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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

***A VOZ CAI NO ABISMO**


Viver a vida é mais um recordar-se dela do que um viver direto, reto. A vida oblíqua é íntima, a vida íntima é obtusa. Parece uma convalescença macia de algo que, no entanto, poderia haver sido ininteligível. Convalescença de um prazer... de um prazer frívolo? Não sei o que diga: creio de modo ímpio, e não me questionem os doutos dessa impiedade, quero apenas enfatizar o modo, mas o termo melhor é frígido, comunga mais com a idéia que venho desenvolvendo para expressar a minha ausência de talento para escrever a vida. Só para iniciados, a quem ainda a pena não revelou seus limites, vive nas nuvens do orgulho e da lisonja, das saltitâncias do sucesso e dos rebolados da fama, a vida se torna fragilmente verdadeira. Será que não sei mais do que estou falando, o que digo, perdi-me nos veios dos sentidos, agora é escrever sem metas e diretrizes, sem propósitos e campos do caminho, deixar a pena deslizar na linha sem eiras e beiras, largar as eiras e beiras deslizando na pena, ler quando terminar e intuir o que provavelmente intuí, o que provavelmente quis significar. Quê hipocrisia deslavada acabo de registrar! Terminado o escrito, jamais releio, a jornada das letras continua o itinerário. Tudo se me escapou sem eu sentir. Escapou-me a razão que direciona os interesses e razões, as intenções e propósitos. Escapou-me a sensibilidade que mostra os sentimentos que me habitam do vivido e do desejado viver. No rosto in-concreto do sonho, na face i-(r)-real da utopia, varando o espaço da mente, sento-me na quina de um pensamento destemido, ousado, noutra palavra mais condizente, valente. Aniquilo a transitória, mas poderosa matéria, e detenho-me pena! Não é a mesma coisa sincera, séria, descrever com sangue os sentimentos que escrevo com tinta, a alma que delineio com a acuidade da caligrafia, o espírito que ins-piro além do bem e do mal, além das intempestivas considerações do quotidiano e de suas sinuosidades da verdade e da in-verdade. 
Faltou-me a inspiração, faltou-me a intuição, faltou-me a percepção para delinear o estilo e linguagem, para burilar as idéias latentes e manifestas. Sei sim, sei do que estou falando: a pena, a partir do instante em que registra, a palavra esboçada pela alma, sentida pelo espírito, sofrimentos e dores, problemas e conflitos, não deixam certezas, deixam questionamentos os mais profundos e perspicazes, responder-lhes dura toda a eternidade e algumas miríades de séculos e milênios além – mas com muito cuidado porque senão por um triz nada sei mais. Alimento-me delicadamente, finesse jamais havida na história dos princípios e exceções, do cotidiano trivial e tomo café na cozinha do segundo andar, ao lado de minha doce-companheira-e-amiga, de meu amor-singular-e-único, de quem se entregou inteira para a minha felicidade, real-ização de meus sonhos e utopias, e eu, amando-a e agradecendo-a, teço essas linhas em sua homenagem, uma saudação de meu ser no limiar da aurora que parece suave e tranqüila porque chovera a cântaros por toda a madrugada, porque é doce e sensível ouvir a chuva caindo, os pingos dágua deslizarem no vidro da janela, e os meus olhos deslizarem neles numa eterna nostalgia e melancolia, numa imortal ambigüidade entre a realidade e os sonhos do ser, entre as quimeras, ilusões, fantasias e os verbos do encontro e des-encontro. 
Estou aflito, os olhos piscam continuamente, sem intervalo. Mudei o cinzeiro de lugar, da esquerda para a direita, nos últimos instantes, várias vezes, acendi outro cigarro na guimba do outro. Sou capaz de dizer “agora, é o fim”. Mais uma tentativa fracassada de escrever a vida, de torná-la o absoluto do tempo. Mesmo para os descrentes, há o instante do desespero que é divino: se tanto amor dentro de mim recebi, se tantas letras pude traçar nestes anos felizes e realizados ao lado de minha doce-companheira-e-esposa, e ainda continuo inquieto, é porque preciso re-velar mais e mais este amor. 

A voz cai no abismo
de teu silêncio,
as palavras elevam-se no deserto
de tuas necessidades de viver
o ser dos sonhos
e dos desejos. 

Tu me lês, 
em silêncio. 
Nesse ilimitado campo de trevas,
o desejo de luzes ainda mais forte
para que a claridade
seja esplendorosa
aos nossos olhos, 
então não apenas desdobrar
as asas e voar, 
mas ser a Vida.

Vamos rasgar fronteiras,
atravessar rios e oceanos,
entrar nas amplidões,
nas multiplicidades um do outro,
e desfazer a solidão
de duas procuras,
de duas buscas,
de duas vontades e desejos. 

Tenho uma vertigem. Sinal de baixa de pressão, resta-me tomar uma xícara de café. Tenho um pouco de medo. Inteligível: pode ser a-núncio de enfarto fulminante. A que levará minha liberdade? O que estou lhe escrevendo? Isso me deixa solitário, circunspecto, não negaria o prazer latente porque sou habitado, habita-me em toda a plen-itude da alma, sublim-idade do espírito: os redutos da solidão, circunspecção são elixires inomináveis para a vida, não só quando da criação, busca dos verbos, mas na práxis cotidiana. Regozijo-me, louvo a Deus, agradeço aos céus amar mesmo, não é sonho fácil de ser concretizado, a vida torna-se entrega por inteiro, mas a-nunciando-se ao longo dos passos e traços, não há mais felicidade, as verdades são efêmeras, a busca de novas imagens e panoramas de outros sonhos se faz contínua, as veredas do amor são centenas de milhares, o prazer prolonga-se, perpetua-se. 
Solidão e circunspecção. Elixir das perdas, sendas perdidas, elixir das dúvidas e incertezas, se tomado como o espírito envia suas necessidades e carências, outros verbos, outros amores.

Manoel Ferreira Neto.

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