Arrostar a questão da heteronímia em Fernando como
a manifestação da multiplicidade do Um, é inscrevê-lo num certo hegelianismo[1],
numa filosofia da presença e da totalidade, numa teologia. O múltiplo, como
complementar do Um, constituiria uma alteridade em relação que terminaria por
assegurar a unidade do mesmo.
O que se passa em Pessoa não é a multiplicação do
mesmo em outros, mas o des-encadeamento de uma alteridade tal que o retorno ao
Um se torna impossível. Nele, o Um se multiplica antes mesmo de se constituir
como ser particular, num momento em que ele ainda é indeterminação pura e puro
vazio, difuso no Ser em geral. A negação pessoana é, de certa forma, negação
precoce (se continuarmos a nos referir ao sistema hegeliano). Essa negação
resulta não na determinação do Ser (que seria o Um do Ser-para-si) mas na
determinação do não-Ser (que é o vazio, como o que ainda não é); por outras
palavras, na indeterminação. Efetuando-se antes da definição do particular, a
multiplicação não é a do Um, mas a do Outro.
Vale ressaltar e sublinhar que, no que tange à
obra heterônima, o processo de relacionamento do Um com o Múltiplo segue o modelo
hegeliano até certo nível. Para Hegel, numa primeira instância, o Um se divide
em múltiplos uns; na instância seguinte, os múltiplos são arrepanhados para
constituir o Um em sua idealidade. O outro é assim suprimido, terá sido apenas
um momento.
Em Pessoa, assiste-se à multiplicação do Um graças
à força de repulsão inerente à própria essência desse Um (à medida que, para
afirmar-se, o Um precisa de sua negação: o outro). Dir-se-ia, então, que há
desequilíbrio de forças, que o mecanismo emperra em algum ponto do percurso, e
que não há suficiente força de atração para voltar a reunir os múltiplos no Um,
para chegar àquela “reunião em que um único de muitos Uns”[2].
Falta aquele equilíbrio de forças que garantiria ao Ser, no devir, “a infinita
volta a si”.
Se o mecanismo pessoano não pode executar o belo
percurso hegeliano, é porque ele se encontra emperrado já no ponto de partida.
Parece haver, em Pessoa, uma simulação do processo
hegeliano de relação entre o Um e o Múltiplo. Uma simulação, porque esse “Um” e
esse “Múltiplo” são apenas simulacros, máscaras de um ser indefinido. O “Um” de
Pessoa é a primeira máscara do Vácuo-Pessoa: “Ficarei no Inferno de ser Eu, a
Limitação Absoluta, Expulsão-Ser do Universo longínquo! Ficarei nem Deus, nem
homem, nem mundo, mero vácuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor sem
nome, exilado do próprio mistério, da própria Vida”. Essa máscara se multiplica em outras
máscaras, provocando um movimento a vácuo, um movimento em falso. Como as
máscaras não são os outros do Um (já que o próprio Um era apenas uma máscara do
vazio), elas não podem contribuir para a (re)-constituição do Um.
Nada se passa entre uma máscara e outra, nada pode
passar-se entre nada e nada. A poética de Pessoa é uma poética do entre
(Interlúdio, Intermezzo, Interseccionismo – para privilegiadas em sua obra);
esse entre não é o entre do devir
hegeliano (passagem do Nada ao Ser e do Ser ao Nada), mas o entre imóvel da
indeterminação (Ser=Nada, Um=Outro, presença=vazio). Não se trata de um entre
histórico (no sentido de passagem ou progresso), mas de um entre estacionário,
da indecisão e do impasse.
Esse entre também não deve ser arrostado como o
entre do atomismo: vazio, não-ser entre os átomos, repulsão das existências
distintas no interior do uno. Não se trata de um vazio com relação ao pleno dos
átomos; como, aqui, os próprios átomos são lugares vacantes, só há vazio, não
há mais do que entres.
No sentido de possamos vir a compreender isto,
precisamos colocar esse entre num processo: um processo começado e detido.
Pessoa está literalmente paralisado entre o Sein e o Dasein: “Há entre quem sou
e estou/Uma diferença de verbo que corresponde à realidade”.
Estar e ser. Estando (em momentos efêmeros e
sucessivos), ele se proíbe de ser (ontologicamente). Esse sujeito, mal
acomodado em seu momento histórico, refugia-se por vezes no platonismo:
alhures, outrora, fui um Eu inteiro do qual agora sou apenas a sombra, o
emissário. Tentação do ocultismo, do espiritismo: destino astrológico,
reencarnação. Contudo, perguntamos: quem se deixa enganar por essa duplicidade?
