Total de visualizações de página

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

AUTO-EPITÁFIO DE UM (HOMEM?...)



"E o homem se foi... e as letras se apagaram para sempre."
Sou composto de traços e passos ensombrecidos cantos, recantos e auroras.
Sombrios sítios, crepúsculos, cavernas, Sou lembranças de sonhos perdidos nas curvas do tempo, as perspectivas serão encontradas nas estradas trilhadas, além da curva, nada mais, nem ínfima miríade de sombra do peregrino do nada, do sendeiro dos caminhos de luz nas trevas. Sou recordações do raio de luz, do sibilo de vento, pontes partidas, metáforas cortadas, linguísticas ceifadas, estesias fenecidas. Além da curva, nada mais, nem um pequeníssimo raio de luz do cavaleiro solitário levando o gado das ilusões, quimeras, sonhos, esperanças ao campesino infinito da verdade. Sou memórias de instantes de prazer, momentos de dor com que apagam na noite a luz do abajour que acendo. Além da curva, não mais idéias, não mais pensamentos, não mais reflexões, não mais meditções, o que me foi, o que com outros me foi, espero, nada reste. Sou obstinação, determinação, insistência, persistência, a lenha que re-colho para colocar na lareira, a chama do fogo que rasga a escuridão. Nem o adeus pronunciado no verbo da língua, nem o aceno do adeus na mão suspensa no ar, movimentando-se de lá para cá. De olhos fechados: "Este homem existiu. Nada que comprove a sua existência. Por longos anos a sua luz esteve presente. Sonho? Quimera? Nada disso. Cração de uma humanidade solitária."
Sou composto de marcas e cicatrizes; uma face e um símbolo, um rosto e um signo, um semblante e uma metáfora, uma imagem e uma perspectiva, a poeira das ruas de minha terra-natal na sola de meu sapato - atrás mais nada, nenhum passo -, minhas mãos postas ao céu, ao que trans-cende, meu punho erguido,
Um murmúrio, um sussurro, um grito, um berro altissonante, uma agonia, um desespero, um desconsolo, lágrimas que descem a face da contingência. Além da curva, nada disso fui, nenhum mergulho profundo trará à superfície a minha existência. As letras apagaram-se, se é que estiveram acesas.
Sou composto de estrume e de solo íngreme; sou rumores, sou gemidos, sou suspiros, sou pés trilhando ruas e avenidas, sou pernas varando o tempo, sol na cabeça, no rosto e cruz suja de terra, fardo colorido, destino branco e preto, sina, saga, destino sem cores e brilhos, sou o aqui-e-agora, o que há-de vir, a hora que se apresenta e se esvaece, mas retorna com novas energias, forças. Além da curva, mais nada, a imaginação dos homens criou um homem que escrevia, tão forte a imaginação que leram suas letras, admiraram-se, mas ele nunca existiu, não há realmente única palavra dele, e como ele escrevia ninguém seria capaz de fazê-lo.
Sou ouvidos de línguas estrangeiras, sou voz de olhares à espreita do ser e tempo,
Impeto de lábios, sorrisos à mercê das coisas hilárias, esgares de tristeza e angústia à revelia das dialéticas da vida e morte, pele, pensamentos, poros, pelos... Atrás da curva, antes da curva, olhos procurando uma existência, um homem que pensaram ser real, estava no mundo, leram suas letras, pensaram foram escritas, estavam registradas nas páginas.
Sou uma espera, fantasia, ilusão, sou um movimento, sonho, utopia, um pingo de chuva, um raio de sol, uma lufada de vento, uma luz de relâmpago, brilho da lua bolinando a escuridão da noite, cintilância das estrelas seduzindo o universo, sou a mão que pinta de cores semivivas a tela de desejos, sou a palavra registrando no dito e inter-dito o espírito da vida, sou a nudez de corpo exposto às primeiras luzes da manhã, sou tear na madrugada fabricando vida plena.
Sou capim do pasto e as ovelhas. sou peixe e água de rios, córregos e lagoas; sou espaço e a borboleta, sou horizonte e a águia.
Sou a idéia de uma coruja pousada sobre uma galha de árvore, e quando sou a idéia, sou a coruja.
A coruja alçou voo. Perdeu-se no horizonte para sempre.

Manoel Ferreira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário