São as
dificuldades que tenho de escrever isto, de registrar o que sinto, a dor
intensa até lá onde só Deus saberia dizer. Colocar tudo nesta folha de papel,
levantar-me da cadeira, balançar o corpo, atravessar a porta, e mais nada haver
para dizer, para sentir sobre o que passou, deixou de passar, deixou de
acontecer. Outro homem!... Posso sentir-me aliviado com o que disser. Mas o
apagar de tudo em mim, isto é que não é possível. E eu preciso mesmo é de nada
mais me lembrar, de recordar, de ter uma vaga memória. Iniciar do início.
Impossível.
De que adianta então as palavras, os sentidos,
os significados? De nada adianta. Com certeza. Servem para brincar - bem, para
mim é para brincar, passar o tempo até daqui a pouco, quando já imaginar que
não sobrou mais nada a registrar.
Ligar o aparelho de televisão, assistir uma
porcaria de filme. Não. Se fosse um excelente filme, como um dos de Ingmar
Bergman, Rainer Werner Fassbinder, Antonioni, aí sím eu teria algo a fazer-me
um enorme bem, nalguma coisa me identifiquei, pode auxiliar-me. Mas é algo
exterior... E é mesmo exterior. Pelo menos do objeto de onde está saindo a
imagem.
Se não
se fala do homem, de que irá se falar? Da vida selvagem, de uma tribo lá no
Tocantins... De onde não se pode mais alcançar nem com a imaginação, o sonho.
Foi o homem que criou a imagem, muito antes, criou a palavra. Os filmes destes
diretores só iriam contribuir para passar o tempo, prolongar os minutos até
daqui a pouco. Viria o dia, e outro dia, e outro dia... Uma continuidade sem
fim, até que fosse apenas a continuidade de outra pessoa qualquer, morando onde
qualquer sonho ou imaginação alcançariam... Respeito as pessoas, suas dores,
tenho-lhes consideração, amor, não este amor cantado e decantado pelos poetas,
prosadores... Sei lá, mas eu acho que conheço as dores deles, suas
necessidades, anseios, vontades, desejos. Se não, prolonguei os minutos até
daqui a pouco.
Sinto agora um pouco das dores que são
passadas... O verbo passar mostrou bem o que queria dizer. Nem vou mais dizer
isto. Dizer que as dores são ou não (?) manifestadas através das palavras. Paro
aqui e, olho, adeus palavra, adeus papel, até mesmo dizer alguma coisa. Fechar
a boca de uma vez por todas. Adiantaria? Não. Calou-se, mas lá dentro o
silêncio diz... Diz para mim que me ouço, que sinto, que penso, que intuo, que
percebo, que imagino. Nem mesmo o silêncio é capaz de dizer bem o que
intenciono. Não morrer. Morrer não adianta coisa alguma. Alguém amanhã diria
isto ou aquilo de mim, justificando a minha morte, e como algumas considerações
foram verdadeiras, embora fossem as pessoas a julgar que foram verdadeiras. A
morte não. Não vale muito a pena viver, e muito embora eu sinta um enorme amor
pela vida, desejando-a sentir ainda por longos anos ainda.
Se for pensar, sinto-me assim por uma imensa
depressão. É assim mesmo. Talvez amanhã cedo, após escrever um sem número de
páginas, não sei quantas mil letras, sinta-me bem, re-confortado, pronto para
outra depressão que virá após alguns dias, devido a algumas circunstâncias,
situações. Foi o início, algo mudou por completo a minha vida, e, quando
iniciei o escrito, comecei dizendo que de nada iria adiantar, nem sabia de quê
estaria dizendo, qual é a dor maior. E mudou tudo!... Lendo mais tarde, diria:
"Não sou este homem pessimista. Ao contrário: sou é muito otimista".
E este escrito permanecerá sendo de um início pessimista.
Ainda que eu pense que as palavras de nada
servem - talvez não sirvam para serem escritas, - e, num instante de tanta
depressão, uma pessoa seria o mais aconselhável. Diria qualquer pessoa, disso
não tenho qualquer dúvida. E, dizendo assim, em hipótese alguma, não tenho
dúvidas de que alguém diria estas mesmas palavras: 'Você está precisando é de
alguém ao seu lado. Está precisando de alguém com quem conversar, dividir com
ela seus problemas, seus momentos de prazer". Perguntaria a esta pessoa,
se o que alguém fosse ouvir, ou fosse sentir apenas, não havendo qualquer
palavra, ela seria capaz de sentir a dor em toda a sua plenitude. Disto nada há
no mundo que me prove o contrário: para o outro, não sou quem disser de mim,
para mim, o outro não é quem ele disser dele. E não é que haja fingimento,
medo, representação, mentira. Tão somente porque o outro é o outro. Então?!...
De que adianta alguém aqui ao meu lado, e, ao invés de estar escrevendo,
estivesse dizendo, mesmo sem as palavras. Um diálogo para além... Seu amor, seu
carinho, sua atenção, sua ternura iriam sensibilizar-me, transformar-me, mas
não é disso que estou necessitando. Ainda que Deus sentasse ao meu lado,
conversasse comigo, dissesse as suas mais íntimas mensagens, e dissesse como
será cada segundo de minha vida, após a nossa conversa, permaneceria ele Deus e
eu permaneceria quem sou. Só mesmo se eu me transformasse em um Deus, por uma
extremíssima generosidade e bondade d'Ele, aí sim seria bem diferente. E se
digo "diferente" - o que for diferente é diferente em relação a algo.
Por que sou eu quem o diz, seria diferente em relação a mim mesmo. Embora Deus,
seria Deus em referência a mim, que embora Deus, continuei sendo.
Caso eu começasse daqui para frente:
"Nasci numa pequena cidade no interior de Minas..." Registrasse todos
os pormenores, detalhes, picuínhas... Uma autobiografia... Algo que ninguém,
nunca, jamais, escreveu... Nem Homero, nem Eurípides, nem Platão, nem Sócrates,
ninguém mesmo, nunca houvesse outro que tenha dito toda a verdade, aquela
Verdade que só Deus manifesta, revela... A dor continuaria existindo,
transformada talvez, mas existindo. O meu passado.
Talvez haja algo capaz de me fazer sentir a
maior das felicidades... Não houvesse existido em qualquer época do mundo. Não
fosse nem um espírito. Nem fosse um
nada. Não fosse pedra, não fosse prego, não fosse uma árvore. Nem Deus poderia
imaginar a possibilidade de existir. Ficaria feliz? Isto foi uma asneira. Para
alguém, eu seria feliz? E para quem? Para mim mesmo.
Manoel
Ferreira
(01
de maio de 2002)
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