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terça-feira, 24 de novembro de 2015

LAMINA DE MACHADO - MANOEL FERREIRA NETO


Haverei de ensinar-me a viver ou a deitar fora a vida como se inútil ou desprezível fosse; haverei de tocar com a mão delicada o coração agoniado, para que ele, em contato com a vida, re-nasça ou se torne em cinzas.
Instante inesquecível em que torno a sentir! Escuto o riso da ampulheta, diante do tempo – o vento invade-me a voz que é sonho, o desejo da mente que é imensidão, a vontade da alma que é eternidade. O espelho procura a imagem, buscando aprimorar com ousadia o registro de mim – desço pela janela do que já se tornou inevitável, como a taça que se estiola no chão e não quero, insisto e persisto em não “emendar” – diria ser teimoso, burro empacado?
Sigo o longo caminho, não me importando se haverá poeira, se por vezes irei passar por um deserto, se há longas curvas, aclives ou declives, o fato é que sigo a estrada. Nada há de novidade, sim caminho novo a seguir.
Não faz cinco minutos troquei a lâmpada antiga, do abajur, que estava queimada por outra recente. Sentado no sofá, olhando a claridade com fixidez, sinto o olhar que contempla o sonho perscrutando na imagem o sentimento de um além, encontro do sentido e do homem a recriar as observações à busca do risível e do solidário, da infinitude e da compaixão, do homem e da humanidade.  
Tenho de esperar tempo de anunciação de única palavra, na certeza de que irá surgir, re-nascendo aí a esperança de emoção ou sentimento, e não me angustiarei. É indescritível andar daqui para ali, contemplando o mundo, buscando sonhos que possa ir construindo, cheio de impaciência, e veemente esperançado, imaginar com antecedência a lâmina do machado que fere o sândalo, o sândalo que fere a lâmina do machado, o encontro, o diálogo, a conversação, os acontecimentos do ser e do tempo.
Aqui estou. Realiza-se o prodígio de re-tornar a sentir-me Ser que se faz continuamente, a continuidade de sonhos, utopias, desejos, vontades são também o Ser. Importa-me que tudo prossiga, prolongue, abandonar-me à vertigem, seguir a Estrela Polar. Sentir o espírito fervilhar de idéias, e poder atravessar a ponte que separa os campos imaginários do devaneio das colheitas positivas de atitudes. A luz e os espetáculos estão de acordo com o caráter da eternidade. Que tudo seja atraído pelo íntimo desejo, impulsionado por vocação profunda, tão simples como no pensamento, pela Natureza e Alma, pelo Sonho e Espírito.
Por que não consentir e reconhecer essa súbita visão que se me impõe, resplendor, raio de luz que admiro? Em verdade, o assegurar de novas buscas, de maneira que o outono se apóie (ou apóia) à soleira do inverno? Peregrino em direção às ruínas dos tabernáculoos: lá encontro o risível e insosso, que é o encontro com a condição de homem que deixei nalguma taberna da estrada longa e desprezível.
Acontece que o saber compreender, o saber entender, [e por que não o saber morrer?], romper o véu de mistérios e enigmas, ir buscando eterna e ininterruptamente mutações em mim, conduz à eternidade.
Nascimento significa o genuíno, ingênuo, pureza, desunir do todo, aniquilação da doída e con-doída individualidade, afastamento de Deus, re-tornar ao Todo, chegar a ser Deus, quero dizer: ter  buscado cristianizar  a com-preensão e entendimento de Deus, ter ampliado a dimensão do espírito de tal modo  que se  mostre possível voltar a conter de novo o Todo.
O que me importa é o que o rio me comunicou, às vezes não só difícil e complicado entender, mas impossível de sentir realizado, o fato de o tempo não existir. E, pensando nisto, interrompo-me e percebo estar a cofiar a barba com o dedo indicador e polegar, com as pernas cruzadas sobre a cadeira e com o braço direito estirado sobre a perna direita.
O que sinto é movimento, circulação. Ai, no subir de mim, nesse criar do nada, perfeitamente absurdo, porque do nada nada se cria – e eu criei... Mas esse mesmo subir é ininteligível como subir montanha descalço, porque não subo além do que faço para me ver fazer, porque o agir é apenas simultânea consciência desse agir que dele se não desprende. Sei-me como homem que atua ou pensa, mas não vejo o meu eu a atuar ou a pensar.
Consegui, não sem alguns sofrimentos desnecessários, romper a solidão, a de sair e perambular pelas ruas sem rumo nem destino, porque a arranquei das mesmas portas do inferno e consegui despertar-me, re-nascer.
Bocejos inscrevem a mesma atitude de afeto... Palavras algemadas, sem margem de possível sublimação, tecem, na oponibilidade de um dedo aos outros, a falha de gestos; cerram da súbita idéia de evidência o emudecer que me violenta, reduz-me a qualquer manifestação. Parvo crocitar tateia do mundo a realidade da língua. O som existe no coaxar absurdo, no gralhar descoordenado e informe. Toda a gralhada alheia passa por mim – a claridade turba-se, certa impotência atinge a pronúncia, labirinto de caminho imprevisível.

                                                                  

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