregar-se inteira à liberdade, ao seu verdadeiro Ser. Não a
catarse apenas na linguagem de um poema, no estilo de versos e estrofes, nas
palavras que a-nunciam no inter-dito o livre acesso à vida plena, mas a catarse
verdadeira, a catarse do infra-silêncio - silêncio que se estende sobre toda a
alma, sobre todo o ser -, a busca da vida.
Assim como Platão duplica seu movimento
dialético pela ascese do amor, assim também poderíamos falar no caso de Denise
Ávila de uma espécie de ascese através da janela aberta, a liberdade do vôo.
"Mergulhar através dela/me alçando num/voo
livre..." Mergulhar é con-templar. Pertence ao espírito poder con-templar.
Con-templar significa ouvir a Palavra que ecoa em todas as palavras. Denise
Ávila ouviu a palavra Liberdade, "ser livre", alçando vôo através da
janela, desde o sótão. Con-templar implica colocar-se, silenciosa e
imediatamente, diante do objeto, no poema o "objeto" é a "janela
aberta". Esse desejo do vôo, cultivo do espírito - espiritualidade -
pertence indubitavelmente à natureza humana. É parte natural do processo de
humanização especialmente na fase adulta da vida. Importa enfatizar: a
espiritualidade é um dado antropológico de base. A liberdade é um dado da
totalidade de nossa vida que se impõe por ela mesma. Ela fala dentro de nós.
Ela nos ad-verte. Ela nos apóia. É a nossa mestre interior, grande anciã que
sempre nos acompanha. Ela é indestrutível. É o nosso mistério que toca o
mistério do mundo. "... voo livre/com asas que/não teria/pra me
trazer/alegria se não/olhasse". Olhar através da janela aberta os
horizontes, uni-versos, o in-finito cria o desejo do voo, cria asas, cria o
desejo de "cuidar do espírito". Cuidar do espírito é estar sempre
atento e ouvir as mensagens que vêm de todos os lados. Janela aberta é símbolo
de outra Realidade. Ela é um foco irradiador de sentido. Um amor que em tudo
penetra e resplende. Que move o céu e todas as estrelas.
Denise Ávila se pergunta como expressar o vôo, o
infra-silêncio do vôo, através de palavras. Encontra-se em Denise o mimetismo
do instante. O silêncio e o instante não sendo senão única e mesma coisa, é a
configuração do instante que ela deve conferir à sua sensibilidade, ao seu
espírito em busca da espiritualidade.
Sótão é a alma de Denise, é o seu íntimo, a sua
intimidade, o seu inconsciente. Sai desse "sótão", sai em busca da
janela aberta, sai em busca do vôo, sai em busca da liberdade. Assim, não se
trata mais apenas de um poema, o poema trans-cende, mergulha na realidade,
con-templa os horizontes e uni-versos do espírito, alça o vôo em busca da
espiritualidade.
Não seria em nada "surrealismo", se
afirmamos que Denise Ávila alça o seu vôo, voa por todos os lugares, por toda a
vida, por todos os momentos e instantes. Espiritualiza-se. Sente emergir dentro
de si o Espírito. Na força de sua irradiação e de seu calor, religa todas as
suas memórias pretéritas. Articula todas as forças escndidas. Recupera o elo
perdido do seu passado perfeito. E entra num novo ser e num novo estado de consciência.
Voa e voa para o alto. Voa em plen-itude. Volta a ser mulher livre, volta a ser
mulher-espírito, mulher-espiritualidade.
Manoel Ferreira
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