No lugar Pessoa, o Outro já se prepara a sorrir, a contradizer: Seu ocultismo é
uma ocultação.
O movimento circular das máscaras é um movimento
fictício, igual à imobilidade. Pessoa é o ser parado, o Ibis. Com efeito, ele
gostava de brincar com seus sobrinhos, chamando a si mesmo de Ibis, animal cuja
atitude ele imitava, para os fazer rir: “O Ibis, a ave do Egipto/Pousa sempre
sobre um pé/O que é/Esquisito./É uma ave sossegada,/Porque assim não anda nada”.
O Ipse exigiria um avanço, o Ibis é imóvel.
Toda dialética, em Pessoa, é uma dialética
fingida, na qual a tese e a antítese não levam a nenhuma síntese, porque nunca
há ultrapassamento: “Assim fico, fico... Eu sou sempre o que quer partir,/ E
fica sempre, fica sempre, fica sempre,/Até a morte fica, mesmo que parta, fica,
fica, fica...”
Sendo a
dialética o movimento do pleno, ela não pode realizar-se no vazio. Sem devir,
não há existência; compreende-se, agora, a não vida do vivo.
Pensar o circulo vicioso é mais inteligível
fazê-lo a partir do último Nietzsche do que a partir de Hegel. As perguntas que
ele se faz, em seus versos, são extremamente próximas das “perguntas capitais”
de Nietzsche: “Somos autênticos ou nada mais do que atores, autênticos como
atores ou apenas parodiamos o ator, somos o representante de algo ou aquilo que
é representado?... ´Ninguém´ ou um encontro de ninguém?”[3]
E a resposta, apesar de todas as diferenças, é ainda a de Nietzsche: “Sou
apenas um fragmento, enigma e pavoroso acaso”.
A abertura para o inconsciente desmascara o Um
como logro: “O um que é introduzido pela experiência do inconsciente, é o um da
fenda, do traço, da ruptura. Irrompe aqui uma forma desconhecida do um, o um
como Unbewusste. Digamos que o limite do Unbewusste é o Ungegriff – não um
não-conceito, mas o conceito da falta. Onde está o fundo? Será a ausência? Não.
A ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir a ausência – como o grito
que não se destaca sobre um fundo de silêncio, mas, pelo contrário, fá-lo
surgir como silêncio[4].
No desdobramento de personalidade ou invenções de
personalidades diferentes, há dois graus ou tipos, que estarão revelados ao
leitor, se os seguir, por características distintas. No primeiro grau, a
personalidade distingue-se por idéias e sentimentos próprios, distintos dos
meus, assim como em mais baixo nível desse grau, se distingue por idéias
colocadas em raciocínio ou argumento, que não são minhas, ou, se o são, o não
conheço.
Pessoa se vê como qualquer um: “sou vil, sou
reles, como toda gente”. E mesmo, mais reles do que toda a gente, pelo menos
mais reles do que os outros parecem: ? ”Nunca conheci quem tivesse levado
porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. [...] Eu, que
tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,/Eu verifico que não
tenho par nisto tudo neste mundo”.
Pessoa se engana ipsis litteris. Ele tem par sim,
e um par que pode esclarecer o desdobramento de sua personalidade. Este par é o
Espírito subterrâneo, de Dostoiévski, precursor do anti-herói da modernidade. O
Espírito subterrâneo é parente próximo do homem da mansarda, como este
imobilizado pela excessiva lucidez, destruidor do mundo e de si mesmo pela
força corrosiva de uma consciência monstruosamente atenta às contradições e às
nuanças lingüísticas.
O que diz Dostoiévski?
