Uma e meia
da manhã. Pelo que me conste, observei algumas vezes, horário de galo cantar é
quatro e meia. Este imbecil me acorda cantando. Não se pode dormir mais
tranqüilo e sossegado, o galo não deixa. Nossa modernidade está deixando todos
os séculos passados com o queixo caído. Cachorro dorme em silêncio, galo canta
em horário incomum. Diabo!
Assim que
acordei, murmurara: “Nossa! Dormi mesmo profundamente. Já são quatro e meia,
respondendo-me a mulher: “Meu amor, é uma e meia”. Disse um pouco aturdido:
“Mas por que este galo está cantando?”. Embora irritado, estava com vontade de
fazer xixi. Fui dormir às onze e meia da noite, fora um dia cansativo, se se
for pensar mesmo comi no desjejum “canela de cachorro”, o que significa que
andei pelas ruas da cidade o dia inteiro, resolvendo algumas responsabilidades
sérias, felizmente que tudo fora feito como manda o figurino. Pensava dormir a
noite inteira. Levantar-me dis-posto, sereno, sentir-me pronto para os afazeres,
um dia com efeito compensador. Não, o
galo me vem cantar ao pé do ouvido a uma hora da manhã. Só queria saber que
dera na teia da vizinha para comprar logo este galo. Não poderia ter sido
outro?
Saí do
banheiro, tomei um gole de café, sentado na poltrona da cozinha, ainda um pouco
grogue por haver sido acordado sem esperar. O que me faz dormir sempre que
acordo de madrugada é tomar leite, mas havia acabado.
Alguma coisa
está acontecendo de muito séria neste galinheiro. Talvez a galinha tenha ficado
com o ovo atravessado, está sofrendo muito com esta situação inusitada, também
não consegue dormir – que galinha iria conseguir dormir com o ovo atravessado?
Creio que nenhuma. O galo está fazendo a sua parte: canta para acordar alguém
da casa e correr ao galinheiro para socorrer a galinha. Aí, mais uma cantada. O
que está de fato acontecendo? Isto não é normal. Alguma outra franga está
deprimida ou angustiada, ficou o dia inteiro no puleiro, sorumbática. De
soslaio, o galo olhou, esperou que descesse, começasse a ciscar. Não,
permaneceu no puleiro. Talvez até mesmo as outras galinhas, pintos, galos hajam
percebido, mas não deram tanta confiança assim, hoje é comum até os galiformes
estarem tendo crises, pois que as pessoas só comem ovos de granja; para que
estão botando? Para nada. Os ovos estão perdendo no ninho. Antigamente, pela
manhãzinha, clima suave e sereno, alguém corria ao galinheiro, apanhava os ovos
que acabavam de ser botados, cozinhavam. Ouvia-se dizer: “Que ovo gostoso” ou
“Nossa!... Quê delícia de ovo!”. Não se houve mais estas palavras, estas alegrias
e felicidades; com o ovo de granja impossível externar tanta satisfação,
alegria.
O estado
emocional dela a cada momento se agrava mais. Durante o dia ainda dera umas
cochiladas rápidas, tirara uma soneca não menos que rápida, mas agora não
consegue dormir, os olhos permanecem arregalados, as dores de não mais estar
servindo os seus donos pela manhã com seus ovos deliciosos. Melhor morrer. Com
efeito, não tem graça a vida de uma galinha, se os seus ovos não servem para
mais nada. Galinha inútil. Cachorro que não late é aceitável, papagaio que não
fala é inteligível. Mas galinha cujos ovos – será mesmo este o pronome relativo
para a situação? – não servem mais, não tem mais qualquer sentido. Os
galináceos têm apenas duas funções na vida: botar ovos ou ser almoço no prato
dominical, como se diz “no prato dos mineiros”. Nem isto mais. Galinha caipira
aumenta o colesterol que é uma beleza. Come-se apenas frango de granja. Agora
só a morte natural por doença ou velhice. Mas passar a vida inutilmente ciscando,
trepando no puleiro, correndo do galo, isso é deprimente.
