Total de visualizações de página

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

JAMAIS OLVIDADO DE SILÊNCIOS E ALEGRIAS - Manoel Ferreira




Aos meus filhos Sacha Lucien Moser Ferreira e Kayros Christian Moser Ferreira






Bom sentir-me um deus adorado, e adorado ao estilo do Evangelho, folgado de me ver assim amado em silêncio, saboreando o espírito de Amor eterno e imortal, começando de ver-me os medos, alegrias, serenidade, a angústia e os desesperos, as tristezas e desamparo, metido no meu aposento, fechada a porta de entrada, abertas as portas dos quartos contíguos, não nas sinagogas, não nos templos, à vista de todos.


Sinto mesmo necessidade de ser pretensioso, um demente, um desvairado, desculpem-me, mas enfastiei-me das modéstias, não é preciso que alguém me lembre que estou sendo muito pretensioso com isto de sentir-me um deus adorado, e adorado ao estilo do Evangelho, pois que não se torna possível visualizar a palavra escrita com letras maiúscula, e sim com minúscula. Mesmo assim continuo sendo pretensioso, mas leguei-me os privilégios de sentir e pensar o que bem me convier, não se torna necessário que os homens sejam testemunhas de minha demência, e certamente que estou convencido de que a comparação de um deus, com letra minúscula, e o Evangelho, que nada mais é senão a Bíblia Sagrado, só se adora Deus, e adora ao estilo da Linguagem do Evangelho, e não um deus com letra minúscula.


Não havia ainda pensado e sentido o que iria registrar nas laudas, preenchendo-lhes os vazios, tecendo-lhes as redes com os fios do sido, e toda a prevenção se converteu em simpatia. Continuo a saborear as atitudes quase implorativas, um composto de atos e sentimento, de atitudes e emoções, de entregas e harmonias, de intuições e inteligência, de contemplações e sabedorias. Desde toda a eternidade sobrevoando os horizontes todos, de todos os tempos, assim me vejo, não há possibilidade de olvidar os homens são águas que passam, e os silêncios que sussurram e cochicham não são outra coisa.


Costumo exagerar as coisas, movido pela paixão desvairada, pelos medos, inseguranças, indecisões, fugas; pode não ser tanto, ser adorado como um deus, e adorado ao estilo do Evangelho. Se me perguntarem o que teria acontecido para que eu reconheça que há exagero nesta afirmação, descendo do Olimpo, não saberia responder em hipótese alguma, e diria até que não tive qualquer intenção de não continuar com toda esta pretensão, empáfia, embófia. Adorado como ninguém? Sim, adorado como ninguém. De que modo soube que era eu? Tenho falado comigo muitas vezes, e jamais descubro nada. Achei-me sempre frio nisto de descobrir a verdade atrás da vida que decidi por ela, olho-a de esguelha, quem sabe o espírito maligno que reside em mim e sempre mostra a melancolia da paisagem seja o único responsável por nada descobrir atrás da vida que escolhi, prefiro deixar as situações surgirem espontaneamente, não desenho ao longe a sua fisionomia.


Quem sabe seja uma explicação de assumir este lado de minha personalidade, caráter, psíquico, o exagero, movido pela paixão desvairada, dizendo que isto de ser adorado como um deus é um exagero, diria ser adorado como ninguém. Não é intenção esmiuçar o fato de descer do Olimpo. Saboreio as entregas e doações, atos e sentimentos que são a apoteose do homem. Em que aposento se fecha para rezar, para evocar a felicidade, a harmonia, a paz, senão num escritório, isto se referindo à minha função, aos dons que me foram doados gratuitamente. São sentimentos que não estão nas cordas de nosso tempo estes que me perpassam o espírito enquanto me encontro neste escritório, preenchendo os vazios de entre desejos e sonhos, esperanças e utopias. Creio não haver alguma prova de semelhante estado da alma. Se houver, mostre-me este estado de alma, com certeza cada um de nós irá identificar suas características, suas diferenças.


Oh! Boa lágrima inesperada! Não preciso de recursos de estilo, é tão vulgar e esquisito como expor a minha intimidade nos salões literários, mas aqui senti muito forte o sentimento de que me reconheci na imagem refletida no espelho, e não restou alternativa senão verter lágrimas, a emoção de conhecer-me, de me identificar com os sonhos e utopias que perpassam o âmago da alma. Esboço um sorriso no rosto, indagando-me o que importar que os olhos não sejam sempre afeitos ao choro, nem que esta noite chuvosa, sempre por ocasião do Dia de Finados chove, só muito poucos Dias de Finados em minha vida pude conhecer e saber que não chovera, esta noite parece exaltar sentimentos mui diversos da melancolia, nostalgia, saudosismo...


Porventura as próprias sombras refletidas nos pedaços dos homens felizes e extintos vêem me cumprimentar-me, dizendo-me pela boca invisível todos os nomes sublimes que pensam neles no sentido de fazer-me dar continuidade aos sentimentos que a noite exalta, sentimentos diversos da melancolia, da nostalgia, mas não consegui memorizar nome algum pois todos dizem um após outro, chegando ao extremo de dizerem em uníssono, talvez que eu reconheça ser a presença de um Coro como existia nas peças teatrais na Antigüidade Grega.


Relembro os últimos dias, as primeiras manifestações dos sucessos, a realidade da afeição que tenho à esposa, e, enfim, a felicidade pura que me vem dar. Olhando bem de frente para estas derradeiras palavras, não poderia de modo algum esquecer-me de lembrar que me enchem de grande e rara satisfação. Os levianos possam atribuir este instante à megalomania, à neurose de superioridade, à aragem da demência que me habita o psíquico, a alma, desestrutura emocional, mas que os sapientes reconheceriam ser nada mais que o jamais olvidado de silêncios e alegrias. Certo, é difícil não crer que toda esta exaltação, todo este poder que foi despertado na alma, não exprima outro estado mental que não seja a demência.


