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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

ÁGUA DE GOTAS CRISTALINAS



Se o Ser se faz continuamente”, conforme nos diz o escritor, doutor e professor Paulo César Lopes, “a continuidade é também o Ser”, e nesta perspectiva nossa intenção sine qua non é comentar um excerto da obra memorialística Sentimentos da esperança,, de Antônio Nilzo Duarte – “Em verdade, eu tinha muito medo de perder esse amor pelo qual eu me prendiatenazmente, porque nele eu concentrei toda a minha força afetiva, todas as esperanças e os sonhos de minha vida” (ANTONIO NILZO DUARTE, Sentimentos da esperança, pág. 87) -, buscando mergulhar ainda mais profundamente no uni-verso da solidão do autor, que se efetivou com o falecimento de sua amada e querida esposa D. Neusa. 
Lendo este excerto, percebemos e intuímos que o autor em sua vida, desde que conhecera a companheira de sua vida, ainda jovem, sonhos e esperanças inúmeros de realização de sua vida, no seio do amor, habitando-lhe a alma e espírito desejos contundentes de alegria, felicidade, construídos com entrega absoluta à vida, à formação e educação de uma família, juntamente com a mulher amada, entregou-se a este amor, colocou nele todas as esperanças e toda a fé, concentrando toda a sua “força afetiva”,a-nunciando e re-velando o amor verdadeiro a que foi vocacionado a viver, foi-lhe doado gratuitamente por Deus, a sua missão no mundo era espiritualizar o amor, a relação sensível e amorosa com a esposa e filhos, era transcender a relação meramente contingente entre homem e mulher, era eternizar este amor no seio do espírito e os sonhos que nele habitam.
Ao longo de várias décadas, com responsabilidade, carinho, ternura, afeto, amor, entrega aos compromissos espirituais como marido, pai, homem, amigo, foi assistindo às realizações de seus sonhos e esperanças, conscientizando-se realmente haverem ele e a esposa tornado real o amor que desejaram viver, quando se conheceram, a educação sensível, moral e ética dos filhos, a sintonia amorosa com eles, a relação sensível real com os filhos, genros e noras, netos, motivo de sentir-se orgulhoso da vida em todas as suas situações e circunstâncias, feliz de haver encontrado o grande e eterno amor de sua vida, o amor que lhe proporcionou a felicidade a que fora vocacionado. Todos as esperanças e sonhos de sua vida tornaram-se reais ao lado de sua querida esposa. 
No mais íntimo de seu ser, vivenciando, con-templando sua vida, sentia medo de perder esse amor, intuía que a perda ser-lhe-ia difícil, muitas dores e sofrimentos, nem poderia imaginar o quanto, como iria viver esta perda, quais seriam as reações de seu ser.
Na velhice, setenta e poucos anos, sua intuição real por D. Neusa adoecer, e por mais que tenha feito por ela, lutado para quese restabelecesse, vivesse ainda por muitos anos, não só de modo material, mas emocional e afetivamente, não houve condições, ela falecera, e com o falecimento a intuição da realidade desta perda se pré-(s)-{ent}-ificou em muitos níveis. Setenta e poucos anos não é a velhice mesma, mas de fato estava envelhecendo, e nesta idade a perda do ente amado e querido é difícil. Conheceu a solidão, a angústia, a tristeza, os medos, o tédio. 
Para muitos, enfrentar a velhice significa enfrentar a solidão. Para os viúvos e viúvas, a sensação terrível e assustadora de estar só torna-se uma experiência deprimente. A literatura moderna, de Sartre e Williams, está cheia de personagens perseguidos pelo fantasma universal da solidão. 
O sofrimento mais duro de suportar é o sentimento de solidão – em todos os três volumes da obra memorialística duarteana este sentimento de solidão perpassa todas as páginas, de modo que cada palavra é uma gota de água cristalina, isto é, a cada gota o rio de água cristalina vai sendo real-izado, a busca da espiritualidade vai seguindo a sua trajetória em busca do mar que é a VIDA. Os velhos amigos morreram, uns depois dos outros. Aquando do falecimento de mãe-Amélia, por váriasvezes tenho dito “agora sou o último de minha família” ou “não existe mais ninguém que me chame de Pretinho”, e estou apenas com cinqüenta e quatro anos, ao meu lado está o grande amor de minha vida, Marize, amamo-nos, sentimo-nos seguros.
Os filhos de Antônio Nilzo Duarte são já casados, moram em vários Estados do país, vivem suas próprias vidas. Os intervalos entre as visitas tornam-se cada vez maiores. E à medida que vão passando os anos, embora esteja escrevendo suas memórias, o autor encontra muitas vezes dificuldades de encontrar novos pro-jetos de vida, lançar-se a novos sonhos e esperanças. Lendo a obra, des-cobrimos manifestos e latentes questionamentos contundentes: “O que vou fazer de minha vida agora? Que rumo lhe darei?Qual será o meu destino daqui para frente, desde a perda de minha querida e amada Neusa?”.