A
consciência, toda consciência é uma enfermidade. Eu o sustento. Mas deixemos
isso por agora. Respondei-me a isto: como era possível que sempre, no instante
mesmo – sim, como se fosse de propósito ,- precisamente no instante em que eu
era mais capaz de apreciar todas as nuances do belo, do sublime, como se dizia
entre nós há pouco tempo, me acontecesse não somente pensar, mas fazer coisas
tão incongruentes que... ações, para ser breve, que todos levam a cabo talvez
bem, mas que eu praticava justamente quando tinha a perfeita consciência de que
era preciso me abster? Quanto mais o bem e todas as coisas ´belas e sublimes´
se tornavam claras à minha consciência, mas eu me afundava em minha lama, mais
eu sentia prazer em me enterrar definitivamente (...) Isto ia tão longe que me
acontecia uma espécie de prazer secreto, vil, anormal, ao entrar em casa, no
meu buraco, por uma dessas noites petersburguesas sujas e frias, e repetindo-me
que tinha ainda cometido uma vilania, nesse dia, e que era impossível
reaparecer lá em cima. E inquietava-me então interiormente. Eu me atormentava,
despedaçava-me, bebia longamente a minha amargura, fartava-me tanto, que
finalmente sentia uma espécie de fraqueza vergonhosa, maldita, onde gozava uma
volúpia real. Sim, uma volúpia! Uma volúpia! Insisto nisso. Comecei a falar
disto, precisamente porque quero saber com justeza se os outros conhecem tais
volúpias[5]
Em Dostoïévski, a desejada consciência de si é
também ruptura, desdobramento da personalidade, o Outro fissura o mesmo da
consciência que assim é vivida: o outro que o chama e cujo apelo é mais
profundo que ele próprio. É esta relação com o outro eu, em que o eu é
arrancado da sua primordialidade, que constitui o acontecimento não
gnosiológico, necessário à própria reflexão entendida como conhecimento, e, por
conseqüência, à própria Redução egológica.
A consciência no homem, segundo Henrique C. de
Lima Vaz, é essencialmente anunciadora: ela proclama, invoca, define. Tal condição
estaria condenada a uma total ininteligibilidade se a face da consciência que
se prolonga na exterioridade do sinal não fosse voltada para outra consciência,
não projetasse, ao descobrir, o espaço humano da comunicação. Na verdade, o
sujeito é, desde sua gênese primeira, uma comunhão e a palavra de um diálogo.
Podemos mesmo tentar a demonstração rigorosa da
necessidade, para uma consciência-no-mundo e que se exterioriza no sinal, de
situar-se em face da outra consciência, de definir-se como o singular “eu” na
medida mesma em que se insere no movimento que a conduz a afirmar-se no plural.
“Se tudo o que pode ter para mim valor de ser é
constituído no meu ego, então, efectivamente, todo o existente parece ser, com
certeza, um simples momento do meu ser transcendental”[6],
escreve Husserl. A objeção do solipsismo mais extremo levaria a acusar a
fenomenologia de impotência para resolver o problema do conhecimento e do mundo
objeto e, por conseguinte, a ser uma verdadeira filosofia transcendental.
Para compreender a existência absoluta de um outro
“eu”, é preciso, desfazer uma vez mais a experiência do “já aí” da facticidade
e captar outrem, de algum modo, no próprio momento em que surge na minha
experiência própria.
No sentido de compreender o que é isto – ohomem, emDostoïévski, procura a verdade
imediata de seu “eu”; o artista a essência imediata de tudo, tomando em
consideração a psicologia e o realismo, que estamos discutindo, fundamo-nos em O idiota.
A forma particular que o destino trágico do
príncipe Michkin assumiu, totalmente distante de seu paralelo geral com a
Paixão de Cristo, vincula-se igualmente a alguma outra das crenças mais
reverenciadas e sacrossantas de Dostoievski: “Amar o homem como a si mesmo,
segundo o mandamento de Cristo, é impossível”, ele havia escrito no velório de
sua primeira esposa. “A lei da personalidade na Terra é impositiva. O Ego
posta-se no caminho”.
Mesmo que o príncipe Michkin, o produto das
ruminações teológicas de Dostoievski, seja, sem qualquer sombra de dúvida, uma
das criações mais originais do autor, ainda assim podemos construir para ele
uma genealogia sumária. Podemos relacionar Michkin com todas as personagens
românticas de Balzac que buscam o absoluto – por exemplo, Louis Lambert – cuja
assimilação com o infinito arruína sua existência subliminar.
Poderíamos prosseguir com Álvaro de Campos, cujo
discurso parece fluir da mesma personagem dostoiévskiana, que não é criminosa
mas apenas vil: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo/Nunca teve um
ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,/Nunca foi senão príncipe – todos eles
príncipes – na vida.../Quem me dera ouvir de alguém a voz humana/Que
confessasse não um pecado, mas uma infâmia;/Que contasse, não uma violência,
mas uma cobardia!/Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam./Quem há neste
largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?/Ó príncipes, meus
irmãos,/Arre, estou farto de semideuses!/Onde é que há gente neste mundo?/Então
sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? [...] eu, que tenho sido vil,
literalmente vil, /Vil no sentido mesquinho e infame da vileza”.
