Viver a vida é mais um recordar-se dela do que
um viver direto, reto. A vida oblíqua é íntima, a vida íntima é obtusa. Parece
uma convalescença macia de algo que, no entanto, poderia haver sido
ininteligível. Convalescença de um prazer... de um prazer frívolo? Não sei o
que diga: creio de modo ímpio, e não me questionem os doutos dessa impiedade,
quero apenas enfatizar o modo, mas o termo melhor é
frígido, comunga mais com a idéia que venho desenvolvendo para expressar a
minha ausência de talento para escrever a vida. Só para iniciados, a quem ainda
a pena não revelou seus limites, vive nas nuvens do orgulho e da lisonja, das
saltitâncias do sucesso e dos rebolados da fama, a vida se torna fragilmente
verdadeira. Será que não sei mais do que estou falando, o que digo, perdi-me
nos veios dos sentidos, agora é escrever sem metas e diretrizes, sem propósitos
e campos do caminho, deixar a pena deslizar na linha sem eiras e beiras, largar
as eiras e beiras deslizando na pena, ler quando terminar e intuir o que provavelmente
intuí, o que provavelmente quis significar. Quê hipocrisia deslavada acabo de
registrar! Terminado o escrito, jamais releio, a jornada das letras continua o
itinerário. Tudo se me escapou sem eu sentir. Escapou-me a razão que direciona
os interesses e razões, as intenções e propósitos. Escapou-me a sensibilidade
que mostra os sentimentos que me habitam do vivido e do desejado viver. No
rosto in-concreto do sonho, na face i-(r)-real da utopia, varando o espaço da
mente, sento-me na quina de um pensamento destemido, ousado, noutra palavra
mais condizente, valente. Aniquilo a transitória, mas poderosa matéria, e
detenho-me pena! Não é a mesma coisa sincera, séria, descrever com sangue os
sentimentos que escrevo com tinta, a alma que delineio com a acuidade da
caligrafia, o espírito que ins-piro além do bem e do mal, além das
intempestivas considerações do quotidiano e de suas sinuosidades da verdade e
da in-verdade.
Faltou-me a inspiração, faltou-me a intuição,
faltou-me a percepção para delinear o estilo e linguagem, para burilar as
idéias latentes e manifestas. Sei sim, sei do que estou falando: a pena, a
partir do instante em que registra, a palavra esboçada pela alma, sentida pelo
espírito, sofrimentos e dores, problemas e conflitos, não deixam certezas,
deixam questionamentos os mais profundos e perspicazes, responder-lhes dura
toda a eternidade e algumas miríades de séculos e milênios além – mas com muito
cuidado porque senão por um triz nada sei mais. Alimento-me delicadamente,
finesse jamais havida na história dos princípios e exceções, do cotidiano
trivial e tomo café na cozinha do segundo andar, ao lado de minha
doce-companheira-e-amiga, de meu amor-singular-e-único, de quem se entregou
inteira para a minha felicidade, real-ização de meus sonhos e utopias, e eu,
amando-a e agradecendo-a, teço essas linhas em sua homenagem, uma saudação de
meu ser no limiar da aurora que parece suave e tranqüila porque chovera a
cântaros por toda a madrugada, porque é doce e sensível ouvir a chuva caindo,
os pingos dágua deslizarem no vidro da janela, e os meus olhos deslizarem neles
numa eterna nostalgia e melancolia, numa imortal ambigüidade entre a realidade
e os sonhos do ser, entre as quimeras, ilusões, fantasias e os verbos do
encontro e des-encontro.
Estou aflito, os olhos piscam continuamente, sem
intervalo. Mudei o cinzeiro de lugar, da esquerda para a direita, nos últimos
instantes, várias vezes, acendi outro cigarro na guimba do outro. Sou capaz de
dizer “agora, é o fim”. Mais uma tentativa fracassada de escrever a vida, de
torná-la o absoluto do tempo. Mesmo para os descrentes, há o instante do
desespero que é divino: se tanto amor dentro de mim recebi, se tantas letras
pude traçar nestes anos felizes e realizados ao lado de minha
doce-companheira-e-esposa, e ainda continuo inquieto, é porque preciso re-velar mais
e mais este amor.
A voz cai no abismo
de teu silêncio,
as palavras elevam-se no deserto
de tuas necessidades de viver
o ser dos sonhos
e dos desejos.
Tu me lês,
em silêncio.
Nesse ilimitado campo de trevas,
o desejo de luzes ainda mais forte
para que a claridade
seja esplendorosa
aos nossos olhos,
então não apenas desdobrar
as asas e voar,
mas ser a Vida.
Vamos rasgar fronteiras,
atravessar rios e oceanos,
entrar nas amplidões,
nas multiplicidades um do outro,
e desfazer a solidão
de duas procuras,
de duas buscas,
de duas vontades e desejos.
Tenho uma vertigem. Sinal de baixa de pressão,
resta-me tomar uma xícara de café. Tenho um pouco de medo. Inteligível: pode
ser a-núncio de enfarto fulminante. A que levará minha liberdade? O que estou
lhe escrevendo? Isso me deixa solitário, circunspecto, não negaria o prazer
latente porque sou habitado, habita-me em toda a plen-itude da alma,
sublim-idade do espírito: os redutos da solidão, circunspecção são elixires
inomináveis para a vida, não só quando da criação, busca dos verbos, mas na
práxis cotidiana. Regozijo-me, louvo a Deus, agradeço aos céus amar mesmo, não
é sonho fácil de ser concretizado, a vida torna-se entrega por inteiro, mas
a-nunciando-se ao longo dos passos e traços, não há mais felicidade, as
verdades são efêmeras, a busca de novas imagens e panoramas de outros sonhos se
faz contínua, as veredas do amor são centenas de milhares, o prazer
prolonga-se, perpetua-se.
Solidão e circunspecção. Elixir das perdas, sendas
perdidas, elixir das dúvidas e incertezas, se tomado como o espírito envia suas
necessidades e carências, outros verbos, outros amores.
Manoel Ferreira Neto.
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