O que Tennessee Williams põe nos lábios de uma personagem da peça: “Orpheus Descending”, encontrará eco no homem solitário: “Estamos todos trancados dentro de nosso corpo. Condenados, por assim dizer, à solitária prisão dentro da própria pele”. 
Embora todos os sofrimentos e dores vividos com a perda, bem no íntimo de seu ser, de sua alma, de seu espírito, Antônio Nilzo Duarte, com sua profunda sensibilidade, incomum aos homens de nosso tempo, sabe que não deve ser ela uma experiência negativa, e por isto se entrega às letras, ao registro real de suas memórias. Assim, o vazio de sua solidão abriu-lhe o coração de homem, tornou-lhe mais consciente de sua missão no mundo, a espiritualidade construída com a entrega real ao amor verdadeiro, sentindo a presença de Deus que falava em seu silêncio; neste caso, a memorialidade foi-lhe uma dádiva. A perda forçou-lhe a confrontar-se com a sua personalidade real; aprofundou-lhe a fé e levou-lhe a procurar uma relação mais pessoal com a sua contingência no mundo, com a espiritualidade de D. Neusa no plano espiritual, a procurar uma relação mais pessoal com Deus, o espírito, a VIDA. Nas horas amargas de sua solidão, o único raio de esperança e de consolação eram o pensamento, os sentimentos de carinho, ternura, afeto, amor por sua amada esposa, o desejo de se lhe unir espiritualmente, o sentimento da presença de Deus em sua vida, o que lhe daria a liberdade espiritual que tanto desejava alcançar. 
Escrevendo, vivenciando os longos anos de vida ao lado da esposa, da família, foi percebendo, realizando que não estava só, porque na sua memória estavam todas as situações e circunstâncias do verdadeiro amor vivido, vivenciado, estavam todos os momentos e instantes felizes deste amor em consonância e sintonia com os filhos, genros, noras, amigos, porque também Deus estava com ele. 
O aprofundamento desta consciência da presença de Deus, do amor vivido, tornou-se um meio benéfico de como preencher as horas solitárias de sua idade já um pouco avançada. Ou Antônio Nilzo Duarte ultrapassava o próprio isolamento em novo encontro pessoal com sua vida, com sua realidade de viúvo, de ausência do ente amado, ou sucumbiria à agonia que, em casos extremos, pode levar ao desespero. Nalguma página de sua obra, ele próprio menciona isto. Essa solidão foi o meio que Deus empregou para conseguir da parte de Antônio Nilzo Duarte uma atenção mais plena para a espiritualidade, para a transcendência, para a esperança e fé de que era sim possível unir-se à esposa, embora as dimensões serem diferentes, que lhe permitiu a comunicação mais profunda com o seu ser, com a dimensão da VIDA em-si. 
Parece que a marcha do tempo é um processo irreversível, e o que passou passou. Para mim, com as leituras todas que realizei desta obra realmente monumental, a grande solidão que se instalou no coração e alma de Antônio Nilzo Duarte foi justamente o questionamento de se o grande amor vivido e vivenciado por sua esposa havia passado com o seu falecimento. Isto é verdade quanto ao tempo como tal, dentro do qual os fatos concretos se sucedem. Contudo, não é assim quando se trata da existência humana. Esta não é um rio que corre e não volta atrás para alterar o que passou. Ao contrário do que ocorre com a natureza inanimada que só tem uma dimensão e se pro-jeta num sentido único, o homem tem poder retrospectivo sobre o significado e o valor das ações passadas. Não pode viver o amor já vivido, não pode trazer o vivido e vivê-lo, mas pode alterar-lhe o sentido profundo e o valor. 
A cada instante de sua obra, enquanto a lemos, sentimos, con-templamos, vislumbramos, o passado todo está ainda presente, e pertence a Antônio Nilzo Duarte. A sua contrição dá novo preço à vida passada, moldando-a com maior perfeição e sentido. O tempo de Antônio Nilzo Duarte difere do tempo material, justamente porque não está ligado ao curso em “mão única”, como aquilo que não tem vida própria. Ele ainda exerce domínio sobre todas as suas atitudes, gestos, ações, sobre todos os sentimentos vividos e vivenciados. Já que a contrição dá ao homem um tal poder sobre o valor e a significação do passo, ele pode purificar os sentimentos de amor vividos, no mais íntimo de sua personalidade, readquirir a integridade e suscitar o próprio renascimento moral e espiritual. 
