Sendo assim, tecerei uma obra
acerca do homem Ivo Pereira, comentando sobre os seus caminhos de músico, desde
a adolescência, permeados de experiências e aprendizagens, isto o que sugere o
título, contudo não se tem qualquer desejo de uma biografia do músico, a
intenção não é de partir do artista, do criador, mas do ponto de vista do
leitor dos “poemas”, do ouvinte das músicas-poemas – a biografia está bem caracterizada na
Internet, e tenho o hábito e o costume de distanciar-me do mesmo -, faltam-me
as letras e os dados comprobatórios de seus passos existenciais, e ademais
creio seria isto coloca-lo e deixa-lo “sozinho na solidão”, nesta encerrado para toda a eternidade, o
“músico excepcional”, o gênio, “o músico das palavras”, e tantos outros
templos, de acordo com o que escreve no
poema-música “Casos”.
Adulterando o sentido implícito
do título, caracterizar o homem Ivo Pereira, tomarei outros rumos, aliás, até
com a intenção de ensinar alguns como se procede ao comentar uma obra,
negligenciando os clichês, frases feitas e demodê, para considerar algo de
sublime percuciência neste CD “Som das Luzes”, a imagem de eternidade
como constituinte do espírito, e ela só se revela “Nas montanhas nuvens puras
de orações”, verso de “Serenata”, e revelando algo que o músico-amigo comentara
comigo tomando um café numa taberna de esquina, “A música é para mim uma
oração”.
Seria mister conhecer a música
destes poemas, a fim de certificar-me de algumas intuições, contemplações de
sua operação musical, quem sabe eficaz, assim o espero, tão eficaz quanto nos
seus poemas, que me parece impossível imaginar este verso, “E Orfeu de longe
luz” de um poema dramático, “Você e a Lua”, sem intuir as palavras se
tornam músicas, as músicas se tornam as palavras que o espírito não escreve,
melodias que as palavras não cantam, embora a sua linguagem sobremodo simples,
e nesta toda simplicidade, Ivo Pereira mostra-nos a intuição da eternidade, uma
dimensão sensível “pura”, “simples” – isto sem estar querendo demonstrar a
eternidade da música, esta eternidade é o homem quem compõe músicas, é o homem
quem as ouve, quem se alimenta delas em todos os instantes da vida, quem deseja
o instante sublime do encantamento. O texto dramático, sem o poder espiritual,
revela-se no inconsciente divino, que a música exerce sobre todas os seus
estilos e desejo contundente do belo, enquanto imagem da “luz”, da
“iluminação”. Se o invisível é apenas a face oculta da realidade, e se a
palavra é epifania, é a música que torna esta revelação possível, a luz da
vida, dos caminhos à busca da harmonia e sintonia com a eternidade. Se tomo em
consideração os poemas, as formas, os estilos, a estética, o ideal da beleza e
da luz. Os poemas, sendo músicas, dinamizam a memória de toda a humanidade,
estrutura o tempo da representação. “Pois viver é fundamental”, como escreve em
Feras e Colibris.
Bem que se deve considerar a
possibilidade de um desvio, se enfatizo o verso “E Orfeu de longe luz”, a
procura das origens da música e do canto reanima o mito de Orfeu. O herói que
encanta os animais, os homens e os deuses pela beleza de seu canto demonstra o
poder da música e, acima de tudo, do canto sobre as almas. Sua lenda atravessou
os séculos através da Eneida de Virgílio. O redescobrimento desta literatura
pelos humanistas renascentistas fez o Orfeu renascer como herói cujo destino é
ligado ao poder encantador da música numa lógica neoplatônica de supremacia da
voz sobre os instrumentos – até creio que Ivo Pereira, estritamente na
composição musical, saiba a necessidade de tornar palavras em sons, ritmos,
perspectivas, melodias, de tornar sons em luz, através da intuição musical de
harmonia e sincronia com os instrumentos, música e instrumentos se completam, e
isto só seja possível se considerar que o espírito deseja mergulhar na
eternidade, tornando-a luz que continua vivendo quando a música acaba, que
continua iluminando os caminhos, o céu através de suas estrelas, de sua lua,
continua iluminando os homens à busca de suas vocações, de seus dons, enfim, de
sua felicidade, de seu amor e compaixão.
