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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Por Hudson Ribeiro





CARTAS DE DOM QUIXOTE DE LA MANCHA PARA DULCINEIA DE TOBOSO

Inverno, La Mancha 02 de janeiro de 1597 Querida Dulcineia! Que a paz esteja com você do mesmo modo que o seu amor está comigo, ontem a lua cheia me inspirou a um caminho de resposta a essa angústia que carcome o seu ideal ao fazê-la amputar as pernas do seu ideal de finalmente se unir a mim nessa luta contra o mal e sair percorrendo o mundo como paladinos da justiça. Eu sempre desconfiei das razões da sua recusa ao meu amor tão verdadeiro, e já tinha até alguns rabiscos de explicações, mas nada muito palpável. Houve vezes que de tanto pensar em uma solução a minha cabeça latejava e doía tanto, que a única solução era ficar nu e mergulhar nas águas frias do rio Serena, isso antes do Dom Adamastor expulsar todos os moradores das suas margens e se apossar com as suas fazendas de gado. Ontem, com a lua cheia, fiquei imensamente calmo e pude juntar as peças do enorme quebra cabeça que é entender o porquê você recusa terminantemente o meu amor, isso depois de declarar que eu sou a sua alma gêmea, e que volta e meia sonhava comigo sendo pai dos seus sete filhos. Enquanto a lua seguia o seu percurso eu me indagava do porquê de você se boicotar tanto, ao mesmo tempo em que vai se acostumando ver a vida se esvair cada vez mais célere, a ponto de prometer a sua graciosa mão àquele vilão, Dom Adamastor. Nenhum caminho de resposta alcançava a sua complexa personalidade, minha querida Dulcineia, às vezes eu errava por carência de informações confiáveis, pois esse inútil do Sancho está cada vez mais imprestável, passa cada vez mais tempo a correr atrás das mulheres da estrebaria da Tia Estela, e outras vezes eu errava por excesso de envolvimento emotivo, pois você mesma bem sabe, dulcíssima Dulcineia, que o meu amor por você é deveras enormissíssimo. Por isso mesmo, não me importa quando dizem que você é caolha e manca, para mim você é a mais linda das lindas. Até que ontem quando a lua atingiu o seu nono mês de gravidez, parecendo estar grávida de gêmeos de tão cheia, entendi o porquê de você preferir a segurança oferecida pelo dinheiro sujo de Dom Adamastor a viver ao meu lado honestamente e lutando pela justiça no mundo. Nenhuma dessas cartas que aqui se encontram chegou ao seu destino, quis o bom Deus iluminar a cabeça oca do Sancho e este, ao invés de fazer as cartas chegarem ao seu destino, preferiu guardar em casa de uma de suas treze filhas. Quando soube de tamanho desacato cheguei a desembainhar a espada de prata que trago sempre ao alcance das minhas mãos, não apenas para enfrentar gigantes, que os ignorantes afirmam não passar de moinhos de ventos, é que esses boçais não enxergam com os olhos do coração querida Dulcineia, como também para ensinar ao Sancho com quantos paus se faz uma canoa, mas no auge da minha empolgação vingativa senti aquela terrível dor no peito, aquela mesma que me atacou quando você beijou a minha face quando a salvei do ataque daquele porco raivoso; e se não fosse o Sancho teria desmoronado no chão como um saco de batatas vazio. Depois com o tempo e a paciência do Sancho compreendi as suas razões e o acerto da sua decisão, mas de vez em quando a lembrança vem tão forte que me acerco sorrateiramente dele e dou-lhe uns três pescoções para acalmar a minha ira, ele espertamente foge apressado para a casa da tia Estela e suas meninas, e só volta quando já embriagado e exaurido pelos excessos dos pecados carnais. Pois, então, é isso Dulcineia, se algum dia essas cartas chegarem as suas mãos as leia com todo carinho e atenção, pois foram escritas com as mãos de um coração apaixonado, habitante em um corpo que vagou mundo para conquistar reinados apenas para oferecê-las como prova do meu eterno amor por você minha dulcíssima Dulcineia de olhos de mel e de pele acetinada como o marfim mais cobiçado. O Sancho contou-me que a filha é chegada a cometer algumas escritas, assim sendo, se notar algo de estranho em minha prosa, não titubeie em creditar o sacrilégio à estupidez gerada das carnes do meu pobre e fiel escudeiro Sancho, crendo que até os fins dos tempos teremos tempo para nos reencontrarmos sem nenhum Dom Adamastor para nos impedir, viveremos o amor mais lindo em sua forma mais plena. Com todo amor; Dom Quixote de La Mancha.

 HUDSON RIBEIRO

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