O mero fato de Antônio Nilzo Duarte haver perdido o grande amor de sua vida num tempo em que está envelhecendo não o faz desistir de outros planos, pro-jetos, realizações, e foi escrevendo as suas memórias, que pro-jeta o encontro da espiritualidade de seu amor, de sua vida. O exemplo de tantos homens famosos que realizaram grandes coisas no entardecer da vida devia servir de estimulo para que nos empenhássemos em permanecer jovens, quanto à idade psicológica. Muitas obras literárias, artísticas e cientificas importantes, foram concluídas numa idade avançada. O dramaturgo grego Sófocles tinha 80 anos quando escreveu: “Édipo, o tirano”, Goethe tinha mais de 80 quando terminou o “Fausto”. Daniel Defoe, depois de ter experimentado muitos empregos, sentou-se e escreveu “Robinson Crusoé” com a idade de 59 anos. Immanuel Kant publicou a “Crítica da razão pura” com 57 Anos.
Antônio Nilzo Duarte, aos setenta e poucos anos, diante de todas as dores, sofrimentos, solidão, angústia, tédio, diante da perda do amor de sua vida, escreve a monumental trilogia memorialística de sua vida, que tenho a certeza absoluta de que servirá a todas as gerações dos séculos e milênios por virem, mostrando a todos os homens veredas e caminhos para a espiritualização da vida, enraizada no amor por alguém, pela família. 
Nas aflições da idade que se avança, ainda com perda tão difícil, Antônio Nilzo Duarte conhece de modo, estilo e linguagem, a significação das palavras do Evangelho: “se o grão de trigo, ao cair na terra, não morrer, ficará só; mas se morrer, produzirá fruto” (Jo 12,24). Para uma pessoa de fé, a angústia e a agonia da idade avançada são tão penosas e reais quanto para qualquer outra. Mas ela sabe que Cristo prometeu o paraíso na terra. Ao contrário, avisou S. Pedro do que lhe aconteceria na velhice: “Em verdade eu te digo: quando eras moço, cingias-te e andava aonde querias; mas quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te levara para onde não queres” (Jo 21, 18). 
A partir de sua trilogia memorialística, enfatizando Sentimentos da esperança, que para mim é onde se encontra toda a dimensão espiritualística de Antônio Nilzo Duarte, ele fez uma transição completa para atingir a nova etapa de sua vida. E como a fé é parte essencial de sua vida, habita-lhe o mais íntimo de seu espírito, aprofundou-se e amadureceu-se na nova situação. 
Desde que iniciara a busca de aprofundamento nesta obra, tenho refletido bastante na vida espiritual, sobretudo na dimensão cristã. Nós cristãos, os mais velhos sobretudo, não devemos esquecer que, se vivermos uma vida fundamentalmente cristã, vivenciando o amor verdadeiro e real que Deus nos deu para tornar-lhe concreto, poderemos alterar muita coisa, criar um mundo melhor e ajudar a outros a se tornarem mais plenamente homens. A realização humana verdadeira e completa vai de mãos dadas com a maturidade cristã. 
Para mostrar o que um verdadeiro cristão, quem por quase cinqüenta anos tomou em mãos a busca de realizar a vida a partir de um amor verdadeiro pela esposa e filhos, pode fazer para trazer Deus ao mundo e transformar os corações, não apenas de modo egoísta e individualista para se livrar de suas dores e sofrimentos, da solidão que se instalou no seu peito, Antônio Nilzo Duarte tomou de sua pena e nos colocou em mão a maior dádiva que um homem pode legar aos homens, o caminho e veredas de seu amor, carinho, ternura, para que através de suas experiências pro-jetássemos o nosso futuro, a nossa vida.
Lendo esta obra monumental, exploro e des-cubro as oportunidades múltiplas de uma vida de fé, de um amor realmente espiritual, des-cubro que a fé é reconfortante e rejuvenescedora experiência. A idade um pouco avançada, a perda de seu grande amor tornaram Antônio Nilzo Duarte consciente da instabilidade e transitoriedade de muitas coisas na vida. Riquezas e realizações materiais, beleza e saúde. Tudo isto é passageiro e precário. Mas experimentar dimensão espiritual e espiritualista do amor, da entrega às buscas da felicidade, da alegria em harmonia, sintonia com os entes amados e queridos, com a família, é a verdadeira e real Vida. Assim, ele, através das experiências da existência humana, sentimentos de solidão, adquiriu nova consciência do que é duradouro e eterno, pôde adquirir uma fé re-novada e profunda na vida de união espiritual com a esposa, com os filhos, genros e noras.
A dimensão da espiritualidade e eternidade futuras revela-se nesta trilogia memorialística monumental como esplêndida luz cheia de calor que ilumina o presente e dá novo sentidoe esperança a tudo, que dá novos horizontes e universos a Antônio Nilzo Duarte e família, ao lado de sua também amada e querida segunda esposa Eliete, que lhe proporcionou segurança e amor para a continuidade de sua vida, para a escritura de suas memórias, para a continuidade de seu Ser.


Manoel Ferreira Neto


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