E se esta
galinha mesma terá vida longa, que tédio ficar no galinheiro inutilmente
ciscando? Com efeito, tem suas razões mais que plausíveis para sentir-se
deprimida, não é para menos. O que fazer? O galo não entende de veterinária,
não tem a mínima noção de que medicamento pode ajudá-la. Mas isso nem é caso
para um farmacêutico, é caso para um psiquiatra, psicólogo. Só eles entendem
dessas crises existenciais. Se pudesse dizer alguma coisa, mas não, calada,
sorumbática. Aliás, seria até uma contribuição à psiquiatria, psicologia, uma
galinha deprimida, iriam cair na gargalhada, no reino animal também tudo se
tornou possível em nossa modernidade. Terapia de galinha. Uma coisa inusitada
no menu da modernidade.
Tem mais é
que cantar a uma hora da manhã, acordando a vizinhança toda, e todos aturdidos,
pensando até estão sonhando, um galo cantando insistentemente a uma hora da
manhã. Pensa que acordou, mas continua dormindo, aliás sonhando com um galo
frenético, desesperado, cantando neste horário. Precisa pedir socorro. Alguém
que atine com alguma coisa estar acontecendo muito séria. Ninguém atina com
isto, o galo vai continuar cantando até a aurora deste novo dia. Aí a vizinha
vai perceber alguma coisa de errada. Com efeito, está doente, vai morrer logo,
é uma galinha mais velha. Normal isto. Não pensara nas dores contundentes que
se lhe perpassa o corpo inteiro, as penas se eriçam, calafrios ininteligíveis,
devido ao fato de que os seus ovos não servem para mais nada, não será comida
dominical de mineiro.
Chamar um
veterinário para uma galinha? De forma alguma. Servirá de chacota do
veterinário, os vizinhos irão comentar o resto do dia, no quintal só há um
galinheiro, não há cachorro, gato, papagaio, só galinhas, a presença de um
veterinário não teria outra razão. E se a vizinha descobre que não está doente,
mas deprimida, angustiada, entristecida, desesperada com a sua situação, com a
situação dos galináceos na modernidade, chamando um psiquiatra? Aí não é
sandice apenas superficial, mas loucura das bravas. Ir até a farmácia
veterinária para comprar calmantes para galinha em crise existencial, uma baita
depressão. Loucura. O que as pessoas não vão dizer? Não tem mesmo cabimento
isto.
Aí, o galo
continua cantando. Diabo! Será que a vizinha tomou algum comprimido para
dormir, simplesmente apagou, nada se lhe pode interferir no sono, nada se lhe
acorda. Fosse assim apenas, mas o marido, algum dos dois filhos. Não. Ninguém
está ouvindo a cantação do galo. Não vou ao portão da casa, tocando a campainha
com insistência para dizer ao proprietário da casa ou mesmo à vizinha, que
alguma coisa de muito séria está acontecendo no galinheiro, o galo começou a
cantar a uma da manhã, porque me vão escorraçar, sujeito mais inconseqüente,
acordar todo mundo para dizer que alguma coisa errada está havendo no
galinheiro, o galo começou a cantar a uma e meia da manhã. Quanto mais que a
vizinha é muitíssimo fofoqueira, Deus me livre! Tudo é motivo para fofocar.
Dependendo do que for, vasculha a rua de cima abaixo para dizer o que
acontecera, o que sucedera. Antes de o dia clarear, estará comentando,
começando na padaria. De forma alguma.
O galo
continuará cantando. Sinceramente, não fosse minha mulher também se assustar com
um galo cantando àquela hora, diria que, ou estou sonhando comigo sentado na
poltrona da cozinha, fumando, encafifado com um galo que começa a cantar a uma
e meia e continua cantando hora e meia depois, ou estou ficando mesmo senil, e
a a-nunciação da senilidade é um galo cantando num horário indevido à espécie.
Talvez
estivesse criando uma crônica, uma sátira à modernidade, e não ficando senil, e
a mais interessante seria a galinha estar deprimida no puleiro, sofrendo dores
ininteligíveis com a inutilidade da espécie, e um galo pedindo socorro, e não
propriamente ficando senil. Impossível ficar senil aos sessenta e dois anos. Sinceramente,
em todos esses anos de vida jamais pensei que fosse possível um galo cantar
desse jeito pela madrugada a fora. Talvez nem seja isso, não seja que a galinha
entrou em depressão, e sim que o galo ensandecera, engoliu uma cigarra lírica.