Em Pessoa, como no “homem do subsolo”, essa
confissão não tem a pretensão de se reverter em apologia de um herói do mal;
também não tem o sentido purgatório de um confiteor cristão; trata-se apenas do
reconhecimento lúcido de uma vileza reles, sem nenhuma exultação de tipo moral.
O “homem do subsolo” começa sua confissão com veleidades de qualificação: “Sou
uma homem malvado”; mas depois confessa que “nem ao menos” é esse ser
positivamente mau: “Jamais consegui ser nada, nem mesmo me tornar malvado. Não
consegui ser belo, nem mau, nem canalha, nem herói, nem mesmo um inseto. E
agora, termino minha existência no meu cantinho, onde tento piedosamente me
consolar, aliás sem sucesso, dizendo-me que o homem inteligente não consegue
nuna se tornar alguma coisa, e que só o imbecil triunfa”.
O
real empírico mistura-se, em Dostoïévski, ao simbólico; a realidade
aparentemente chã é, muitas vezes, paródia, estilização de uma outra realidade,
mas não apenas para iludir a censura, para se defender de conseqüências, e sim
num jogo de máscaras, de duplicação do mundo, de desdobramento da
personalidade, de fragmentação da imagem numa oposição de “espelhos”, enfim, na
inserção da novela ou romance numa totalidade múltipla e variada ao infinito,
dinâmica e fluida, em que o real é a máscara de outro real, em que nada é
definitivo ou estratificado.
Parece-nos
que no desdobramento da “dialética interior”, multiplicando-se, viram a luz, e
toda a vida delas seria a busca de vivê-la plena e absolutamente, conforme o
que lhes habita, trevas e luz, pecado e perdão, isto é, as dialéticas-moventes
se movem em busca da comunhão, koinonia, das trevas e luz, a espiritualidade.
Tomando
isto em consideração, a rede que é estabelecida ao longo da existência,
conscientes de nossa dialética-interior, é uma rede que se constrói nas
situações e circunstâncias do homem que é “sofrimento e dor”, estabelece-se,
fundamenta-se a Fé, Esperança, Amor, continuidade que faz o Ser, este se faz
continuamente. Nesse sentido, é que as dialéticas-moventes tornam-se
importantíssimas na construção do pensamento e idéia dostoievskianas, por elas
serem responsáveis pelo “ser” da fé; torna-se fundamental, então, que
com-preendamos, re-colhamos e acolhamos, a dialética interior e as
dialéticas-moventes no corpo da obra, para que possamos então com-preender a
vida e a obra de Dostoievski, a busca da redenção e ressurreição.
Compreende que é preciso escutar o Espírito
profundo, esse Espírito de morte e de ruína, e para isto fazer, admitir a
mentira e a fraude, conduzir cientemente os homens à morte e à ruína,
enganando-se durante o caminho todo, para ocultar-lhes para onde os leva, e
para que êsse lastimáveis cegos tenham a ilusão da felicidade[7].
Encontramos
em Dostoiévski formulações quase idênticas em Pessoa. Dostoiévski: “toda
consciência é uma enfermidade”; Pessoa: “Pensar é estar doente dos olhos”.
Dostoiévski: “só o imbecil triunfa”; Pessoa: “toda vitória é uma grosseria”.
Dostoiévski: “Jamais conseguir ser nada”; Pessoa: “Não sou nada./Nunca serei
nada./Não posso querer ser nada”.
Perguntar-se-ia
se seria mera coincidência de temperamentos, entre a personagem dostoievskiana
e as “personas” pessoanas? Evidentemente que não. Essa consciência é a do homem moderno, para quem os valores
morais e estéticos do passado, confrontados com a mediocridade e a brutalidade
da vida cotidiana nas grandes cidades (peters)burguesas, esgarçam-se como
diáfanas fantasias de outros tempos. E essa consciência se manifesta
precursoramente (como sempre) na literatura, e preferencialmente nesta porque é
o escritor (o artista) quem mais sente sua desqualificação, sua falta de função
e de lugar nessa sociedade pragmática. A falta de lugar para o “belo” e para a
consciência, nessa sociedade, é um privação que atinge todos os seus membros;
mas é o escritor (o filósofo, o poeta) quem mais rapidamente detecta essa
privação, porque o exercício de lucidez e a afirmação de valores autênticos era
o que, historicamente, justificava o seu oficio.