A presença e força de intenção e
desejo dos poemas de Ivo Pereira fundamentam-se, [isto é interessante nos
poemas, não são palavras registradas com intuição e contemplação, mas sons,
ritmos, melodias, perspectivas, ouvidos e contemplados à luz da busca do
encantamento do espírito, da alma, a ressurreição, a iluminação] nos desejos mais profundos de musicar do melhor
modo possível com linguagem, pensamentos, idéias, contemplações, fé, conceitos,
as palavras cantam a alma nova, o espírito re-nascido, “... Quando a lua no céu
brilha solitária”, aliás, relembrando com nitidez a origem, a busca da origem
da música, a luz, o brilho solitário da luz é luz, luz que se torna música,
[sem a tensão entre Eu e o Mundo, não se constitui a verdade no momento da
arte], a arte-música, desde o despertar do espírito para a sua eternidade, ser
esta parte constituinte daquele, para a luz que, nas montanhas, ilumina as
nuvens puras de orações.
Adorno em “On popular music”,
escreve “a música emocional assumiu a imagem da mãe que diz: “vem e chora, meu
filho”. Quem olha as estrelas solitárias no céu, diante de quaisquer
circunstâncias e situações, sente-se convidado a deitar a cabeça em seu seio,
chorar de tristeza ou de alegria. A música emocional, [a contempla-la através
de seus versos, de seus poemas], de Ivo
Pereira se compõe em versos-sons que se fazem percebidos através da imagem da
eternidade se tornando luz, diante do qual o homem toma consciência de seus
caminhos, de suas vocações mais sensíveis. “Pois viver é fundamental”, e viver
é encontro, é realização, é sintonia de desejos e sonhos, é harmonia de
sentimentos e dons.
Referi-me antes à questão de se
dever considerar um desvio, relacionando a luz e o som, sendo o título do CD,
“Som das Luzes” - em que sentido e,
tomando de empréstimo a perspectiva musical, metáfora, a luz e o som constituem
um desvio? Faz-se mister considerar que a luz das profundezas faz brotar a
vinha que dá vinho, o som das profundezas é de natureza musical, por ser uma
melodia infinita ou potencialmente infinita, cheia de sons que se ampliam
infinitamente. Os poemas musicados são poemas que podiam ser escritos
especialmente para serem cantados como fragmentos de poemas maiores. A vontade de dar expressão aos sons das palavras,
expressão particular de felicidade, conquista, entrega, busca, e torna-las
inteligíveis à razão, à alma, à sabedoria, ao espírito, a música participa da
renovação do espírito à luz dos sonhos e das utopias, “... Quando a lua no céu
brilha solitária”, os efeitos da magia
dentro da luz, dentro dos sons, tudo contribui para as “nuvens puras de
orações”. Os sons anunciam o que o
coração sente e somente após a síntese da luz e dos sons é que a eternidade se
revela. A música conhece da palavra “todos os desvios ocultos”, e quem não
deseja as estrelas não “olha para o céu”. Se o sujeito é todo luz e está à luz
da história, alcançar a felicidade, significando-a a luz, é o objetivo último,
o objetivo primeiro, a luta pela conservação da vida, “Pois viver é
fundamental”, verso de Feras e Colibris.
A autêntica vanguarda é formada
não por aqueles que tentam abandonar a forma e unir arte e espírito, mas pelos
que não recuam diante das exigências da alma e do espírito, que encontram a
nova palavra, som e imagens capazes de tornar sons e luzes a expressão da
eternidade, que é parte do espírito.
Assim é que poderia terminar
esta leitura de seus poemas, e, sem dúvida, no espírito se revelam intuições
desta música, deste ritmo, dessa metáfora da felicidade, de encontro, “Nas
montanhas nuvens puras de orações”, mas creio que teria uma derradeira voz,
desejo referir-me à eternidade ter sido posta no mundo do espírito, ao qual
cada um e todos têm seu acesso interior imediato; o símbolo da eternidade como
luz, “E Orfeu de Longe Luz”, da articulação de sons e luzes, a verdadeira arte
atinge um certo nível de eternidade, advindo do cuidado que o espírito humano
tem de conserva-la ao máximo, a fim de prolongar a experiência do
reconhecimento. E é pelo reconhecimento que se atinge a verdadeira luz,
espiritualidade e, conseqüentemente, as verdadeiras “nuvens puras de orações”.
Termino cumprimentando com muito
carinho o músico Ivo Pereira por seus poemas-músicas, “Som das Luzes”, por esta
viagem tão profunda nos espirais do espírito, restando-me agora o prazer de
ouvir as suas músicas, podendo assim mover as fronteiras dos sons e das luzes,
torna-las parte constituinte do espírito.
Manoel
Ferreira
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