Aí também é ridículo: galinha engolir cigarra lírica. E por que teria
ensandecido? No seu ponto de vista, na sua visão da vida galinácea, o que anda
in-vertido, de ponta-cabeça no mundo, para ficar louco? Alguma coisa. Terá sido
que todas as galinhas chegaram à mesma conclusão da inutilidade de suas vidas,
os ovos já não serviam as mesas em todos os horários do dia, galinha caipira,
hoje os homens só comem ovos de granja e comem também frangos de granja, isto
re-sultando em abstinência sexual, os galos já não têm quaisquer chances, e
isto para a espécie não é nada agradável, ensandece mesmo. A minha inspiração
para a crônica nascera neste dito popular, diria mais interrogação popular:
“levantou com as galinhas?”, dizendo que levantou muito cedo, e, em
contrapartida, com outro dito: “levantou com os galos e dormiu com as
galinhas”. É o galo que acorda primeiro. E são as galinhas que se re-colhem ao
puleiro mais cedo.
Não estou
criando nenhuma crônica. Estou simplesmente incomodado com a insistência deste
galo. Como pode! Não vejo nenhuma luz acesa, só as do poste. Se estivesse
incomodando alguém, com certeza já teria levantado, acendido a luz, começado a
xingar, alguns de modo chinfrim com palavrões do arco da velha. Ninguém. E o
galo continua cantando pela madrugada a fora, querendo chamar a atenção. Está
louco. Pede que o socorram, levem-no para longe de galinhas, galos, internem
numa veterinária especializada em galo louco. Quer morrer tranqüilo, longe de
galinhas, só na companhia dos galos que também são loucos, sente-se em casa ao
lado de todos.
Não deve
haver solidariedade apenas entre os homens – retificando sem excluir, é o que
não há entre eles, nem esperanças e sonhos -, solidariedade é praticada
ilimitadamente, ainda mais no que diz respeito aos animais. Um galo ensandecido
e ninguém dá a mínima, é como se nada estivesse acontecendo.
Vou até ao
quarto, acordo minha mulher e pergunto se o galo para ela continua cantando ou
isso está acontecendo apenas comigo, quem está ficando despirocado sou eu.
Acordo a uma e meia da manhã com idéia fixa de um galo cantando, pensando estar
havendo alguma coisa de errada no galinheiro da vizinha, a galinha entrou em
depressão devido ao fato de que os seus ovos não têm mais quaisquer serventias
no prato dos homens, são ovos caipiras, é a primeira indagação, o intróito da
sandice absoluta, a anunciação, seguido da loucura do galo, enfim com a crise
galinácea dos ovos inúteis resultara na sandice do galo.
Vou descer.
Não é possível. O bicho está precisando de ajuda, a coisa não está nada boa
para ele. Cabe-me chamar a vizinha, dizer-lhe que investigue o que está
acontecendo, o galo está cantando muito, sem me importar que antes do dia
amanhecer estará fofocando que enfia o
dedo na campainha para dizer alguma coisa estar errada no galinheiro, a galinha
está deprimida e ele pede ajuda ou o galo ensandeceu.
Pensando
bem, não. Deixe o galo cantar à vontade. Há certas coisas que são boas de evitar.
É constrangedor acordar alguém numa situação desta. Terá todas as razões do
mundo para se irritar. Tirar uma pessoa da cama, depois de um dia de muitos
problemas, trabalho, dificuldades quotidianas, preocupações, para dizer uma
coisa desta é realmente brincar com a paciência do outro. Merece o seu sono,
embora não importe se seja profundo ou não, se para que acontecesse calmantes
foram tomados. Precisam descansar um pouco, fugir de tudo que acontece,
sentir-se mais dis-posto. Não há corpo que agüente tudo em cima dele.
Canta, galo!
Aliás, já estou me acostumando com isso, uma coisa inusitada, excêntrica serve
para espairecer as coisas. Há quando acordo de madrugada, não consigo dormir,
venho para esta poltrona, fumo, um silêncio sepulcral. Nem cachorro late.
Impressionante isto: é uma cachorrada pelas ruas durante o dia. Outro dia mesmo
contei dez cachorros deitados. Em tom de cinismo: “também a cachorrada merece a
sesta”, “a cachorrada está tirando uma soneca após os restos de comida no
lixo”. Penso em tantas coisas, lembra-me isto, recorda-me aquilo. Passo a noite
no silêncio de início da terceira idade. Nem grilo ouço. Silêncio absoluto.