A
consciência dessa alta e misteriosa missão permite ao poeta um “desdém por este
humano povo entre quem lido” (novamente uma palavra com o outro e anômalo
sentido: o povo por quem sou lido, o que transforma o poeta de ativo em
passivo). O desdém do emissário é absurdamente pretensioso, já que: a) ele nem
sabe se existe o rei que o mandou; b) sua missão consiste, precisamente, em
esquecê-la: “Minha missão será eu a esquecer,/Meu orgulho o deserto em que em
mim estou”. Há uma evidente esquizo entre o emissário e a missão, entre o
emissor e a mensagem: “Inconscientemente me divido/Entre mim e a missão que meu
ser tem”. E o final do soneto soa como um delírio de grandeza, uma teimosia
irracional: “Mas há! Eu sinto-me altas tradições/de antes do tempo e espaço e
vida e ser.../ Já viram Deus as minhas sensações...”. (A palavra “viram” sugere
uma última e anômala leitura: inexistindo esse Deus, são as sensação que se
deificam, que viram Deus).
É
evidente que o sujeito pessoano não é mais o ego cartesiano nem o Um sintético
de Hegel. Na verdade, a crise do sujeito tal como ela se manifesta em Pessoa já
se prenunciava em Kant. Para Kant, o sujeito não pode ser objeto de
conhecimento; não é uma substãncia (como antes em Descartes) nem um devir (como
depois em Hegel). Hegel, de certa forma, devolveu ao sujeito uma segurança
ameaçada no kantismo. A síntese dialética hegeliana (paga com o evitamento da
questão da negatividade) restituiu ao sujeito a possibilidade de se pensar como
uno.
Ora,
Pessoa como outros pensadores e artistas da modernidade, desvenda o logro dessa
unidade subjetiva. Apesar de respeitáveis tentativas críticas de recuperar, em
Pessoa, uma unidade e um centro, o convívio com sua poesia revela, a cada
passo, que essa unidade e esse centro estão nele irremediavelmente negados.
Pessoa exige, pois, que o confrontemos com as mais recentes teorias do sujeito,
precisamente aquelas que apontam, como sua poesia, para a pluralização e o
esvaziamento do sujeito logocêntrico. Pessoa prenuncia as linhas gerais de uma
concepção do sujeito que se configurará, ao longo de nosso século, na
filosofia, na psicanálise e na lingüística. Por isso, parece-nos senão
descabido pelo menos ocioso analisar o “Dra em gente” à luz das antigas filosofias
idealistas da unidade do ser, de um velha psicologia da identidade ou de uma
concepção da linguagem como veículo dócil e transparente para a expressão do
ser.
O
que caracteriza o poeta moderno é, diferentemente, a consciência de uma
despersonalização substancial, inerente a seu ofício, da perda fatal do Eu na
linguagem. “Eu é um outro”, escrevia Rimbaud, anunciando a modernidade.
Numerosos poetas, mais recentes, confiram que a consciência do váculo subjetivo
se acentuou em nossa século. A linguagem foi deixando de ser experimentada como
instrumento, mediação, representação da presença, para ser arrostada como
falta-de-ser. Os postulados da ciência da linguagem coincidem com o progresso
ceticismo filosófico com relação às essências e à legitimidade de suas
representações: “O sistema da língua implica o não-ser da coisa”; “Há uma
compulsão de opacidade que faz com que aquilo de que se fala seja dado como
perdido”[8]
[1] Segundo Hegel, existe no Um uma relação negativa consigo mesmo (o Um é
o que não é o outro) e com o outro (o outro não é o Um); o resultado é: o Um é
o UM.
[2] Cf. Hegel, Science de la logique (2 vols.), Paris, Aubier, 1947
(tradução francesa de V. Jankélévitch)
[3] Citado por Pierre Klossowski, in Nietzsche et le cercle vicieux, Paris,
Mercure de France, 1969.
[4] LACAN, Jacques. Le Séminaire
livre XI, Paris, Seuil, 1973, p. 28.
[5] DOSTOIÉVSKI, Fedor Mikhailovitch.
O subsolo. In:-------- Histórias dramáticas (introdução, seleção e tradução
de Ruth Guimarães). São Paulo. Editora Cultrix. 1960. pp.22,24,25.
[6] KELKEL, Arion L. e Schérer, René. Husserl. Trad. Joaquim João Coelho Rosa.
Biblioteca Básica de Filosofia. Edições 70. pág. 48.
[7] DOSTOIÉVSKI, Fyodor Mikhailovitch. Os
irmãos Karamázov. Vol. VII. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de
Janeiro. Companhia Aguilar Editora. 1964. pág. 707.
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