Disse-o antes, mas não custa nada enfatizar a idéia, disse não se tornar necessário que os homens sejam testemunhas de minha demência, importa e muito reconhecer que renovo os sonhos do mundo antigo, crio um Olimpo, sem nada saber da tradição. Não tenho noções de tragédia, formo uma idéia ofuscante das dores e prazeres dos homens, da humanidade, e a imaginação fértil cobre-me com o sudário do mistério e dos enigmas. Como não custa dar asas à imaginação, sobrevôo os mares, os horizontes, sem enjôo, sem vagas, sem ventos, sem nuvens.


Dizendo isto, interrompo-me um pouco por sentir vontade de fumar um cigarro, mas pensei antes em tomar um gole de café, e para isso tenho de subir os degraus da escada da cozinha. A chuva diminuíra consideravelmente. A esposa queria que eu comesse algo, pois ainda não jantei, mas respondi que estava sendo adorado, adorado como deus ao estilo do Evangelho, não poderia interromper este adoração tão esplendorosa, olho a todos com indiferença e volúpia, com escárnio e voluptuosidade. Riu de mim. Adorado como um deus ao estilo do Evangelho! Compreendeu que estivesse rezando em meu escritório. Estava indo deitar-se, aquando me sentisse enfastiado de tanta adoração, comesse algo antes de ir-me deitar.


Retorno-me. Tiro um cigarro, abro-o, desfio o fumo com os dedos, enrolo a palha outra vez, e acendo com a chama do cinzeiro, mas o vento que entra apaga-a. Tento novamente, fazendo uma concha com a mão esquerda, virando-me de costas para a janela. Acendo. Entre os deuses antigos e os novos, há esta ou aquela rivalidade, há tal e qual pretensão, que os primeiros acentuam e caracterizam mais, revelando mais conhecimento, mais sabedoria, mais inteligência. A cultura é que não os faz suportáveis entre si, e todos acabam na doce e comum confissão de qualidades dos mestres do Olimpo. Ao cabo de alguns séculos e milênios, também os novos ocuparam suas devidas cátedras. Ou em fiança aos dons e talentos, ou endosso de letras, certo é que observo e contemplo às escondidas, para não vexar a ninguém. Circulo os olhos pelos novos, para mostrar a intimidade da esperança deposito neles.


Oh, lance da fortuna! Oh, eqüidade da natureza! Já o tempo não passa por mim como por um vadio sem idéias! Se passara antes desta noite chuvosa em que me sinto um deus, com letra minúscula, adorado ao estilo do Evangelho, não saberia responder, ou seja, explicar com detalhes e pormenores. Se não achava equilíbrio interior, e o ócio esticava as horas, que não acabavam mais. Necessidade e vocação fizeram-me adquirir, ao longo do tempo, aos poucos, pois que não adianta querer dar saltos às coisas, o que não trouxera do nascimento nem da fortuna. Ao demais, estou naquela idade de hábitos singelos e sem elevação.


Sinto que me aproximo do término da lua de mel da grandeza, da empáfia; agora torço os olhos duramente para outro lado, visualizando a porta do escritório fechada, conjurando-me, de um gesto definitivo, o medo de as horas ao longo da madrugada serem difíceis. Não creio que haja necessidade deste medo. Enfim, faz alguns anos que superei as insônias terríveis, a janela do terceiro andar aberta, o olhar dirigido ao Cruzeiro, observando as estrelas de primeira ordem.


Não dou continuidade à oração de imediato, ponho uma perna sobre outra, fazendo o pé direito seguir o ritmo da música que é executada, e lanço uma olhada sobre a mesa, maço de cigarros, isqueiro, caixa de fósforo vazia, um insenso indiano que a esposa presenteara, uma chave do lado direito, os óculos de perto à esquerda. A samambaia suspensa no esteio da cobertura do escritório importa-se pouco ou nada com a grandeza. Desejo crer que esta grandeza nasce da brevidade da vida.


Quem conhece o solo e o subsolo da vida sabe muito bem que a presença de cigarro, isqueiro, chave, óculos, não importando de que lado estão, são ricos de idéias ou de sentimentos; as orações, as grandezas, os silêncios se revelam entre os homens e as coisas e os objetos compõem um dos mais sublimes e esplendorosos mistérios da condição humana.


Dante, que viu tantas coisas extraordinárias, afirma ter assistido no inferno ao castigo de um espírito florentino, que uma serpente de seis pés abraçou de tal modo, e tão confundidos ficaram, que afinal já se não podia distinguir bem se era um ente único, se dois.


Onde vão os olhos grandes, as mãos amigas e longas, os pés inquietos, as palavras meigas e os ouvidos de misericórdia? Ah, sim, não poderia deixar de registrar que outro final não haveria senão evocar as buscas, as esperanças, a fé dos homens. Isto até se torna ridículo, mas não há como negar que ainda não terminei as minhas orações.


Tudo desaparecido, tudo desaparecido, agora que retornei da lua de mel da grandeza. Movi os dedos todos frente aos olhos, quase que me irrito com a inércia das laudas preenchidas, cuja paixão só pode ser explicada pela paixão antiga.


Quem quer que me ouvisse, aceitaria tudo por verdade, tal é o estilo sincero, a meiguice dos sonhos e esperanças, desejos e utopias. O demônio da música que é executada no instante desta oração levaria os olhos de alguém a alguém, e ambos esqueceriam o resto. Quem quer que me lesse, suspiraria suas esplêndidas e esplendorosas reminiscências...         

Nenhum comentário:

Postar um comentário