Esta é a” madrugada do galo”. Enquanto ele canta e eu aqui fico a elucubrar as
razões de um galo acordar a uma e meia da manhã, quando o horário de práxis é
às quatro e meia, não pára um segundo de cantar, alguma coisa está errada no
métier galináceo, ou o galo ensandeceu, ou a galinha entrou em depressão, e ele
sendo o companheiro está pedindo socorro: “o galo pede socorro!”. Numa manchete
de tablóide seria interessantíssimo, eu mesmo leria, embora não leia jornal de
forma alguma, isto não de agora, devido aos sensacionalismos, corrupções,
drogas, assassinatos, etc., etc., mas desde sempre, nunca apreciei ler jornal
ou revista. Matéria desta iria chamar-me atenção.
Um galo me
diverte numa madrugada insone. Já são quatro e trinta e dois. Durante três
horas o galo da vizinha canta e canta e canta. Talvez nada disso que antes haja
imaginado como razões seja real, em verdade o galo quer se mostrar, quer
tornar-se o galo mais importante senão deste bairro apenas, mas de toda a nossa
cidade pacata, a pacatice é tanta que ninguém dá a mínima para o galo cantando,
quer ser personalidade da espécie. A sua intenção é executar uma peça
dramática, a ópera do galo. Numa madrugada mais do que pacata, galo acorda a
uma hora da manhã, a inspiração baixou enquanto dormia, e, sendo muito presente
e forte, acordou de imediato e começou a compor a sua “opera do galo”. O galo
está com idéia fixa de artista, empreende todos os esforços para que a componha
com engenhosidade e arte, torne-se a primeira ópera do galo neste mundo velho
sem cancela e porteira.
Felizmente
que alguém ouve, caso contrário seria trabalho perdido, sua ópera nunca
existiu, não é artista coisa nenhuma, galo nenhum canta com constância.
Ouço-lhe a ópera, intuo-lhe os sentimentos e emoções, os instintos, percebo-lhe
o desejo de se extravasar todo, mostrar aos homens o que é isto de re-nunciar
os ovos caipiras em detrimento dos de frango de granja, os sentimentos
deprimentes que todas as galinhas sofrem, as dores que sentem com a vida inútil
que levam, não são comidas mais nos pratos dominicais, têm de viver muito mais,
se antes a morte não vier devido a alguma doença da espécie. Enquanto botam
ovos, são pratos, a vida segue em harmonia, enfim os galináceos servem é para
isto mesmo, mas sem isso, que sentido tem o reino galináceo? Nenhum.
O galo quer
mesmo exteriorizar todas estas questões que os galináceos sofrem e ninguém dá a
menor atenção. Quer que a sua ópera seja ouvida por todos os homens, por toda a
comunidade, quer que os homens sintam que a vida num galinheiro também tem sua
realidade difícil de ser ciscada, que também sofrem e sentem dor. Galo nenhum
fizera isto em toda a história da humanidade, coube-lhe o dom de fazê-lo numa
madrugada em que acorda, sentiu forte e presente a inspiração, felizmente que
acordou de imediato, e pôs-se a compor a sua peça com garra e determinação, com
instinto mesmo de conseguir realizar o para quê viera ao mundo, mostrar e
identificar a vida dos galináceos no tempo moderno, diante da injustiça de
deixá-las abandonadas, já não servem para mais nada, enfim os ovos, a carne
aumentam bastante o colesterol, os riscos de enfarto são inúmeros, de outras
doenças também. O que não acontece com as galinhas de granja, fazem bem,
rejuvenescem as pessoas, fá-las sentir mais serenas e calmas.
Enquanto a
ópera não for executada com primor, nada for esquecido dos sofrimentos dos
galináceos, continuará cantando. Quando isto acontecer, nada mais irá lhe
interessar, os ovos das galinhas não servem mais, a carne de galo caipira
tampouco, mas a ópera de um galo que precisava mostrar ser ainda mais útil do
que todos os outros de hoje e de ontem
serve e muito para os homens, enfim a música tem uma dimensão espiritual
elevadíssima, além de suprema e divina. Uma ópera do galo, então, coisa que
jamais ouve, nem mesmo na literatura, nas artes, é coisa inédita. Num mundo tão
pacato como este, pelo menos na cidade em que vivo, música assim irá despertar
sentimentos os mais recônditos.
Continuarei
aqui sentado, ouvindo o galo cantar numa madrugada qualquer de minha vida.