Cada nota de música desperta algo:
Rugidos embrulhados em vaga imensa enraivecem a
presença morta – o olhar avança nos trilhos, transcendendo idéias alucinadas.
De quem sentimos o que é imprevisto se supõe. Encaramos o bem e o mal com o
mesmo rosto. O freio possesso abre dos rigores o sonho. Por minúcias na
distância, penetram na esperança faces túmidas do corpo oculto. O dúplice
machado corre sobre a singrada rocha, aspergindo nas duas fontes o gesto amável
e sensível.
Cai entre silêncio perto e rumores ao longe,
distantes, a tarde em mim. Vem uma voz como palavra menor, gota de água
acabando de sair da mina. Logo se mistura a outras, e pequeno córrego se
forma... Não mais que um instante, as coisas vão tomando a feição de correnteza,
para logo em seguida virar enorme cachoeira. Já não são palavras miúdas, meus
gritos; caem dentro de mim. Formam lago, quase não consigo ler em suas águas,
turvas linhas, como se por toda a vida tivesse chovido na cabeceira do rio...
Interfere num sentimento:
Ao julgo do vento, os olhos cerram-se-me
adormecidos, cobrindo de insultos a agonia dilatada. Campos de sangue rompem,
na maldita conjuntura, as dilações insondáveis. Mãos fixas revolvem os funerais
gargânteos do fogo. Sensações amargas volteiam desejos de sombras irrefletidas
nos gestos incertos.
Não sei por que estou falando isto. É que foram
tantas as vezes que fiz silêncio, ao escutar o grito do mundo, e hoje você, meu
amigo, calou o mundo e eu pude, então, falar. Às vezes, tudo que precisamos é
que alguém nos empreste o coração e deixe nossas palavras tão guardadas irem se
abrigar entre o peito e o ombro.. Suas palavras podem me levar para um lugar
onde tudo começou? Há alguma palavra que deveria ouvir, generoso amigo?
Que importa que em aparência continue no
escritório, sentado à cadeira, ouvindo músicas, enquanto escrevo, e isto, sem
dúvida, tem desenvolvido em mim uma busca de maior sonoridade e ritmo de
palavras? O que importa o que é realmente? Na verdade estou ajoelhado, nu como
vim ao mundo, junto à cama, alma alçando o
vôo à busca dos horizontes de
além, desejando o sentimento cada vez mais puro da esperança e redenção. Estou
no mundo, solto e fino como uma água em pleno vôo. Levanto-me suave, um sopro,
ergo a cabeça de flor e sonolenta, os pés leves, atravesso campos além da
terra, mundo, tempo, Deus. Mergulho e depois emerjo, como de nuvens, das terras
ainda não possíveis, ah ainda não possíveis. Daquelas que não soube vislumbrar,
contemplar, mas que brotarão.
Intervém numa emoção:
Serpentes devoram mortais expulsos desta terra
maculada de deuses. Por limites, as águas apartam da morte olhos perspicazes
não perturbados pela embriaguez. Muitas vezes. Muitas vezes quando a luz se
apaga sobre minha insônia, pergunto-me – fazia-o mais assiduamente – com os
ossos entre(dedos): de onde vem esta indiferença? De onde me vem este mal-estar
que não me permite estar em lugar algum?
Música pura desenvolvendo-se numa terra sem homens,
sonho eu. Movimentos sem adjetivos. Inconscientes como a vida primitiva que
pulsa nas árvores cegas e surdas, nos pequenos insetos que nascem, voam, morrem
e renascem sem testemunhas, sem álibis. Enquanto a música volteia e se
desenvolve, vivo a madrugada, o dia forte, a noite, nota constante na sinfonia, a da transformação.
É a música sem apoio em coisas, em espaço ou tempo, da mesma cor que a vida e a
morte. Vida e morte em idéia, isoladas do prazer, dor, angústia, desesperança.
Tão distantes das qualidades humanas que poderiam se confirmar com o silêncio.
O silêncio, porque essa música seria a necessária, a única possível, projeção
vibrando da matéria.
Quanto ao riso, o Filho de Deus ensinou-nos que há
muito mais alegria em dar do que em receber. Não há outro caminho. Não há outro
estilo ou forma. O passo é nessa direção...
Será que existe longe daqui outra humanidade
vivendo histórias melhores? Não sei porque estou falando tanto e fugindo
sempre... A verdade é que sofri a traição, e ela é o veneno que contaminou a
água dos poços. Confiança perdida é espinho caminhando corpo adentro, sempre
lembrando que está passando, não deixando olvidar o que se passou... Por que
dói tanto assim ser traído? Existe perda maior do que a perda da
confiança?
Interdiz no espírito e na alma:
Nas tardes de verão, continuava a ficar sentado à
amurada do alpendre, olhando o infinito – em que nada se encontrava nele, nem
mesmo a minha imagem no futuro:vazio pleno e absoluto – vendo os pedestres. Às
vezes, a máquina de trem de ferro passava. Fixava os olhos no vagão cheio de
bois. Era a alegria da garotada. Não era
a minha, com efeito. A minha alegria tinha a medida exata de um novo livro.
Terminada a leitura, acabava a alegria. O homem da casa em frente só chegava em
casa bêbado. As prostitutas pulavam a linha. Passando à porta, indo ao Mercado
Municipal fazer as suas pequenas compras. De vez em quando, passava uma mulher
muito bem vestida, um homem de terno e gravata. Havia de por trás da criança um
quintal, um passeio, onde, sentada, olhando para o infinito, deparou-se com um
enorme vazio. Mas estas nunca se confundiram com ele, nunca o preencheu. Com os
olhos erguidos, procurava nalgum lugar um ponto não vazio. Todos sem exceção.
No céu, somente nuvens. A noite, estrelas.
Não
havia percebido nitidamente que busco descrever alguns momentos de meu passado,
aquando sentava-me à amurada do alpendre, olhando o horizonte, e tudo a
afigurar-se-me distante, quase invisível a olhos nus e de lince. Perdia-me em
pensamentos, sonhos, imaginando ser tudo sonhos, não sabendo quando iria poder
tornar uma realidade. E eu acreditava sim na esperança. Sonhava tornar a
esperança carne.
Uma
lembrancinha de meu passado, poucos meses antes de tudo se tornar possível
nestas terras diamantinenses!...
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